Em 2024 eu tive, por obrigação, que desenvolver um projeto de extensão na universidade em que leciono. O projeto não poderia se limitar aos acadêmicos, devendo alcançar a comunidade naviraiense. Pensei, pensei e pensei: Clube de Leitura.
Acontece que as pessoas não leem muito. Na verdade, mais da metade da população brasileira não lê, e mesmo ali na sala de aula, muitos não sabiam dizer a última vez que leram. Pensei, então, que seria uma boa oportunidade para estimular uma mudança positiva no mundo - começando por 57 alunos do curso de Direito que estavam forçados a comparecerem. Para tanto, deveria convencê-los a ficar de corpo e mente. Convencê-los que a leitura é importante e sobre o porquê ler sobre coisas inexistentes é tão legal.
O cérebro de quem lê é diferente. Não sabia? Pois esteja ciente: A leitura é mais complexa que a fala. Nas minhas pesquisas para justificar essa afirmação, encontrei informações interessantíssimas para compartilhar com os integrantes do clube. Se uma criança é colocada em um ambiente conversacional, desenvolverá eventualmente a conversação, mas se colocada em uma biblioteca, ela não entenderá os sinais estranhos do papel, não saberá convertê-los em palavras por hábito. Para a leitura, é necessário o ensino, tanto para o desenvolvimento de frases coesas como para o desenvolvimento da atenção. Da atenção? Sim! É preciso atenção quando se lê. Mesmo que não haja uma entonação da voz, a leitura atenta ensina a imaginação a ouvir.
Ler é útil por muitas razões: entendermos orçamentos, instruções, o Vade Mecum, um Recurso Extraordinário e aquela primeira carta de amor. Podemos ir além do útil: ler algo que não está restrito a nós mesmos, nem mesmo à nossa terra... ou nosso tempo.
Não faz muito tempo que viajei para a Colômbia, parei em Belo Horizonte nos anos 1960, passei por Macondo, fiz uma refeição num restaurante no fim do Universo e até ancorei em Ankh-Morpork. Esse fenômeno mágico de ser hipnotizada por símbolos e crer neles tem até nomenclatura: suspensão voluntária da descrença.
Mas por qual razão recorremos à literatura ficcional? Talvez a resposta tenha sido dada pelo poeta Rainer Maria Rilke. Ele me fez pensar que as coisas não são fáceis de se aprender e que a maioria dos acontecimentos é indizível - eles ocorrem em espaços não totalmente penetrados pelas palavras, e por isso os traduzimos através da arte. Mais indizíveis ainda são as obras de arte, essas existências misteriosas que se criam ao lado das nossas, no mesmo universo, mas num plano inexistente. Estranho, não?
O escritor sonda as próprias profundezas, aceita a existência em todo seu alcance abstrato e se empenha. Como é curioso o processo de um escritor que, com uma máquina de escrever, uma folha em branco, pensa consigo "E se todas as pessoas, de repente, ficassem cegas?" e escreve "O disco amarelo iluminou-se".
Nosso cosmos existencial não é feito tão somente de semáforos, aviões, relógios, mas de coisas que não são feitas de átomos: sonhos, medos... coisas que assombram nossos instintos. O sonhar acordado, perceba, é imaginar o que está além das fronteiras do conhecimento, da própria vida. É alcançar um portal mágico, é o arrepio das premonições, é ver o invisível sem os olhos!
Talvez os antepassados assustassem as crianças para que elas não tocassem as chamas da fogueira, antes mesmo da escrita cuneiforme, mas literatura, escrita, que registra em símbolos a fantasia, começou, mesmo, por volta do século XIX, e em língua inglesa. Aprendi com o Jorge Luis Borges que um dos exemplares da leitura fantástica foi Rabelais (XVII).
O que encontramos na leitura de ficção, do tipo fantástico, é a surpresa. Na leitura fantástica é criado o ambiente propício ao medo (casarão, chuvas, raios), após, é criado um contraste entre a normalidade e o evento incomum. Durante a história da fantasia literária, os autores descobriram que não revelar o monstro, completamente, também é uma ferramenta eficaz. A surpresa muda o leitor e o leitor exige mais da surpresa.
Os livros ficcionais podem nos fazer sentir a tensa paixão entre a prostituta Hilda e o santo Frei Malthus para expressar as problemáticas do moralismo que ferveu o caldeirão da Ditadura Militar brasileira. Por outro lado, podem ser escritos para simplesmente nos fazer presenciar uma fórmula amorosa insossa e esquecível.
A leitura apaixonante, mesmo, é a boa leitura. As boas obras de arte surgiriam dessa necessidade de tradução das coisas indizíveis, não conhecidas, inexploradas, interessantes, desse cosmos existencial ao qual estamos condenados a passear.
Como separar a boa leitura da má leitura? Qual livro escolher na estante?
O Schopenhauer aconselha evitar a prateleira dos best sellers. Os mais vendidos, que causam grandes rebuliços públicos, muito famosos, cheios de edições e fórmulas, não merecem a compra, pois são frutos da limerência pelo dinheiro e não do amor à literatura. Livros assim, geram grande impacto por atingirem mais pessoas, justamente porque a maioria das pessoas se identifica com futilidades, coisas levianas, que não engrandecem a existência.
Mas é preciso ler sempre? Nunca largar um livro? Bater metas de folhas lidas transformando absolutamente tudo em Alta Performance? O Arthur Schopenhauer disse que não.
O excesso da leitura tira a elasticidade do espírito da mesma forma que uma pressão contínua tira a elasticidade da mola. Isso porque a leitura é um substituto do pensamento próprio - a suspensão da descrença é deixar-se conduzir pelo pensamento alheio. E se não há intervalos, se retirados os pensamentos alheios, o que restará? Nada ou muito pouco. E por essa razão existem eruditos que leram até ficarem BURROS.
Tão importante quanto a arte de ler é a arte de não ler (principalmente obras ruins).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
E aí, o que achou?