terça-feira, 17 de junho de 2025

Apologia à Leitura

Em 2024 eu tive, por obrigação, que desenvolver um projeto de extensão na universidade em que leciono. O projeto não poderia se limitar aos acadêmicos, devendo alcançar a comunidade naviraiense. Pensei, pensei e pensei: Clube de Leitura. 

Acontece que as pessoas não leem muito. Na verdade, mais da metade da população brasileira não lê, e mesmo ali na sala de aula, muitos não sabiam dizer a última vez que leram. Pensei, então, que seria uma boa oportunidade para estimular uma mudança positiva no mundo - começando por 57 alunos do curso de Direito que estavam forçados a comparecerem. Para tanto, deveria convencê-los a ficar de corpo e mente. Convencê-los que a leitura é importante e sobre o porquê ler sobre coisas inexistentes é tão legal. 

O cérebro de quem lê é diferente. Não sabia? Pois esteja ciente: A leitura é mais complexa que a fala. Nas minhas pesquisas para justificar essa afirmação, encontrei informações interessantíssimas para compartilhar com os integrantes do clube. Se uma criança é colocada em um ambiente conversacional, desenvolverá eventualmente a conversação, mas se colocada em uma biblioteca, ela não entenderá os sinais estranhos do papel, não saberá convertê-los em palavras por hábito. Para a leitura, é necessário o ensino, tanto para o desenvolvimento de frases coesas como para o desenvolvimento da atenção. Da atenção? Sim! É preciso atenção quando se lê. Mesmo que não haja uma entonação da voz, a leitura atenta ensina a imaginação a ouvir.

Ler é útil por muitas razões: entendermos orçamentos, instruções, o Vade Mecum, um Recurso Extraordinário e aquela primeira carta de amor. Podemos ir além do útil: ler algo que não está restrito a nós mesmos, nem mesmo à nossa terra... ou nosso tempo. 

Não faz muito tempo que viajei para a Colômbia, parei em Belo Horizonte nos anos 1960, passei por Macondo, fiz uma refeição num restaurante no fim do Universo e até ancorei em Ankh-Morpork. Esse fenômeno mágico de ser hipnotizada por símbolos e crer neles tem até nomenclatura: suspensão voluntária da descrença.

Mas por qual razão recorremos à literatura ficcional? Talvez a resposta tenha sido dada pelo poeta Rainer Maria Rilke. Ele me fez pensar que as coisas não são fáceis de se aprender e que a maioria dos acontecimentos é indizível - eles ocorrem em espaços não totalmente penetrados pelas palavras, e por isso os traduzimos através da arte. Mais indizíveis ainda são as obras de arte, essas existências misteriosas que se criam ao lado das nossas, no mesmo universo, mas num plano inexistente. Estranho, não?

O escritor sonda as próprias profundezas, aceita a existência em todo seu alcance abstrato e se empenha. Como é curioso o processo de um escritor que, com uma máquina de escrever, uma folha em branco, pensa consigo "E se todas as pessoas, de repente, ficassem cegas?" e escreve "O disco amarelo iluminou-se". 

Nosso cosmos existencial não é feito tão somente de semáforos, aviões, relógios, mas de coisas que não são feitas de átomos: sonhos, medos... coisas que assombram nossos instintos. O sonhar acordado, perceba, é imaginar o que está além das fronteiras do conhecimento, da própria vida. É alcançar um portal mágico, é o arrepio das premonições, é ver o invisível sem os olhos!

Talvez os antepassados assustassem as crianças para que elas não tocassem as chamas da fogueira, antes mesmo da escrita cuneiforme, mas literatura, escrita, que registra em símbolos a fantasia, começou, mesmo, por volta do século XIX, e em língua inglesa. Aprendi com o Jorge Luis Borges que um dos exemplares da leitura fantástica foi Rabelais (XVII).

O que encontramos na leitura de ficção, do tipo fantástico, é a surpresa. Na leitura fantástica é criado o ambiente propício ao medo (casarão, chuvas, raios), após, é criado um contraste entre a normalidade e o evento incomum. Durante a história da fantasia literária, os autores descobriram que não revelar o monstro, completamente, também é uma ferramenta eficaz. A surpresa muda o leitor e o leitor exige mais da surpresa.

Os livros ficcionais podem nos fazer sentir a tensa paixão entre a prostituta Hilda e o santo Frei Malthus para expressar as problemáticas do moralismo que ferveu o caldeirão da Ditadura Militar brasileira. Por outro lado, podem ser escritos para simplesmente nos fazer presenciar uma fórmula amorosa insossa e esquecível.

A leitura apaixonante, mesmo, é a boa leitura. As boas obras de arte surgiriam dessa necessidade de tradução das coisas indizíveis, não conhecidas, inexploradas, interessantes, desse cosmos existencial ao qual estamos condenados a passear.

Como separar a boa leitura da má leitura? Qual livro escolher na estante?

O Schopenhauer aconselha evitar a prateleira dos best sellers. Os mais vendidos, que causam grandes rebuliços públicos, muito famosos, cheios de edições e fórmulas, não merecem a compra, pois são frutos da limerência pelo dinheiro e não do amor à literatura. Livros assim, geram grande impacto por atingirem mais pessoas, justamente porque a maioria das pessoas se identifica com futilidades, coisas levianas, que não engrandecem a existência.

Mas é preciso ler sempre? Nunca largar um livro? Bater metas de folhas lidas transformando absolutamente tudo em Alta Performance? O Arthur Schopenhauer disse que não. 

O excesso da leitura tira a elasticidade do espírito da mesma forma que uma pressão contínua tira a elasticidade da mola. Isso porque a leitura é um substituto do pensamento próprio - a suspensão da descrença é deixar-se conduzir pelo pensamento alheio. E se não há intervalos, se retirados os pensamentos alheios, o que restará? Nada ou muito pouco. E por essa razão existem eruditos que leram até ficarem BURROS. 

Tão importante quanto a arte de ler é a arte de não ler (principalmente obras ruins).


sábado, 14 de junho de 2025

Não estou só

Fiz parte da terra

do vasto oceano

da nascente de serra

poça, por uns anos...


Fui lágrima ao léu

gota, no véu da noiva

hoje, nuvem no céu.


Amanhã - se por escolha

seja bom, seja o que for

seria água no bico do beija-flor.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Lili

 A minha tia foi fazer faculdade de biomedicina em uma cidade próxima à nossa, e por estar se sentindo sozinha, morando longe da família, adotou uma cadelinha magricela, pretinha, de dentes afiados, humor curto, da raça pinscher. Batizou-a: Lili. 

Eu era criança, e na minha casa não tinha cachorro, porque meu pai odiava o barulho e a minha mãe, a limpeza. Mas eu gostava tanto de bichos! Infelizmente, o contexto era rígido, sabe? No entanto, uma ou duas vezes na semana eu ouvia quatro patinhas zanzando pela minha casa. Puxa, como eu ficava feliz com a visita! Eu tinha mais expectativa pela Lili do que pela vinda da minha própria tia. 

Acontece que a rotina dos estudos da biomedicina afetaram os cuidados da Lili, e por essa razão as estadias dela foram se alongando e se alongando, até que minha avó resolveu acolhê-la de vez. A Lili talvez não tenha gostado muito da ideia, mas eu adorei.

Ela era tão pretinha, e os olhos mais escuros ainda. Latia tão fino, que ardia. Quase uma ecolocalização. Se lhe pusesse um par de asas, se entrosaria facilmente com os morcegos da rua. Como é perceptível, ela não tinha a melhor das aparências, e com o envelhecimento ainda foi decorada de verrugas. Mas tinha lá sua elegância. Era como um quadro do Dali, digna de um museu caro e europeu. Sobre a personalidade, recordo de ter certeza que ela votaria no Alckmin, e notei várias vezes como seus olhos iluminavam ao ver o Bush na tevê de tubo.

Ah, como a Lili sofreu com meus constantes abraços, beijinhos e cheiradas no cangote! Eu a adorava. Queria colocá-la dentro do meu coração. Já ela, queria é espaço gourmet, filé mignon e lazer. 

Minha vó me alertava a não falar tanto nas longas orelhas dela, porque o cérebro era muito pequeno e poderia explodir. Eu não dava ouvidos, e falava e falava e falava: te amo, que fofura, lindinha, meu denguinho. Ela devolvia com certo olhar de desprezo, mas não se afastava.

Poderiam dizer que ela era um pouco esnobe - o que é pura intriga da oposição. Toda vez que a gente chorava, ela subia no nosso colo e chorava junto. Não tinha como não sorrir.

Certa vez a Lili pulou do carro em movimento e sumiu por 40 dias. Foi encontrada por acaso, sã e salva, hospedada na luxuosa casa da mulher mais rica da cidade. Ela comeu Pedigree, ganhou roupinhas, visitas ao veterinário, banhos, vacinas e estava até com bom hálito - algo que achei que só aconteceria por milagre. Estava irreconhecível!

Teorizo que tudo foi arquitetado... que ela queria mesmo é viver no bem-bom. O cérebro poderia ser pequeno, mas a inteligência, não, capiche

Acontece que ela descobriu que o que bombeava seu sangue azul era um coração, e por isso se deixou encontrar. Percebeu que aceitaria rações mais econômicas e o reaproveitamento de meias velhas como casaco no inverno, do que ter que tolerar tanta riqueza longe da família.

Ou... Talvez ela quisesse era parar com tanto banho e escovação de dentes. Hum...

Bem... uma coisa ou outra, né?

De todo modo, foi um belo reencontro.

Lili voltou para nossas vidas e cá permaneceu, ao total, por 11 anos. Acho que se foi mais pelo tédio da artrite do que propriamente pela idade. 

E foi ela que me fez perguntar, pela primeira vez, se cachorro vai pro céu.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Agradecimento

 Hoje recebi elogios. Eu. Eu mesma, que existo! Recebi elogios sobre meu trabalho, numa ocasião; sobre minha mentalidade, noutra. 

Acontece que, apesar de adorar recebê-los, só não sei para onde olhar ou como agradecê-los. Então respondo "obrigada", mas como nunca me parece suficiente, costumo fazer uma gracinha. Quando vi, já fiz a gracinha. É meu jeitinho, sacastes? 

 Elogiaram minha proatividade e organização. Agradeci e disse que o agradecimento deveria ir para o Café Naviraí - com seu gosto amargo de pneu de rodovia, que levanta defunto. Eu ia adentrar numa piada sobre cocaína, mas minha razão impediu isso. Por sorte, levaram com bom humor.

 Depois, uma pessoa desconhecida elogiou minha força e mentalidade, na academia. Respondi com o famoso "obrigada" e, por ficar sem palavras - afinal, foram tantas coisas boas num dia só - lambi o dedo e alisei minhas sobrancelhas (?) Entendeste? Também não entendi. Não sei por qual razão, mas acho que imitei o sotaque do Agostinho Carrara...

  Acredite se quiser, apesar de tudo isso aí, Agostinho Carrara, sobrancelha e cocaína, obtive uma grande evolução. Eu era bem pior! Sinto calafrios só de lembrar todos os "obrigados" não ditos, trocados por alguma pose esquisita, mandando beijo, fazendo símbolo da paz - tudo isso na cara da pessoa. Costumava terminar dizendo que eu não merecia, aí ficava dramático demais; então eu simulava uma pessoa esnobe e fazia bico. Depois, ria. Cruzes! Como elas não corriam de mim? É um mistério.

 Mas treinei com grande afinco, e hoje, antes de todo esse teatro esquisito, pelo menos... no mínimo... eu agradeço. Disseram "só agradeça", e eu fiz várias sessões mentais de: "obrigada, muito obrigada, agradeço seu apreço, obrigada, fico feliz pelo reconhecimento..."

 E toda vez que recebo um elogio, digo "obrigada", penso comigo "só diga obrigada, não faça símbolo da...." e eu lá fazendo um símbolo da paz. Mas pelo menos, né? O-bri-ga-da.

Talvez todo esse standup inconsciente seja porque eu quero que a pessoa saiba, sem o mínimo de dúvida, que eu estarei muito feliz e três vezes mais grata. Sim, estarei. É que nunca fico feliz e grata na hora, sabe?  Eu só fico depois, quando penso, sozinha - como agora. Só agora, 4h depois do último elogio, é que estou grata. É uma falsidade do bem, é uma resposta sistêmica prévia - eu sei que preciso de 4h de download para aceitar tudo.

  Além de não saber receber elogios, também não domino a arte de fazê-los. Sinto uma timidez absurda e gostaria muitíssimo de uma resposta quanto a isso. E quando elogio - o que nunca traduz o tanto que sinto - preciso olhar para o outro lado. Testei elogiar olhando nos olhos, antes, mas comecei a gaguejar. Então elogio melhor olhando para o outro lado. De uns anos para cá, noto que venho imitando a expressão facial de uma idosa. Freud diria que é porque idosos sabem reconhecer as coisas boas, sem soberba e sem inveja - e o que quero é que o elogiado saiba que o reconheço com o melhor dos modos, sem segundas intenções.

 Sequer consigo praticar a gratidão budista sem um tanto de vergonha. Prefiro que o yogi diga numa meditação guiada - ele agradece, eu respiro.

 Afinal, penso que o problema seja minha demora em sentir. Primeiro tenho que aceitar que eu existo fora da minha cabeça, que alguém constatou que sou matéria, analisou algo em mim, achou esse algo legal e se prontificou a levar até a minha pessoa física para que eu sentisse esse reconhecimento. 

 São tantas camadas!

 Obrigada.

kakaakakakakak

#paz

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Canseira da vida

 Ennui - esse é um curioso termo francês que descobri enquanto assistia à Gilmore Girls. Nesse episódio específico, um personagem meio esnobe está mais do que simplesmente entediado no trabalho. Ele está sofisticadamente entediado, metafisicamente entediado: ele afirma estar ennui

Dizer que se está "bored" não é tão profundo quanto estar ennui. Primeiro, porque ennui é francês - e qualquer coisa dita em francês é mil vezes mais complexa e duas mil vezes elegante do que em qualquer outra língua. Depois, a palavra carrega esse tom dramático francês de quem se sabe condenado a existir. 

Quando alguém está ennui, o mínimo é que acenda um cigarro, coma croissant e discuta dilemas existenciais numa mesa repleta de doutores, fazendo biquinho. Je suis désolé. É como um perfeito enquadramento de Godard. Albert Camus deve ter começado a escrever numa oportunidade dessas.

Cá com meus botões, houve muita ocasião em que senti esse desejo gigantesco de acender um cigarro e responder com "oui, oui, mounsieur": brigas políticas, polarismo, extremismos, problemas familiares, expectativas alheias, essa pobreza desgraçada, essa inflação... Agora sei o que sentia: ennui. Mas um ennui à brasileira, sabe?

Ennui em português pode ser traduzido para fastio, tédio, enfado, mas prefiro "canseira da vida". Na canseira da vida, a gente acende um cigarro de palha, come é croquete, e ainda por cima, ri. Se o Camus não estivesse ennui, mas com canseira, fosse ele brasileiro, talvez não teria escrito nada. Seria como todo brasileiro que não elabora, mas antes sente.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Futurólogo

Jorge era futurólogo. Sua família dizia que era transtorno de ansiedade, mas ele sabia mais que todos: era a previsão do futuro seu dom. Quanto mais idade, mais previsões fazia. Aos 25 ele já sabia o que lhe aconteceria aos 50, 60, 70. 

Jorge olhava pela janela quando a viu pela primeira vez: sua primeira esposa e o amor de sua vida. Imediatamente funcionaram as engrenagens de sua intuição. Soube na hora — ela gostava de ler, cheirava a rosas, tinha cabelos macios e um coração ainda mais leve. Se conheceram ali mesmo, pela janela.

Ela andava a procura de um amor e ao sentir uma brisa leve do destino, soprada pelo próprio cupido, hesitou o passo e encontrou os olhos de seu amor. Ah, o rompante do romance! Ela subiu as escadas do prédio com o coração apertado. Talvez fosse ela também uma vidente? Sua mão delicada bateu à porta e ela, aos suspiros, se convidou a entrar para um café. Jorge se divertiu sentindo o amargo gosto da mágoa.

Deu o primeiro beijo já sabendo quantos beijos daria. Arrumou um emprego contando as economias com a justa causa. Pediu em casamento sabendo os termos do divórcio. Fez dois filhos com a ciência de que não ficaria com a guarda. Economizou dinheiro para a pensão alimentícia até ser demitido. Chorou copiosamente pela separação e pelos vindouros anos de tristeza— pelo excesso de álcool, de sódio, pelo infarto... Tanta tristeza! Acendeu o cigarro. Guardara no armário todos os fósforos que riscaria.

Jorge passeou os olhos pela janela, choroso. Lá se ia sua ex-esposa — mãe de seus filhos —  caminhando pela rua, sem saber de nada. Santa é a ignorância! Sentiu o sofrimento da cama vazia do lado direito da casa que nunca alugou. 

Jorge... Jorge. Como já tinha vivido por 50 anos em tão pouco tempo! Jovem, divorciado, demitido de tantos empregos — e sem nunca ter beijado uma garota ou redigido a primeira linha do próprio currículo.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Amo you

É mais difícil dizer "eu te amo" que "i love you". 

A primeira dificuldade está na pronúncia. No eu te amo, a boca precisa abrir, fechar sem tocar os lábios, depois abrir de novo — mas não muito — para deixar os dentes se encontrarem. Em seguida, abrir outra vez, fechar no "m" e abrir. Parece um beijo! E daqueles bem enrolados.

No i love you a boca abre uma vez só e termina num biquinho: Iloveyou. Fala-se tudo junto. Dá para dizer iloveyou saindo apressado, olhando o relógio. Pode até ser um agradecimento ao garçom que trouxe aquele steak no ponto. Além disso, confessar-se em inglês é bem mais prático: é só dizer iloveyou que ainda sobra fôlego para fugir da rejeição.

O te amo, ao contrário, tem sua liturgia. É preciso parar, olhar e articular sílaba por sílaba: eu - te - amo. É dito cuidadosamente, pausadamente. Senão o ouvinte entende “tamo”, e pairam no ar muitas interrogações. Não dá para declarar tudo isso e ainda correr sem respirar.

I love you é de uma língua em que a intensidade da fala e o contexto modulam seu significado. Diz-se a sério, na brincadeira, ou mesmo pelo hábito. Dá até para escorregar na casca de banana e soltar "iloveyou". Já o eu te amo, não. 

O português é assim: sério ou cômico demais, sem meio-termo. O eu te amo pertence à categoria do sério de verdade. Exige da boca, do tempo e fôlego. 

Seja numa jura, seja numa trapaça, não se fala de amor impunemente.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Entre altos e baixinhos

Numa cena do excelente "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" o protagonista retorna a uma memória da própria infância. Ele se encontra embaixo da mesa da cozinha da casa, brincando sozinho, olhando os pés da mãe passando pra lá e pra cá, e sente de novo aquela solidão tão singular das crianças. 

Tenho muita dificuldade em fazer meus autorretratos, acho que tenho cara de nada e nenhuma característica marcante. 

Então resolvi que me desenharia como me sinto. 

E sabe o que saiu? Uma euzinha pequenininha. 

Enquanto desenhava senti uma tristeza... aquela tristeza do menino debaixo da mesa.

A eu do desenho morava numa casa lotada. 

Meus pais ainda casados e presentes, cumprindo suas responsabilidades: segurança, alimentação, rotina. Mesmo assim eu me sentia aterrorizada, sozinha, preocupada em ser esquecida, perdida por aí ou levada pelo homem do saco - que eu imaginava ser algum lixeiro aposentado que tinha por ethos jogar crianças no lixão.

Acho que o problema da solidão era a altura.

Os adultos estavam tão lá no AAALTO enquanto eu, perto demais do chão. Quando eu ficava de pé me deparava com os joelhos deles e não com os rostos. Era dificílimo ficar inclinando a cabeça para trás para me assegurar que eles me olhavam - então me contentava com os joelhos.

Me puseram na terra, eu não sabia direito desde quando. Eles falavam línguas complicadas de se traduzir. O som demorava pra viajar de lá pra cá, e eu tinha que esgoelAAr, puxar a saia da mãe, a blusa do pai.

"Ô, de cima!"

Meus pais se esqueciam de me puxarem para o alto para um grande abraço, o que me fazia sentir segurança, e se lembravam com uma frequência desconfortável de descerem de lá para me darem broncas. 

"Não", "Agora, não", "Depois".

Como é difícil esse amor à distância! As pessoas não se entendem, e o que dá de confusão! Penso se é daí que fiquei tão rebelde... 

Certa vez minha mãe foi me dar uma bronca, cruzou os braços, lá de cima, e ameaçou:

- Para com isso... Senão, senão, heim! 

Que absurdo! E eu, que não sabia o português direito, mas já litigava em causa própria, retruquei:

- Simone, Simone, heim!

A bronca acabou em riso.

Quem é Simone, nunca soube.

Mas foi assim que venci meu primeiro debate.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Hora da diversão

Duas horas. Foi o que usei para assistir ao filme Playtime (1967), que possivelmente inspirou a estética de uma série que gostei bastante chamada Ruptura (2022). O filme fez uma curiosa previsão do futuro, o diretor acertou em cheio! O formato daquele mundo cinematográfico é muitíssimo similar ao que vejo hoje. Jacques Tati, ao invés de estar rolando o feed do instagram, estava lá fora, observando. Observando a arquitetura moderna — ainda uma recém-nascida.

Em Playtime, demoramos pelo menos 30 minutos para perceber que ele está ambientado em Paris e que a primeira cena se passa num aeroporto e não numa delegacia ou enfermaria. A estética é retangular, cinza, e written in english - for the foreigners, of course.


Tudo é funcional. O trabalho é silencioso e a comunicação é uma burocracia tecnológica ininteligível. Só sendo um cidadão daquele universo corporativo para compreender o que significam as setas, botões, corredores e elevadores naquele labirinto amoral e cru. 

Tudo construído para o absolutamente útil: o trabalho é onde se deixa a vida em suspensão para produzir. A arte corporativa é a fotografia do CEO, em preto e branco, pendendo entre paredes de vidro. Nenhum local é diferente de outro local. A recepção é idêntica à cobertura.



Não só os prédios são genéricos. As pessoas também. Pelo menos à primeira veste. A moda estrangeira feminina é um ornamento de flores na cabeça, mas idêntica no restante. Tal qual os corredores das empresas, uma pessoa é idêntica a todas as outras.

A música? É a buzina de carro nos infinitos engarrafamentos. Os carros todos brancos, pretos e cinzas. Amontoam=se nas ruas, nos estacionamentos, no drive-thru. Os homens inserem moedas nos parquímetros com o mesmo instinto em que respiram. 

As ruas são para os carros, é proibido vaguear a pé. Se quiser perambular, que seja nos metros quadrados da própria casa (mas não demais, para não incomodar os vizinhos). 

A seta para a direita é para à direita - nada mais! Se quiser ir em frente, vá a uma rua que permita isso. A polícia está de olho e pronta para redigir a infração!

O entretenimento? Observar uma nova janela sendo instalada em um prédio. Aquela excitação do mais novo retângulo acinzentado da cidade sendo levantado. O símbolo do moderno. Da inovação!

Anoitece na cidade. O que muda? O que muda é que escureceu e agora as luzes estão acesas. As famílias felizes, são todas iguais - salve, Tolstói. Todos os maridos chegam em todas as casas às 18h, estacionam seus carros nas garagens com parquímetros, beijam suas esposas, tiram seus casacos, abrem suas cervejas, ligam suas televisões e assistem ao futebol.

Baixei o filme de forma pirata e tive muita dificuldade em encontrar legendas. Ao terminar o filme concluí que nem sequer precisava delas! Os diálogos são todos tão genéricos e o que importa, mesmo, de verdade, são os atos, a confusão e o desajuste social de um ou outro divergente que se mete sem querer em frente à câmera. 

Durante o filme fui me sentindo alienígena, como se estivesse observando algo muito novo, quando, na verdade, estou mais habituada à paisagem do que gostaria. Fiquei com a impressão de ter sido apresentada às imagens não editadas de um documentário.

Vamos ao bingo de Playtime: Arquitortura, acinzentamento e inglesamento.

Temos os prédios utilitários retangulares e antipáticos espalhados como uma praga na arquitetura moderna? Temos.

Temos uma vista mais cinzenta da janela de nossas casas? Com certeza - inclusive, já existe um estudo interessante da Science Museum Group que demonstrou que a paleta de cores do mundo vem ficando cada vez mais restrita a tons neutros e frios:


Quanto à linguagem, não é novidade que o mundo corporativo brasileiro e descolado prefere a simplicidade inglesa norte-americana ao nosso not-so-cool tupiniquim. Estamos presenciando há alguns anos a englishzation das línguas do mundo todo, na verdade. Três vezes por semana lembro do Saramago prevendo que o nosso destino é a comunicação por grunhidos.

O filme segue, os últimos minutos se passam num restaurante de alto padrão recém reformado. Lá estão o arquiteto, os pedreiros, garçons, cozinheiros, o porteiro, os músicos se preparando para entregarem mais uma noite esterilizada aos turistas.

Os clientes entram, e tudo que é desordenado sai pelo elevador de serviço. A elegância, fineza e limpeza se instalam - bom, ao menos por alguns minutos. 

Em certo momento se percebe que a reforma não foi lá muito bem sucedida, e mesmo com o esforço do maître, os erros de uma noite agitada acontecem. A porta quebra. As luzes piscam. O ar-condicionado quebra. A comida é salgada por duas vezes por garçons confusos. A bebida esquenta os corações embriagados. A pista de dança se enche e ferve. O teto cai. O porteiro se descuida e todo tipo de gente se convida a entrar. As pessoas nem se importam. Cantam e dançam. A desordem se ergue e a noite é um sucesso! A festa se estende até o amanhecer.

Tal qual a humanidade.

A película me fez refletir que, apesar desse viés de conformidade, os humanos, em si, não são cinzas como esses prédios. Nas condições plurais nós florescemos, porque nunca estamos realmente mortos enquanto não entramos num caixão. 

O caos nos desperta com sua multitude. A bagunça é inevitável e sua desordem nos move, nos dando camadas, complexidade e aventuras. A aparência de crueza é da moda para fora, mas da essência para dentro tem sempre algo que tremula. Mesmo nos mais rígidos. 

E não há acinzentamento que ordene indefinidamente a humanidade. Basta uma fagulha para que os homens decorem tudo com vida.

Estou aqui, sem sentir que estou viva — quando estou. Sem sentir que as coisas acontecem — quando acontecem. Sem ânimo de escrever, escrevendo. 

Escrever é sobre apurar os cinco sentidos. Talvez o sexto. 

Onde há homem, há história.

domingo, 20 de abril de 2025

Enquanto a tinta seca

 Ainda não tenho uma voz artística... talvez nunca venha a ter e, no final, tenha que me contentar com o agudo dos outros. Isso é uma tragédia, não? Não poder chorar com a própria lágrima. Acontece que não sei aonde encontrar inspiração, falta-me técnica e, mais que tudo, falta-me o delicado tempo para criação. 

Insiro a arte nos intervalos entre as obrigações infindáveis e os descansos necessários. Se tento produzir algo enquanto exausta, fico desapontada e desmotivada. Fiquei a olhar para a última tela que fiz, dei alguns passos para trás, olhei de novo, inverti, virei de ponta-cabeça, passei tinta, apaguei, recuei: nada. Tentei acelerar o processo para finalização, numa ânsia de sentir algum alívio, mas a arte não conversa com o utilitarismo e confirmo isso ao escrever esse texto enquanto a tinta está ali secando.

Que frustração! Mesmo que eu me sente em frente a um prompt de uma inteligência artificial, não saberia o que pedir para ver. Ta aí... a arte não se limita ao vislumbramento, ela tem muito de ação. Ela expurga algo de dentro de mim, e eu que devo pôr as mãos na massaroca. Ela torna a minha desordem em ordem, mas minha desordem está por demais caótica, e talvez por isso eu não esteja conseguindo... sabe?... encontrar palavras, talvez paletas de cores, formas, afinações... 

Pensei em fazer arte abstrata, porque o que tenho aqui talvez não tenha lá muita definição. Mas o que descobri é que é muito difícil criar abstrações, e como é difícil fugir das amarras estéticas daquilo que penso que seja bonito para os outros... Estou mesmo é amarrada, pensando no que é bom aos outros... E nem a mim e nem aos outros está agradando com essa maldita estiagem artística. Resumindo: tudo que crio está uma porcaria e tenho minhas tristes teorias.

Talvez nada ande saindo de mim porque não tenho o que dizer. É possível que o que eu tenha aqui não seja bagunça, mas um grande Nada, um poço deserto. Aí, não importa a ferramenta. E olha que venho tentando várias! Mas quando estou no meio da pintura, do texto, da frase daquele poema que reescrevi mil vezes, odeio a tudo que está ali e o que está aqui, penso no esforço a ser feito e refeito, recolho tudo, jogo nas três gavetas da mesa do meu escritório e fecho.

Como lembrança do meu potencial, deixo em cima da mesa uma boa pintura antiga, daí trabalho, enquanto ela me encara.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Tomates podres

A medida do bem do mundo é de seus cérebros estragados

teóricos, desejam um progresso de revolucionários atrasos

têm urgência de futuro, se preciso, incendeiam a largada

após o tiro, é certo que mudariam a linha da chegada

diz a história que o plano real é de controle, de fel e de morte

é a ilegítima defesa de uma certa falta de sorte

apoiam a corrida mortal, parados, de seus palanques 

desejam a guerra, covardes que vomitam com sangue.

domingo, 16 de março de 2025

Teu nome

Escrevi meia palavra num poema quando queria mesmo escrever teu nome. Teu nome... Teu nome... Teu nome... Eis teu nome. Apaguei e reescrevi muitas vezes uns trechos. Risquei o chão com giz. Perambulei pela casa. Meditei em frente à geladeira. Rearranjei os ímãs. Iniciei duas pinturas. As tintas secaram e as folhas permaneceram brancas. Andei pelas ruas, quando queria rumar à tua casa. Cumprimentei estranhos, quando queria te chamar. Falei em silêncio com a tua ausência sobre aquele assunto que não terminamos. Escutei sons que não da tua voz. 

Se a ti não tenho, tenho em companhia este fantasma, que por ora me basta.

quarta-feira, 12 de março de 2025

O shape fala por mim

Era quarta-feira à noite, e eu, exausta de um dia cheio de prazos, dirigia até a Câmara Municipal para uma palestra sobre o Dia das Mulheres. Passei a madrugada ajustando meu roteiro, mas, ironicamente, nada saiu como o roterizado.

Não foi diferente a ponto de eu ser convocada para ser DJ, lutar com alienígenas ou testemunhar um meteoro caindo do céu. Mas foi diferente o bastante para me deixar sem fala... Ou quase.

Havia uma plateia, um palco e vários sofás em cima do palco. O evento se iniciou à brasileira: marcado para as 19h, iniciado às 20h. Pensei comigo que, pelo caminhar da hora, decerto que nem todas ali em cima palestrariam.

Fui chamada para subir logo após uma primeira palestrante e me acomodei no sofá. Pensei "que sofazão... espera... quantos palestrantes...?!". 

Dez palestrantes.

Após uma oração fervorosa, a mestre de cerimônia colocou 'Maria, Maria' e pediu para acompanharmos o ritmo com palmas. Acontece que ela iniciou as palmas no tempo errado. A plateia hesitou, e logo tínhamos um auditório inteiro batendo palmas descompassadas, cada um tentando se guiar pelo ritmo errado das outras.

A mestre de cerimônia iniciou a palestra apresentando as figuras do palco e nos fez uma pergunta: "O que te inspira?". 

Enquanto a primeira palestrante falava com eloquência, eu fazia um esforço hercúleo para parecer atenta. Na verdade, minha mente alternava entre revisar as regras de oratória que aprendi em 2023 e me certificar de que minha expressão facial não traía minha falta de foco. Talvez eu tenha me alegrado num momento inadequado – mas corrigi a tempo de não ficar sorrindo enquanto lamentavam os números de violência doméstica, espero.

Chegou minha vez de responder o que me inspira. Me passaram o microfone. Odeio microfones. Microfones dão retornos, minha voz fica ecoando e minha atenção o acompanha. 

Pensei em ser sucinta respondendo à pergunta para que logo pudéssemos iniciar nossas falas. Como eu não estava preparada para essa pergunta, respondi simplesmente que minha família me inspira. Ocorre que menti, o que me inspira mesmo era o que eu diria no momento da minha palestra: a filosofia, Sócrates, minha sede por viver a vida, etc. 

Falei por 40 segundos e passei o maldito microfone para a palestrante ao meu lado.

"Na próxima elaboro melhor".

A palestrante ao lado e todas as outras falaram por bastante tempo. Conheci suas vidas, batalhas, individualidades, lutos e projetos sociais. Já havia se passado mais de uma hora de fala. Pensei que, se elas já tinham tanto a compartilhar em uma só pergunta, o tanto que ainda guardavam para suas palestras com certeza impressionaria.

Enquanto uma palestrante indígena falava, me pediram para abaixar a saia dela. Sentada no sofá, de frente para o público, ela não tinha cruzado as pernas. Ela chorava e, enquanto eu fingia confortá-la, tentava puxar discretamente o tecido da saia para baixo. Mas o tecido não colaborava! No fim, não consegui cumprir minha missão. Depois ela ficou me olhando com incômodo, talvez pensando por que passei tanto tempo alisando sua perna.

Todas responderam à questão, duas ou três choraram - foi o que percebi entre uma e outra revisão mental sobre meu roteiro: "primeiro falar sobre a infância feminina, depois Sócrates, depois ciência (...)". 

A mestre de cerimônia leu uma longa passagem bíblica sobre a vida de Sara, esposa de Abraão, e anunciou o encerramento da palestra. Uma das palestrantes ainda tinha algo a dizer e pegou o microfone para acrescentar detalhes sobre suas inspirações. A mestre, claramente incomodada, olhou para mim com olhar resolutivo: "Mostre os bíceps!"

Obedeci. Fiz a pose do duplo bíceps à Arnold Schwarzenegger. 

E a plateia aplaudiu animada. 

Meu tempo de fala foi menor do que o tempo que meus músculos passaram em exibição. Quando finalmente me perguntaram sobre minha motivação para o fisiculturismo, tentei responder. Mas, a cada tentativa, o microfone era ligeiramente afastado. Quando finalmente consegui falar, soltei um firme: ‘A filosofia’. 

A mestre me olhou com extrema confusão, agradeceu a todos e encerrou a palestra.

Bom... não precisei dizer nada, até porque o shape falou por mim.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Sobre o dia das mulheres e uma palestra

Fui convidada a palestrar num evento para mulheres. Querem que eu fale sobre minha experiência como mulher fisiculturista. A plateia será formada por mulheres comuns, muitas delas sequer pisaram numa academia e pensam que o movimento físico ficou para a infância - o que é uma pena. Nos remexíamos pulando no colo dos pais, subindo numa árvore, rolando no gramado, pulando em poças d'água, na amarelinha até chegar no céu. As mulheres deixam de fazer muitas coisas legais quando crescem, é raro vê-las mantendo passatempos da infância - ao contrário dos homens, que levam o futebol e os jogos até o último suspiro de vida.

A academia é tida, pelas mulheres, não como um espaço de movimento, mas como um espaço da vaidade - essa coisa vã que nos atrapalha nos afazeres domésticos e nas carreiras profissionais. Muitas mulheres temem esse lugarzinho assustador, fétido, competitivo e triste, que as fazem pensar que ali não é seu lugar, que não levam jeito, que estão ali perdendo tempo. Algumas se atrevem a ir com a única finalidade de obterem um resultado, conquistarem o que querem e saírem de lá o mais rápido possível. Se não conseguem rapidamente, desistem, se contentam com a ideia de que não possuem talento para o negócio e fogem sem olharem para trás! Arrivederci!

Além disso, antes os médicos mandavam os doentes, idosos e as gestantes fugirem da prática física. Hoje, isso já não é mais padrão, mas ficou marcado no inconsciente coletivo que o treino é para quem já tem saúde de atleta! E isso já ouvi nos discursos de muitas mulheres com quem conversei.

Segundo relato de Xenofonte, Sócrates conversou com Epigenes sobre sua força física. Epigenes afirma não se exercitar por não ser um atleta, ao que Sócrates responde com uma lição sobre os benefícios do exercício e as consequências da negligência. Dentre os benefícios, e isso há milênios (!): a luta contra a depressão, manutenção da memória, combate à insanidade e a obtenção de força para enfrentar os perigos e proteger a cidade.

Sócrates fecha o argumento apelando para a própria vaidade de Epigenes, dizendo-lhe que "é uma desgraça envelhecer por pura negligência, sem descobrir que tipo de pessoa você poderia se tornar ao desenvolver sua força e beleza corporal ao máximo. Mas você não pode perceber isso se for descuidado, pois isso não acontecerá por si só." (Memorabilia, 3.12).

Tem uma frase, atribuída ao Sócrates, mas penso que ela seja mais é uma síntese desse capítulo de Memorabilia: "Nenhum cidadão tem o direito de ser amador em matéria de treinamento físico. Que desgraça é para o homem envelhecer sem nunca ver a beleza e força de que seu corpo é capaz". 

A história humana ocidental criou e uniu os conceitos da palavra academia há 2.000 anos, que hoje significa duas coisas em português: espaço de estudo acadêmico e espaço de treino físico.

Isso porque, por volta de 387 a.C. o filósofo Platão, seguidor do Sócrates, fundou a sua escola de educação superior e a chamou de 'Academia'. O nome é em homenagem ao herói mitológico chamado Academos - um cidadão prudente, diplomático e sábio protetor de Atenas. Um cidadão, veja bem, foi tido como um herói que uniu habilidades físicas e mentais para salvar seu próprio povo!

O conceito de 'cidadão', para os socráticos, é muito além do que entendemos atualmente. Cidadão é alguém com a virtude da justiça! É aquele que sabe seu papel na pólis e o exerce bem. A cidadania era atrelada a deveres e responsabilidades do cidadão para com a sua cidade-Estado - um conceito diferente do que temos hoje, em que cidadão é aquele que possui direitos individuais. Dentre os deveres do cidadão está o desenvolvimento de habilidades para exercer bem o papel a si atribuído. Platão, inclusive, desenhou uma cidade perfeita, em que cada cidadão desenvolvia uma habilidade e trabalhava para o bem de todos.

Ter força física, perceba, não desincumbe o homem da força mental. Somos indivíduos com capacidades que devem ser exploradas em prol, não só da nossa vaidade, como da própria sociedade, afinal, vivemos em bandos e precisamos uns dos outros - são 8 bilhões de seres interconectados entre si, numa pólis que não tem fronteiras. A saúde de todos é de extrema relevância, e os terríveis anos da Covid não me deixam mentir. Talvez não precisemos, neste momento, da força para as pandemias ou guerras, mas um soldado bom se prepara em tempos de paz.

Não quero pedir para que as mulheres à minha frente se preparem para um front, até porque, até o momento, uma ideia de guerra é absurda e não quero assustá-las a fazerem 4 séries de agachamento livre para carregarem rifles. Mas posso alertá-las sobre suas próprias energias, estimulando-as a serem fortes em matéria de força física porque podem por si mesmas e porque podem precisar para cuidarem de quem amam. Elas nunca saberão o quão mais fortes podem ser se não tentarem! Quero que lembrem que a força não vem de graça, pelo contrário, ela se esvai de graça, e é só com a força que conseguimos força.

Quero afugentá-las um tanto da vaidade estética, para poderem conhecer que a força física é também descobrir a própria força mental. E sobre o que diziam os filósofos gregos sobre os benefícios do treinamento, hoje isso se confirma na ciência mais avançada. Da criança à idosa, da pessoa obesa à paciente com câncer terminal. É fato que nosso corpo é mais feliz com o movimento.

Aristóteles, outro filósofo grego, também fundou a própria escola e ele costumava caminhar com os alunos, explicando-lhes sobre o mundo. Os discípulos caminhantes tinham até nome: peripatéticos. Esse método de aprendizado aristotélico consistia em caminhar pelos ambientes com a intenção de instigar o conhecimento. Queria poder conduzir a plateia pela sala...

E espero que com a minha fala tenham paciência consigo mesmas no lento reaprendizado do movimento corporal - mas só espero, pois, como dizia Rubem Alves: "A vida tem sua própria sabedoria. Quem tenta ajudar uma borboleta a sair do casulo a mata. Quem tenta ajudar o broto a sair da semente o destrói. Há certas coisas que têm que acontecer de dentro para fora." Que essa sabedoria as guie para uma nova dimensão de autoconhecimento.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Encontrei minha versão mais jovem pra tomar um café.

Encontrei minha versão mais jovem para tomar um café. 

O café é da tarde, nós duas nos atrasamos. 

Eu pedi 1 café sem açúcar. Ela pediu cerveja (da mais barata). 

Eu pedi um pão com ovo. Ela pediu outra cerveja.

Ela me contou que estava sedentária, tinha asco de dieta, que pouco se fodia para padrões capitalistas de beleza e se eu queria largar a mão de ser quadrada e pedir a 3a cerveja de litro para dividir com ela (que estava lisa).

Eu disse que não. Ela insistiu muito. Falei ‘não, porra, vai zuar meu shape’.

Ela retruca: que shape? Eu mostro o bíceps. 

Ela fica CHOCADA e propõe uma queda de braço. Eu falo que não é a hora de fazer uma queda de braço, afinal a ideia é que esse encontro fosse mais filosófico e terapêutico. Ela diz 'foda-se'. 

Eu ganho dela na queda de braço. Ela diz: melhor de 3. E perde 3 vezes.

Ela diz que entrará na academia e treinará para me vencer. Eu falo ‘eu sou você, porra!’. Ela fala ‘ah... é mesmo’. Eu pergunto ‘e só notou agora?’. Ela responde ‘eu nunca viraria 1 cuzona que não tem decência para acompanhar alguém num litrão’. Eu falo ‘ora, pois, virastes’.

Ela fica pensativa e me pergunta se eu enriqueci. Eu falei ‘querida, pelo estilo de vida que levamos, você tem mais é que se alegrar que chegou aos 30 intacta’.

Ela responde: 30?????? Eu confirmo ‘30’. Ela me diz que pediria outra cerveja, mas a grana acabou e que vai fazer amizade com o barman para ganhar outra.

Eu, bem ciente do vexame que está por vir, falo que não é para ela fazer isso. Discurso sobre a importância da saúde e como nunca é tarde para se precaver. Ela ignora e vai fazer amizade com o barman. Eu como meu pão com ovo e peço uma água.

Ela some por 40min e volta com meia garrafa de Askov. Eu fico encantada, de verdade, en-can-ta-da. Ela me pergunta se eu ainda consigo ganhar Askov de graça. Eu falo que tem outras formas de se morrer com 7 reais.

Ela diz: vamos sair pela noite, viver e sonhar. Eu, sabendo que a noite não teria fim, e para ganhar tempo, começo a falar sobre política. Digo algo polêmico e minto afirmando que o Aécio Neves virou presidente do Brasil e que ele foi ótimo porque era liberal. Ela me encara, bem no fundo dos nossos quatro olhos, ou melhor, oito, já que usamos armações, e fala por 50min sobre os males do liberalismo econômico enquanto esvazia a vodka. Ela tem salvo no celular 'A Internacional Comunista' e a coloca para tocar enquanto fala.

Eu, cansada, admito que era mentira, só para ela calar a boca. Ela gosta que eu saiba sobre o que ela gosta, eu gosto que ela goste que eu saiba do que ela gosta. E nos damos bem.

Ela me conta 10 piadas de tiozão. Eu rio das 10 e conto mais 20. Ela me chama para dançar. Eu falo “porque não?” e dançamos. 

Ela fala que eu sou muito massa e que bom que ela agora está ciente que tem garantidos mais dez anos e que vai aproveitar pra caralho até lá. Eu digo 'não, sua maluca!'. 

Ela me interrompe e me convida para tatuar uma cereja no seio pra testarmos o que acontece no espaço-tempo. Eu digo que talvez. E penso mesmo que talvez sim. Ela troca de assunto e balbucia sobre como é "top" ser hedonista, que o mundo é caos e só se vive uma vez, mas antes de terminar o raciocínio dorme sentada na cadeira. 

Eu a levo para casa, em segurança. Quando viro a esquina, noto que ela sai de casa como se não tivesse bebido nadica de nada, acende um cigarro e entra num carro suspeito com suas amigas.

Ah...

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A guerra começa nas mentes dos homens

Meu maior ato de rebeldia nos últimos anos é não formar uma opinião imediata, como pedem as redes sociais. E já fui criticada com algo como aquela frase do Desmond Tutu "Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor". É uma bela frase, não há como discordar. Até já me senti impressionada pela beleza argumentativa do paradoxo da tolerância, também. É aquele paradoxo do Popper que diz que a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. No entanto, percebo que é mais um jogo de palavras bonito do que de fato uma instrução moral e cientificamente embasada.

Isso não quer dizer que eu não forme algumas opiniões em velocidade alta - acontece que busco não expor algo de que não tenho certeza ou às vezes simplesmente não estou com saco para debater. Há que se ter disposição para se exprimir uma ideia e defendê-la com elegância. Isso porque gosto de argumentar, não de brigar. No entanto, os defensores das opiniões fast-food, como opinadores que são, rotulam de forma muito negativa, e muito rapidamente, os que escolhem pensar com maior vagareza sobre a notícia do momento - ou seria a notícia do minuto? Nem Desmond Tutu acompanharia tanta possível injustiça a que estamos expostos na internet. O Popper, sobre algum assunto, teria que ser tolerante!

Mas fast-opinadores gostam da fast-virtude que demonstram online. São viciados em simbolismos, e por isso são caçadores de polêmica. Possuem o instinto da caçada: miram e um sorriso se abre ao encontrar sua presa! Eis aqui a mais nova notícia! Eles têm uma fome insaciável de virtude.

Dizia o Kant que o humano, quando tem fome, não sabe separar o que é bom do que é ruim, e se sacia com qualquer coisa. O julgamento real da qualidade de um alimento advém da saciedade, isso porque a saciedade é totalmente diferente do gosto. Qualquer faminto preferiria um foie de gras do que restos, mas os restos lhe bastam. Na necessidade da fome, nos contentamos com lixo. Da mesma forma, na necessidade de aceitação social, o opinador se contenta com a demonstração da virtude, símbolos como <3 brotando nas telas de seus celulares.

A demonstração da virtude é muito mais simples do que exercer a virtude em si. O Montaigne disse que os egípcios não adoravam os gatos ou bois, eles adoravam os seus atributos, como a vivacidade gatuna ou a paciência bovina. Hoje o que se adora não é a justiça social, mas a capacidade que a justiça tem de transformar um homem simples num herói admirado. O que se adora é a admiração, a fama, o celular vibrando em notificações!

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A polarização política é uma boa fonte de polêmicas e o maior palco para se demonstrar virtudes. Apontar problemas e mais problemas e problematizar as soluções é uma das ferramentas de caça dos opinadores famintos. Um problema com solução é um problema a ser problematizado! Acontece que esse comportamento não faz mal apenas à sociedade na totalidade (o que pouco importa para um opinador), mas padece o próprio opinador (o que muito importa para o opinador).

A depressão, segundo artigo do Haidt, é tratada através da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). Na TCC, o estado depressivo é caracterizado por três comportamentos: catastrofização, pensamento polarizado e raciocínio emocional. 

Enquanto na catastrofização o paciente imagina os piores desfechos, no pensamento polarizado ele entende o mundo como se ele fosse simplesmente dicotômico - preto e branco, 8 ou 80, bem versus mal. Já no raciocínio emocional, o indivíduo descarta os fatos e conclui que sua resposta emocional é prova de que algo é verdade. Essas três distorções cognitivas, quando tratadas pela TCC, curam os sintomas depressivos. 

As distorções, no entanto, estão frequentemente presentes nesses opinadores viciados em demonstração de virtudes. A catastrofização, por exemplo, é uma forma potente de se conseguir seguidores. Percebo que o pânico vende tanto quanto o sexo - acho que ainda mais, atualmente. Nem é preciso aprofundar muito sobre o pensamento dicotômico, afinal, qualquer criancinha brasileira que não conta até dez sabe que os números '13' e '22' representam muita coisa.

Acontece que a ferramenta de caça, a necessidade de aceitação social por demonstrar virtudes, adoece tanto o opinador quanto seu séquito. Ele chama multidões! Mas para uma luta que sempre, sempre estará perdida! Não importa o que se faça, não importa que se pegue em armas, que se chore, quebre os laços familiares, de amizade, pinte as unhas, a cara, nada resolverá a tragédia do mundo. É uma epidemia de um pessimismo político que não traz alternativas de mudanças, não reconhece avanços e torce o nariz para a autocrítica. 

Quando leio sobre guerras, conflitos que aconteceram no decorrer da história, a saúde mental coletiva estava em frangalhos, polarizada, catastrófica e emocionalmente responsiva. É contraprodutivo seguir essa onda estranha de progresso pessimista.

É uma experiência tão surreal ver que os progressistas criaram uma tradição culta, exclusiva, e... antiprogressista. O que seguem, veja bem, não é o progresso, é o modismo. O cômico é que, há alguns anos eles mandavam os inimigos lerem livros, hoje, com a terapia trending e a doença mental usada como desculpa para o estafamento, os mandam para a... terapia! 

O tratamento é a autocrítica, fazer o opinador perceber através dos fatos que ele se machuca, é ir de fato a terapia. É tratar a mente, o preciso local de onde o monstro da guerra ruge. Não, obrigada, não vou subir nesse trem descarrilhado, o papo romantizado de guerras deixo para a ficção. Por sorte, o heroísmo do opinador atual pertence ao metaverso, nas trincheiras virtuais. Até porque, atrás de uma trincheira real, hasteariam uma bandeira branca - só não estão cientes disso.

Certa está a UNESCO: "Uma vez que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem ser construídas”. Creio que do absurdismo proposto pelos opinadores, surgirá uma contracultura mais humanizada, disposta se articular melhor e a seguir em frente. Sabe? A frente onde os progressistas rumam?

Essa contracultura se estruturará na ação prática, no agir localmente, na conciliação, no reconhecimento das conquistas, se utilizará da tecnologia para fermentar a mudança... já vejo isso acontecendo há algum tempo, e me sinto parte disso, só de não correr para abraçar qualquer causa que apareça na página inicial do Instagram ou de reconhecer quando estou caindo em algumas das distorções cognitivas depressivas.

Assim como deixamos o arquétipo do cara do cigarro descolado, deixemos para trás o que não serve para o bem do mundo, por mais descolado que pareça. Tratemos a mente antes de tratarmos de guerra. Que sejam as mentes semeadas pelo humanismo e pela ciência!

Não tenha dúvidas

É tudo, absolutamente, sobre você

Era sobre você muito antes de te conhecer

E ao te conhecer descobri sobre o que tudo era

É a você e a ninguém mais e a ninguém menos.

É sobre você nos últimos anos, nos últimos dias

É sobre você agora, nesta hora, e na hora depois

No dia depois, no ano depois e na próxima década

É sobre você depois da vírgula, e deste ponto final.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Poetria XXXVIII

Flâmula delicada e sorrateira, 

amorna alma... Vá, amorna...

Mas, é no fugir da hora

que ascende, inflama e se incendeia

Cresce febril no avançar da idade

Quanto mais longe, mais arde

Queima no peito a tal saudade.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Para cada pepita, quanto cascalho!

Escrever romance é fácil. Difícil é escrever um bom romance. A qualquer deslize tudo fica bregalíssimo! Essa é a saga de quem procura romances: é buscar ouro nativo entre a ganga da vida, com muita esperança no ilusório trabalho, mas para cada bela e preciosa pepita há muito — mas muito — cascalho!

O primeiro filme que me vem a memória de ter assistido foi Titanic... ou talvez tenha sido 'Meu Primeiro Amor'? Não me recordo bem da linha temporal, mas assisti na mesma época. Esses filmes foram sucesso de bilheteria e a fórmula foi copiada à exaustão. Não quero entrar no mérito de quem copiou de quem, porque nem Shakespeare sairia ileso. Acontece que a maioria das histórias de romance gira em torno de uma paixão inicial, depois rola algum impeditivo para o casal — um iceberg, algumas abelhas, a família, a diferença de classe social — e, então, a tragédia ou a redenção. Graças a John Green, muitos corações foram partidos pelo câncer na última década.

 Não estou criticando o Green, ele separou a Alaska por outros motivos existenciais, e mesmo quando escreveu sobre câncer, ele fez tudo muito bem. As páginas do meu exemplar de 'A culpa é das estrelas' deve estar manchado de rímel até hoje... Essas histórias de romance são pepitas! Tal qual Harry e Sally, que desenvolvem um amor para lá de maduro, que brota de uma amizade consolidada, ou como a a demoníaca Hilda Furacão com seu santo Frei Malthus. O que me enjoa são os cascalhos, os derivados, as histórias genéricas que infestaram as locadoras dos anos 2000. Salvo exceções — vá lá, 500 Dias com Ela —, o gênero se tornou um clichê cansado. Crepúsculo lançou a última pá de terra sobre um gênero já saturado.

De lá pra cá, não encontrei um grande lançamento de romances modernos - muito menos de bons romances modernos. Pausa para ressaltar que a partir de agora estou limitando a histórias novas e originais, e não adaptações, como Anna Karenina porque o adultério já estava lá no Tolstói há décadas, antes mesmo de 'As pontes de Madison'. Ambos os filmes são supimpas!

Entre os bons romances, destaco Amor (2012), que ousou mostrar o amor na velhice — aquele trecho dos votos que quase ninguém quer contar: "na doença, na tristeza e até que a morte nos separe". Foi inovador. Quase ninguém fala sobre o depois do “felizes para sempre”.

De todo modo, os escritores que buscam a originalidade, coitados (e pobre de mim), estão de mãos atadas, já que não há mais impeditivos morais plausíveis para que duas pessoas se amem. A morte já foi explorada até a exaustão. A efervescência hormonal da paixão inicial não convence mais. Ninguém aguenta finais de novela com casamentos e mocinhas sofredoras que nos causam gases. Há romances modernos, claro, como nos K-dramas da Netflix, mas muitas vezes o amor ali é tão insosso que o protagonista se apaixonaria por qualquer mocinha boazinha e indefesa que fosse maltratada na sua frente. Os arquétipos são os mesmos, a única novidade é o momento do beijo, afinal, ele acontecerá no final ou muito próximo do final?

Cadê as pepitas modernas? As Annas, Hildas, Sallys, Summers? Cadê personagens femininas bem construídas em bons romances? Onde estão os homens tridimensionais? Os Malthus, Harrys, os Jacks? Pensei comigo: Não é possível que Fleabag carregue todo o peso, sozinha, de ter feito um bom romance nos anos 2010. Aproveitando a deixa sobre Fleabag: não, padre, não passou e nem irá!

Enfim... dentre as gangas da vida, encontrei uma pepita hoje e torço para não ser ouro nativo isolado nos anos 2020. Acabei de assistir Anora. Um filme original, ainda que com inspirações óbvias. Ele traz Uma Linda Mulher para um contexto bem mais… realista. Anora não é uma protagonista parva que tudo suporta pelo príncipe encantado. Ela não suporta tudo. Só suporta demais. 

Terminei o filme e estou aqui, catando os caquinhos do meu coração. Sim, sim, a história não é inédita, mas é contada de forma nova, atual, é bem atuada e bem filmada. As mais de duas horas passam voando. A Ani é uma mulher do tipo que a sociedade entende que não tem direito de amar. Está num contexto em que o amor não é crível, seus sentimentos são a todo tempo negados, e negados de um jeito bem moderno de se negar o amor. Os anos passam e os pecados se atualizam.

Como filmes de romance são tão difíceis de se encontrar, gosto sempre de pontuá-los mentalmente, mas decidi comemorar textualmente. 

Bom filme, Anora, as indicações a prêmios são merecidíssmas. 

Meu único erro? Não ter comprado um sorvete para poder assisti-lo sob os rituais dos filmes de romance.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Disorder

 Estou ouvindo 'Disorder' do Joy Division. Esse tipo de som, que sei lá o que é, me dá a mesma sensação de ver uma foto antiga. Bem antiga. Tirada com uma daquelas máquinas fotográficas de impressão instantânea. Me dá aquela sensação de ver os rabiscos adolescentes, feitos num tempo em que eu não existia.

 Mas mais que isso, é o som da minha própria juventude. É aquele ruído de colocar a minha jaqueta velha de couro, calças rasgadas, botas, do lápis de olho pintando meu olho de preto, do batom deslizando numa boca vermelha, do meu cabelo ruivo raspado fugindo de casa, pulando a janela, levando R$ 10 nos bolsos e um isqueiro. É o ritmo do meu caminhar até um beco escuro para encontrar os amigos. O carro furtado do pai por um dos caras, cheio de adolescentes, é a minha mão para fora sentindo o vento fresco da noite enquanto alguém me pergunta se alguém tem fogo. "Tenho".

 Disorder são as batidas de coturnos em poças d'água. De cigarros úmidos e cerveja em temperatura ambiente. É o que se escuta ao soltar pipa enquanto se fuma o baseado. Tem jeito de juventude selvagem, dirigindo pela cidade morta de interior, dançando em bares escuros e duvidosos. Tem jeito daquelas risadas mudas que ouvimos quando puxamos uma cena engraçada lá da memória. Acho que é esse som que a gente sente quando toca pela primeira vez em alguém que gostamos. É a sensação do all star, camisa preta, do primeiro sexo. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Como é difícil falar em primeira pessoa

 Ultimamente... nem tão ultimamente assim, mas nos últimos anos tenho fugido do meu mundo interior e me aprisionado no mundo material, adulto, ocidental, produtivo e corporativo. 

Dizia o Freud que toda fuga é uma prisão, e nisso ele acertou. A minha prisão é me enfiar em todo tipo de atividade física, tátil, concreta, que silencie minha mente dos meus devaneios anti produtivos. Há dias que não converso com ninguém para focar nessa ou naquela meta importante. Sou muito de me manter ocupada por não gostar da ociosidade, por fobia do tédio, por angústia de sentir... costumo até ter dois empregos por vez. No entanto, agora estou com um só. E com esse tempo livre, percebo as grades que construí em torno do meu coração. 

Acho esquisito escrever 'coração'. Mas esse é o símbolo internacional do sentimentalismo, e é ali por entre as costelas que tem algumas coisas metaforicamente importantes para a existência.

Está muito difícil ter acesso a mim mesma, como se vê. É desafiador falar dos meus sentimentos em primeira pessoa. Essa frase ali foi uma cesárea. Não é como se já tivesse sido lá muito fácil, mas agora é como se eu estivesse ainda mais distante e com a alma ainda mais enrijecida. Tenho essa mesma sensação da escrita com os desenhos e com a dança. Vou perdendo a prática, me distraindo, e quando retorno, as palavras são duras, os traços menos arredondados e o corpo demora a responder à canção.

Diz-se no filme Stalker do Andrei Tarkovski que a dureza e a força são atributos da morte, mas a flexibilidade e a fraqueza são a brisa do ser. Isso porque, na natureza, homens e plantas, quando nascem são maleáveis, e vão se enrijecendo com os anos. E estou compreendendo o tanto que me enrijeci: por muito tempo existo e não vivo. Desde criança eu nunca quis me esquecer de mim mesma, de ser frágil, brincalhona e criativa... Esse blog aqui, que preciso confessar, muitas vezes penso em deletar por completo, me faz de algum modo cumprir com esse ideal que eu tinha na infância. 

Esse blog brega, mal atualizado, de cores esquisitas e desorganizado é minha tentativa de ser tenra e maleável. Mas para escrever, sempre preciso passar por esse processo de ir me desenferrujando. Escrever aqui é como meditar, e é meditando que notei tudo isso.

Ontem, desenferrujei o corpo dançando no meu quarto, brinquei comigo mesma como na infância. Pintei meu rosto para ninguém além da Janis Joplin. Troquei diversas vezes de roupa como se estivesse num show do Fleetwood Mac. Meu desodorante foi meu microfone. Se houvesse um deus bondoso, ele com certeza criou o Rock! Dancei e dancei até os pés ficarem com bolhas. Rebel Yell!, Cum on Feel The Noize, Dream On.

Há tantas coisas que sei que estão no meu coração e que guiam minhas decisões no secreto do inconsciente! E por mais que eu escreva, é como se tudo não passasse de um aquecimento infinito. Queria que fosse mais fácil, assim como é dançar.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Escrita criativa pela manhã

O professor de escrita criativa nos pediu para que escrevêssemos tudo que nos viesse à cabeça, logo pela manhã, e cá estou, preenchendo esta página branca com diversos símbolos e esperando que meu inconsciente de alguma forma se manifeste. 

Pegarei um café. 

Peguei o café. 

Mas antes resolvi dar um cheirinho na minha cadela, a Lucy, não só porque ela é fofinha, mas porque eu pensei que ficaria legal acrescentar algum evento matinal nesse texto fluxo-pensamento. Aliás, tenho um livro com essa ideia de fluxo-pensamento da Hilda Hilst, que ganhei de presente da minha amiga Fernanda. Ainda não consegui ler. O ler. Lê-lo. A gramática é um mistério.

Fui interrompida por um pernilongo.

Matei o pernilongo. 

Sabe que eu penso muito nessa vida que acabei de tirar? Tenho pena de matar até as baratas, mas é a lei da selva. É o último resquício da natureza selvagem que temos nessa humanidade ultracivilizada e tecnológica: ou são elas (as baratas) ou sou eu. É a lei do mais adaptado a uma chinelada, como diria Alfred Russel Wallace. Alfred não sobreviveu à lei social da sobrevivência histórica. As luzes ficaram todas sobre Darwin... pobre Wallace.

Nós, humanos, nos adaptamos aos tapas e às chineladas de mães. Nenhum chinelo Havaianas de tamanho 36 nos mata. Falta às baratas essa violência materna... Bem que nossas mães nos falam, “se não aprender em casa, aprenderá na rua” e é assim que aprendemos a sobreviver aos chinelos e aos tapas, ao contrário das baratas e dos mosquitos. 

Pobre mosquito, eu fui a rua que ensinou à sua espécie que não é era hora de zumbir enquanto um humano tenta desbloquear a criatividade numa atividade do professor de escrita criativa. À longo prazo minha atitude reforçou a comunidade mosquita, ao passo que enfraqueceu a humanidade. Não é, Wallace?

 Bem... alterei o tamanho da fonte, arrumei o espaçamento. Por qual razão estou escrevendo esse texto, mesmo? Ah, o exercício!

Qual a diferença entre a minha vida e a das baratas e mosquitos? Não é só um chinelo que nos distancia como espécie, é ainda mais a escrita. O que nos distancia, também, é esse café fraco. Tenho certeza de que se insetos tivessem polegares opositores eles jamais passariam um café tão fraco quanto esse que fiz hoje. O que nos distancia também é a preguiça. Não vejo baratas terem preguiça de nos atazanar e nem mosquitos de buscarem sangue, mas eu fiquei com preguiça de reabrir o pote de café para colocar tão somente uma colherada a mais na cafeteira Electrolux. 

Também acho que os insetos poderiam muito bem, com seus polegarezinhos opositorezinhos, e utilizando de um tecladinhozinho de computadorzinho escreverem algo muito mais interessante numa folhinha de papel, a pedido do professorzinho de escrita criativa. Insetos vivem muito menos tempo, como esse mosquito que acabei de estapear, mas muito mais intensamente e, portanto, teria esse mosquito muito mais histórias para contar do que eu em 30 anos. 

Se eu pudesse, entrevistaria uma barata (mas só através de vídeo chamada), ela com certeza seria muito mais parecida conosco do que gostaríamos. A barata sai do esgoto, passa nos canos, no lixo e quando está muito hedonista bebe detergente e fica voando feito uma tonta para assustar os humanos. 

Acho que se os humanos encontrassem uma espécie superior que nos visse como baratas e de nós tivesse nojo e medo, não é extremamente provável que alguns de nós fizesse exatamente isso? Alguns pegariam suas motos e fariam manobras no chão para assustarem essa espécie dita tão “superior”. Superior em quê? Só em tamanho? Otários! ahahahaah... Acho que outros humanos, por outro lado, passariam a adorar essa criatura superior e teriam nojo da própria espécie. Talvez houvesse um culto em que as pessoas andassem de salto alto para as homenagearem a altura. É outra coisa que nos diferencia dos insetos: eles não pensam nessas bobagens, a nada louvam. A barata, barateia. O mosquito, mosquita. E o humano... bom, o humano escreve um texto para tentar ser criativo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Viver intensamente

Viver intensamente não é o que pensamos: não é fumar, beber ou viver como se não houvesse amanhã. Não é como fez o Claudemir, que, ao fumar um baseado pela primeira vez aos 16 anos, disse aos pais que os olhos vermelhos eram culpa de alergia. Ou como aos 32, quando se embriagou com meio litro de vodka, traiu a esposa e justificou a mancha de batom na camisa dizendo que era vinho tinto.

Mentir é uma forma de fuga que nos aprisiona das possibilidades da vida. Ouviu Claudemir? Viver intensamente, ao contrário, é ser sincero! É fazer algo que honestamente se quis fazer e depois encarar as consequências do que se fez. Não é cursar contabilidade por medo da reação dos pais a um curso de filosofia. Talvez tudo pudesse ter sido mais simples se Claudemir tivesse dito: “Sim, mãe, experimentei um baseado hoje.” Quem sabe, anos depois, ele poderia rir desse episódio com ela, porque na época isso tudo teria estreitado os laços familiares e ele não teria sido tão julgado por não aceitar o ingresso em Contabilidade na USP. Ou, em vez de deixar o casamento naufragar em culpa, poderia ter dito: “Meu bem, bebi demais e a mancha de batom é do Boticário. Arrependo-me. Você ainda quer ficar comigo se eu prometer mudar?”

Viver intensamente é ser honesto consigo e com os outros. É dizer “eu também te amo” depois de uma declaração de amor e viver o que o amor tem a oferecer. Mas também é, como a esposa de Claudemir, ter coragem de admitir que o casamento não é mais o mesmo desde aquela camisa suspeita. Por que continuar lavando as roupas de quem já não inspira amor? Por que largar tudo para lavar roupas? É olhar para si mesma e decidir: “Não está mais funcionando.” É recomeçar sozinha ou com outra pessoa, voltar a ser veterinária ou, quem sabe, descobrir que seu sonho mudou.

Viver intensamente é ver que aquela não era a sua profissão dos sonhos e que o consumismo exacerbado talvez fosse uma forma de autoengano. É, na verdade, não ser veterinária, mas ser dentista. É dar conta de seguir o sonho da segunda faculdade enquanto se lava cachorros pela manhã, sem medo de falhar! É terminar o curso de odontologia e depois juntar o dinheiro para o consultório. 

E então, num acaso da vida, reencontrar Claudemir no shopping e conversar com ele sobre a última década. É aceitar que agora, aos quarenta e dois anos, nenhum vê o resto da vida sem o outro. Que um não se vê contador, mas professor de filosofia, e que a outra não se vê sem os caninos humanos. É aceitar que é hora de tentar de novo.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Poetria XXXVII

Poetizar é ser ridículo com convicção 

Observe a ventura de sua ação

Caneta nas mãos! 

Poetizar é ser também pesquisador

quando a conclusão rima com 'dor'

Sobre o método, o sumário:

um mesclar criativo do abecedário

O poeta barbado por baixo dos pelos

abaixo das farpas 

da musculatura, dos ossos, da alma

descansa e feito criança

encara de frente e conceitua

os sentimentos inominados e seus derivados 

que fazem da carne ser mais que a sua

Se a humanidade não os nomeia por timidez

ou preguiça, ou ocupação

o poeta sutura a teia com uma oração 

Engendra-se pela lacuna da compostura

vê o que mora no espírito de toda criatura

que nasce e cresce contra a própria vontade

Vã é a saciedade da curiosidade

Quando os encontra não há faculdade

A não ser relatá-los com sua boa sinceridade 

por não caberem nos vernáculos tantos dilemas

cabem decerto nos ternos poemas.

Defeituosa

Nem boa nem má, mas não nada

Perfeccionista desorganizada

Niilista cheia de esperanças

Impulsiva viciada em segurança


Princípios sinceros que dão preguiça

Prepara o banho com areia movediça

Executa o que nunca se planeja 

Colhe os frutos podres de bandeja


A imaginação solta flui, mas a breca no papel

Aponta os dedos para si própria, enquanto olha para o céu

Segue de passo firme o perfume da rosa-dos-ventos


Busca a paz com clamores violentos

Intuitiva defensora das metódicas ciências

Apática de coração de ambivalências.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Conclaves

De uns anos pra cá ficamos muito ocupados, eu e meus amigos. Todos tão sobrecarregados com nossas próprias vidas atarefadas, que utilizamos os finais de semana e feriados para o sono recuperativo e não para a gandaia festiva, como antigamente. Não os vejo por semanas, meses! Até nos sonhos nos desencontramos. Adulto cansado sonha em tela preta. O cérebro à meia-luz não produz imagem.

Olha, deixar de ser um bicho gregário era algo impensável para mim há menos de uma década... Bem que me alertavam que aos trinta a coisa ficaria assim, que a vida não seria um Friends

Marcar o encontro é uma tarefa à parte. Um diz "temos que nos encontrar, hein!" e o outro responde "qualquer dia desses" e ficamos nessa até que um de nós leva a sério e marca data, local e hora. Geralmente se trata de aniversário ou despedida - datas irrevogavelmente gregárias.

Se vamos adiar a sesta, fazemos por bem nos encontrarmos para um bom cafézinho, obrigatoriamente num lugar bom e aconchegante para conversarmos por muitas horas e colocarmos o papo em dia - até o próximo conclave. 

Se chego antes no local, procuro sempre uma mesa em um canto mais silencioso, sem ecos ou muita gente por perto. Sou meio surda, e nada me irrita mais do que ter que pedir para a pessoa repetir a história — a emoção da narrativa original se perde. Sim, admito: estou ficando ranzinza. Quando encontro a mesa ideal, o ritual começa: aquecemos a conversa, desenferrujamos as gargantas e passeamos por todos os tópicos possíveis, desde metafísica até marcas de café, passando por política, economia, moda, biologia. E colocamos as gargalhadas em dia, também. Gargalhamos por todas as gargalhadas que não gargalhamos juntos nos últimos tempos. Por qual razão adiamos tanto esses preciosos encontros? Me revigoram muito mais que a cafeína, isso eu garanto. 

Às vezes, alguém se questiona se a mesa ao lado está nos ouvindo. Bem, em primeiro lugar, acho improvável que se interessem por algo que não seja fofoca. Até porque não fofocamos — longe disso. O que fazemos é analisar a vida alheia como objeto de estudo biopsicossocial.

Em segundo lugar, se por acaso a mesa ao lado se interessar por nosso papo, não me desespero. Talvez sejam outros adultos que não presenciam há muito tempo uma conversa entre amigos... De todo modo, só pessoas especiais engajariam na nossa conversa e por isso deveríamos é nos sentar na mesma mesa. Afinal, se falta um parafuso aqui, falta outro acolá. Daí conversaríamos sobre parafusos.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Produção de texto

 Estive olhando para a minha lata de lixo e refletindo... Os estudiosos do português por aí dizem que a reescrita é a parte fundamental na produção de um texto. E de fato é. Mas perceba que o poema, a crônica, enfim, todos os tipos textuais são formas de mascaramento do que realmente sentimos. Isso porque cada texto possui uma estética que nos aprisiona a um dado estilo. A arte da revisão trata-se, na verdade, da confecção de uma bela mentira.

 Na reescrita, rearranjamos aqui e ali a ideia, adequamos as palavras aos conceitos mais precisos. Temos que arrumar as incoerências para não soarmos cafonas e o reformamos para o agrado popular. O trabalho dura horas! Não existe a palavra adequada àquela sensação? Trocamos por outra que faça sentido gramatical e acabamos por realocar a frase inteira! No final, sequer sabemos o que antes estava escrito.

 A reescrita é uma prisão social, não é o texto refeito para si mesmo, para o autoentendimento, mas para o entendimento dos outros. E nessa tradução se perde muito do conteúdo original, essencial, cru, autêntico! Por exemplo, os porquês. São tantos! Na minha opinião, o porquê mais bonito é o "porquê" - eu particularmente usaria ele e apenas ele em tudo, mas como devo me fazer entender, vou lá no Google para ter certeza se é o por que, porque, porquê ou por quê. 

Ah, esse processo todo trava o raciocínio de uma metáfora! Estava indo tão bem a produção textual, até que tive que buscar se é "viagem" ou "viajem", e até compreender tudo e relembrar o que é substantivo, já nem se precisava mais mencionar o assunto no argumento. Transformei a frase num texto que foge totalmente do meu sentir e vira uma crônica. Se não fossem tantas regras, meu amor, já teria um livro cento e dez porcento honesto!

 Verdadeiro, de verdade, é o que consta do nosso diário pessoal e secreto. Ou melhor, naquele rascunho do rascunho do texto. É autêntico aquele primeiro pensamento solto, jogado na folha de papel, com erro ortográfico, incoerente, que num primeiro momento de alienação social pensamos se tratar de uma porcaria, quando na verdade reflete tudo de mais sincero. E é bela! É bela a frase intocada pelas grades da estética! Ali que está a sinceridade que tanto procuramos: na folha de papel amassada e jogada na lata de lixo. 

Vamos à comprovação!

Vou até o lixo buscar a mim!

Abro o papel:

"T amar é 1 viagem de sentimentos mas porquê meu coração nã pára em uma estação?"

Amasso novamente. Agora passo no triturador.

Deus salve a estética!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O idiota essencial

 Luis Fernando Veríssimo vê o homem apaixonado como a parte mais honesta da experiência humana, é o cerne do que o constitui como individuo, é o seu âmago, é o que dá o pontapé celular inicial das propriedades da carne, é o idiota essencial; é aquele cara atrás de um poste, que finge encontrar ao acaso a mulher amada no local em que ele sabe que a iria a encontrar. É o cara que simula ler, no poste, a lista de bichos e à proximidade dela diz "olha que coincidência". O verdadeiro homem seria aquele imbecil ali, e não o cidadão adulto e razoável que o mascara. O homem nunca é tão ele mesmo quanto atrás daquele poste.

Não atrás de um poste, mas atrás de uma caneta, esteve o Vinícius de Moraes, o idiota essencial mais elegante que conheço, um aficionado pelo apaixonar-se. O Toquinho, seu parceiro musical, já confirmou isso num podcast recente, falando que havia nele uma busca incessante pelo amor da vida. A sua amiga, Tônia Barreto, no documentário Vinícius (2005) o descreveu como uma espécie de Don Juan, que se autoinstigava à paixão só para ter sobre o que escrever. De fato, foi um grande apaixonado. E um apaixonado em série!

 O impasse do Vinícius é que logo após a conquista da paixão arrebatadora, ele se esgotava do fogo da poesia e logo ia arranjando desculpas para partir para outro "amor da vida". Entre elas, implicar com uma cirurgia do nariz que teria desfeito a bela e única face da musa. 

 Fico pensando... se ele escrevia tão bem quando apaixonado, o que não escreveria se tivesse amado de verdade alguma de suas musas? Imagine só as epopeias! Ou talvez, tivéssemos perdido um grande poeta brasileiro para o absoluto silêncio... Isso porque, mesmo tendo à disposição a sensibilidade, criatividade e a inteligência necessárias para se escrever poemas sobre o amor de verdade verdadeira, amar é uma dessas coisas que nos deixam realmente sem palavras. É parte tão fundamental do nosso íntimo, ainda mais que o poste, que sua expressão é manuseada com grande cuidado pelos maiores autores do mundo, como o Pablo Neruda nos Cem Sonetos de Amor.

 O Neruda foi o tipo de autor que, no auge do sentimento, conseguiu conectar as exuberâncias da rosa de sal, do topázio e cravos com a ardência da paixão e, sem soar brega, disse que nada dessa exuberância toda representava o amor que ele sentia pela Matilde Urratia. Infelizmente as palavras limitavam a correta descrição precisa daquele amor em palavras (e ele tentou pelo menos 100 vezes!). Apesar da limitação, a mensagem alcançou certamente a destinatária, isso porque os amantes são cidadãos de um mundo feito de entrelinhas. E entre as linhas do poema XVII... como deve ter sido para Matilde saber que ela era amada como se ama a certas coisas obscuras, secretamente, entre a sombra e a alma? Talvez só sendo amada assim. 

Escrever sobre amar, como sentimento, não como ato, é como pisar numa corda bamba que, a qualquer deslize, é ridículo. E escrever enquanto se está embriagado de amor é ainda mais complicado. Bom, se me acusarem de passar todos os dias a falar sobre o amor, mea culpa!, confesso que falo, mas calo muito... muitíssimo mais o que sinto. E isso a contragosto. 

Sobre o amor, esse grande mistério à plena vista, não escrevo, presto reverência.

Omeprazol

 Para o estômago se usa muito o omeprazol - um alívio temporário que não cura. Para sabermos o motivo da azia e cessá-la em sua essência, consideramos a possibilidade de que aquela pizza talvez tenha sido a culpada. Contudo, é difícil apurar uma intolerância quando nosso cardápio é aleatório. 

Os nutricionistas nos impõem uma rotina para investigar se a culpa é do glúten ou da lactose. Retira-se o glúten, observa-se. Reintroduz-se na dieta e elimina-se a lactose. Está formada a equação. Note como é necessária a exclusão de certos grupos alimentares para perceber que o pão desceu bem, mas o queijo é que nos coalhou. As variáveis foram isoladas e o resultado é claro: evite a lactose.

 Na vida, cabe a metáfora: Exclua-se de certos ambientes, corte alguns contatos e teste! Se os gases pararam, meu bem, o certo é que não os retome.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Crise

 O que fazer numa daquelas crises de ansiedade? Lembrar de inspirar, logo em seguida, espirar, nessa ordem. Repetir o ato de respirar numa frequência mais lenta e autoconsciente. Tomar um chá de camomila. Lembrar de respirar enquanto toma o chá - não demais para evitar afogamentos. Banhar-se com água morna. No mundo ideal nos chuveiros existiria a opção de se banhar com chá.

Tenha alguém para conversar. Melhor se for alguém que se pode levar para baixo do chuveiro para conversar sobre como seria bom se de lá caísse chá de camomila. Senão, outro alguém. Um alguém legal, confiável, que julgue pouco e ouça bem - características similares as de quem se poderia levar para o banho. Ou se expresse de algum modo, num blog, por exemplo. 

Planeje o dia seguinte, anotando os afazeres numa folha de papel. Medite com aquele tal método dzogchen. Leia um livro sobre um assunto leve, como 'O pequeno livro do amor'... ou um assunto muito entediante, como um manual Direito Tributário.

Lembre-se, por fim, que não morrerá. Ao menos não imediatamente. Se imediatamente, aconselho que pule o banho, o chá de camomila etc. e vá direto para a UTI. Mas se o seu tempo restante for o de uma infusão de camomila, o tráfego estiver ruim, saca? Opte pela infusão e descanse em paz.