terça-feira, 6 de maio de 2025

Entre altos e baixinhos

Numa cena do excelente "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" o protagonista retorna a uma memória da própria infância. Ele se encontra embaixo da mesa da cozinha da casa, brincando sozinho, olhando os pés da mãe passando pra lá e pra cá, e sente de novo aquela solidão tão singular das crianças. 

Tenho muita dificuldade em fazer meus autorretratos, acho que tenho cara de nada e nenhuma característica marcante. 

Então resolvi que me desenharia como me sinto. 

E sabe o que saiu? Uma euzinha pequenininha. 

Enquanto desenhava senti uma tristeza... aquela tristeza do menino debaixo da mesa.

A eu do desenho morava numa casa lotada. 

Meus pais ainda casados e presentes, cumprindo suas responsabilidades: segurança, alimentação, rotina. Mesmo assim eu me sentia aterrorizada, sozinha, preocupada em ser esquecida, perdida por aí ou levada pelo homem do saco - que eu imaginava ser algum lixeiro aposentado que tinha por ethos jogar crianças no lixão.

Acho que o problema da solidão era a altura.

Os adultos estavam tão lá no AAALTO enquanto eu, perto demais do chão. Quando eu ficava de pé me deparava com os joelhos deles e não com os rostos. Era dificílimo ficar inclinando a cabeça para trás para me assegurar que eles me olhavam - então me contentava com os joelhos.

Me puseram na terra, eu não sabia direito desde quando. Eles falavam línguas complicadas de se traduzir. O som demorava pra viajar de lá pra cá, e eu tinha que esgoelAAr, puxar a saia da mãe, a blusa do pai.

"Ô, de cima!"

Meus pais se esqueciam de me puxarem para o alto para um grande abraço, o que me fazia sentir segurança, e se lembravam com uma frequência desconfortável de descerem de lá para me darem broncas. 

"Não", "Agora, não", "Depois".

Como é difícil esse amor à distância! As pessoas não se entendem, e o que dá de confusão! Penso se é daí que fiquei tão rebelde... 

Certa vez minha mãe foi me dar uma bronca, cruzou os braços, lá de cima, e ameaçou:

- Para com isso... Senão, senão, heim! 

Que absurdo! E eu, que não sabia o português direito, mas já litigava em causa própria, retruquei:

- Simone, Simone, heim!

A bronca acabou em riso.

Quem é Simone, nunca soube.

Mas foi assim que venci meu primeiro debate.

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