quinta-feira, 1 de maio de 2025

Hora da diversão

Duas horas. Foi o que usei para assistir ao filme Playtime (1967), que possivelmente inspirou a estética de uma série que gostei bastante chamada Ruptura (2022). O filme fez uma curiosa previsão do futuro, o diretor acertou em cheio! O formato daquele mundo cinematográfico é muitíssimo similar ao que vejo hoje. Jacques Tati, ao invés de estar rolando o feed do instagram, estava lá fora, observando. Observando a arquitetura moderna — ainda uma recém-nascida.

Em Playtime, demoramos pelo menos 30 minutos para perceber que ele está ambientado em Paris e que a primeira cena se passa num aeroporto e não numa delegacia ou enfermaria. A estética é retangular, cinza, e written in english - for the foreigners, of course.


Tudo é funcional. O trabalho é silencioso e a comunicação é uma burocracia tecnológica ininteligível. Só sendo um cidadão daquele universo corporativo para compreender o que significam as setas, botões, corredores e elevadores naquele labirinto amoral e cru. 

Tudo construído para o absolutamente útil: o trabalho é onde se deixa a vida em suspensão para produzir. A arte corporativa é a fotografia do CEO, em preto e branco, pendendo entre paredes de vidro. Nenhum local é diferente de outro local. A recepção é idêntica à cobertura.



Não só os prédios são genéricos. As pessoas também. Pelo menos à primeira veste. A moda estrangeira feminina é um ornamento de flores na cabeça, mas idêntica no restante. Tal qual os corredores das empresas, uma pessoa é idêntica a todas as outras.

A música? É a buzina de carro nos infinitos engarrafamentos. Os carros todos brancos, pretos e cinzas. Amontoam=se nas ruas, nos estacionamentos, no drive-thru. Os homens inserem moedas nos parquímetros com o mesmo instinto em que respiram. 

As ruas são para os carros, é proibido vaguear a pé. Se quiser perambular, que seja nos metros quadrados da própria casa (mas não demais, para não incomodar os vizinhos). 

A seta para a direita é para à direita - nada mais! Se quiser ir em frente, vá a uma rua que permita isso. A polícia está de olho e pronta para redigir a infração!

O entretenimento? Observar uma nova janela sendo instalada em um prédio. Aquela excitação do mais novo retângulo acinzentado da cidade sendo levantado. O símbolo do moderno. Da inovação!

Anoitece na cidade. O que muda? O que muda é que escureceu e agora as luzes estão acesas. As famílias felizes, são todas iguais - salve, Tolstói. Todos os maridos chegam em todas as casas às 18h, estacionam seus carros nas garagens com parquímetros, beijam suas esposas, tiram seus casacos, abrem suas cervejas, ligam suas televisões e assistem ao futebol.

Baixei o filme de forma pirata e tive muita dificuldade em encontrar legendas. Ao terminar o filme concluí que nem sequer precisava delas! Os diálogos são todos tão genéricos e o que importa, mesmo, de verdade, são os atos, a confusão e o desajuste social de um ou outro divergente que se mete sem querer em frente à câmera. 

Durante o filme fui me sentindo alienígena, como se estivesse observando algo muito novo, quando, na verdade, estou mais habituada à paisagem do que gostaria. Fiquei com a impressão de ter sido apresentada às imagens não editadas de um documentário.

Vamos ao bingo de Playtime: Arquitortura, acinzentamento e inglesamento.

Temos os prédios utilitários retangulares e antipáticos espalhados como uma praga na arquitetura moderna? Temos.

Temos uma vista mais cinzenta da janela de nossas casas? Com certeza - inclusive, já existe um estudo interessante da Science Museum Group que demonstrou que a paleta de cores do mundo vem ficando cada vez mais restrita a tons neutros e frios:


Quanto à linguagem, não é novidade que o mundo corporativo brasileiro e descolado prefere a simplicidade inglesa norte-americana ao nosso not-so-cool tupiniquim. Estamos presenciando há alguns anos a englishzation das línguas do mundo todo, na verdade. Três vezes por semana lembro do Saramago prevendo que o nosso destino é a comunicação por grunhidos.

O filme segue, os últimos minutos se passam num restaurante de alto padrão recém reformado. Lá estão o arquiteto, os pedreiros, garçons, cozinheiros, o porteiro, os músicos se preparando para entregarem mais uma noite esterilizada aos turistas.

Os clientes entram, e tudo que é desordenado sai pelo elevador de serviço. A elegância, fineza e limpeza se instalam - bom, ao menos por alguns minutos. 

Em certo momento se percebe que a reforma não foi lá muito bem sucedida, e mesmo com o esforço do maître, os erros de uma noite agitada acontecem. A porta quebra. As luzes piscam. O ar-condicionado quebra. A comida é salgada por duas vezes por garçons confusos. A bebida esquenta os corações embriagados. A pista de dança se enche e ferve. O teto cai. O porteiro se descuida e todo tipo de gente se convida a entrar. As pessoas nem se importam. Cantam e dançam. A desordem se ergue e a noite é um sucesso! A festa se estende até o amanhecer.

Tal qual a humanidade.

A película me fez refletir que, apesar desse viés de conformidade, os humanos, em si, não são cinzas como esses prédios. Nas condições plurais nós florescemos, porque nunca estamos realmente mortos enquanto não entramos num caixão. 

O caos nos desperta com sua multitude. A bagunça é inevitável e sua desordem nos move, nos dando camadas, complexidade e aventuras. A aparência de crueza é da moda para fora, mas da essência para dentro tem sempre algo que tremula. Mesmo nos mais rígidos. 

E não há acinzentamento que ordene indefinidamente a humanidade. Basta uma fagulha para que os homens decorem tudo com vida.

Estou aqui, sem sentir que estou viva — quando estou. Sem sentir que as coisas acontecem — quando acontecem. Sem ânimo de escrever, escrevendo. 

Escrever é sobre apurar os cinco sentidos. Talvez o sexto. 

Onde há homem, há história.

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