Numa cena do excelente "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" o protagonista retorna a uma memória da própria infância. Ele se encontra embaixo da mesa da cozinha da casa, brincando sozinho, olhando os pés da mãe passando pra lá e pra cá, e sente de novo aquela solidão tão singular das crianças.
Tenho muita dificuldade em fazer meus autorretratos, acho que tenho cara de nada e nenhuma característica marcante.
Então resolvi que me desenharia como me sinto.
E sabe o que saiu? Uma euzinha pequenininha.
Enquanto desenhava senti uma tristeza... aquela tristeza do menino debaixo da mesa.
A eu do desenho morava numa casa lotada.
Meus pais ainda casados e presentes, cumprindo suas responsabilidades: segurança, alimentação, rotina. Mesmo assim eu me sentia aterrorizada, sozinha, preocupada em ser esquecida, perdida por aí ou levada pelo homem do saco - que eu imaginava ser algum lixeiro aposentado que tinha por ethos jogar crianças no lixão.
Acho que o problema da solidão era a altura.
Os adultos estavam tão lá no AAALTO enquanto eu, perto demais do chão. Quando eu ficava de pé me deparava com os joelhos deles e não com os rostos. Era dificílimo ficar inclinando a cabeça para trás para me assegurar que eles me olhavam - então me contentava com os joelhos.
Me puseram na terra, eu não sabia direito desde quando. Eles falavam línguas complicadas de se traduzir. O som demorava pra viajar de lá pra cá, e eu tinha que esgoelAAr, puxar a saia da mãe, a blusa do pai.
"Ô, de cima!"
Meus pais se esqueciam de me puxarem para o alto para um grande abraço, o que me fazia sentir segurança, e se lembravam com uma frequência desconfortável de descerem de lá para me darem broncas.
"Não", "Agora, não", "Depois".
Como é difícil esse amor à distância! As pessoas não se entendem, e o que dá de confusão! Penso se é daí que fiquei tão rebelde...
Certa vez minha mãe foi me dar uma bronca, cruzou os braços, lá de cima, e ameaçou:
- Para com isso... Senão, senão, heim!
Que absurdo! E eu, que não sabia o português direito, mas já litigava em causa própria, retruquei:
- Simone, Simone, heim!
A bronca acabou em riso.
Quem é Simone, nunca soube.
Mas foi assim que venci meu primeiro debate.
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