sexta-feira, 6 de junho de 2025

Lili

 A minha tia foi fazer faculdade de biomedicina em uma cidade próxima à nossa, e por estar se sentindo sozinha, morando longe da família, adotou uma cadelinha magricela, pretinha, de dentes afiados, humor curto, da raça pinscher. Batizou-a: Lili. 

Eu era criança, e na minha casa não tinha cachorro, porque meu pai odiava o barulho e a minha mãe, a limpeza. Mas eu gostava tanto de bichos! Infelizmente, o contexto era rígido, sabe? No entanto, uma ou duas vezes na semana eu ouvia quatro patinhas zanzando pela minha casa. Puxa, como eu ficava feliz com a visita! Eu tinha mais expectativa pela Lili do que pela vinda da minha própria tia. 

Acontece que a rotina dos estudos da biomedicina afetaram os cuidados da Lili, e por essa razão as estadias dela foram se alongando e se alongando, até que minha avó resolveu acolhê-la de vez. A Lili talvez não tenha gostado muito da ideia, mas eu adorei.

Ela era tão pretinha, e os olhos mais escuros ainda. Latia tão fino, que ardia. Quase uma ecolocalização. Se lhe pusesse um par de asas, se entrosaria facilmente com os morcegos da rua. Como é perceptível, ela não tinha a melhor das aparências, e com o envelhecimento ainda foi decorada de verrugas. Mas tinha lá sua elegância. Era como um quadro do Dali, digna de um museu caro e europeu. Sobre a personalidade, recordo de ter certeza que ela votaria no Alckmin, e notei várias vezes como seus olhos iluminavam ao ver o Bush na tevê de tubo.

Ah, como a Lili sofreu com meus constantes abraços, beijinhos e cheiradas no cangote! Eu a adorava. Queria colocá-la dentro do meu coração. Já ela, queria é espaço gourmet, filé mignon e lazer. 

Minha vó me alertava a não falar tanto nas longas orelhas dela, porque o cérebro era muito pequeno e poderia explodir. Eu não dava ouvidos, e falava e falava e falava: te amo, que fofura, lindinha, meu denguinho. Ela devolvia com certo olhar de desprezo, mas não se afastava.

Poderiam dizer que ela era um pouco esnobe - o que é pura intriga da oposição. Toda vez que a gente chorava, ela subia no nosso colo e chorava junto. Não tinha como não sorrir.

Certa vez a Lili pulou do carro em movimento e sumiu por 40 dias. Foi encontrada por acaso, sã e salva, hospedada na luxuosa casa da mulher mais rica da cidade. Ela comeu Pedigree, ganhou roupinhas, visitas ao veterinário, banhos, vacinas e estava até com bom hálito - algo que achei que só aconteceria por milagre. Estava irreconhecível!

Teorizo que tudo foi arquitetado... que ela queria mesmo é viver no bem-bom. O cérebro poderia ser pequeno, mas a inteligência, não, capiche

Acontece que ela descobriu que o que bombeava seu sangue azul era um coração, e por isso se deixou encontrar. Percebeu que aceitaria rações mais econômicas e o reaproveitamento de meias velhas como casaco no inverno, do que ter que tolerar tanta riqueza longe da família.

Ou... Talvez ela quisesse era parar com tanto banho e escovação de dentes. Hum...

Bem... uma coisa ou outra, né?

De todo modo, foi um belo reencontro.

Lili voltou para nossas vidas e cá permaneceu, ao total, por 11 anos. Acho que se foi mais pelo tédio da artrite do que propriamente pela idade. 

E foi ela que me fez perguntar, pela primeira vez, se cachorro vai pro céu.

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