terça-feira, 27 de maio de 2025

Agradecimento

 Hoje recebi elogios. Eu. Eu mesma, que existo! Recebi elogios sobre meu trabalho, numa ocasião; sobre minha mentalidade, noutra. 

Acontece que, apesar de adorar recebê-los, só não sei para onde olhar ou como agradecê-los. Então respondo "obrigada", mas como nunca me parece suficiente, costumo fazer uma gracinha. Quando vi, já fiz a gracinha. É meu jeitinho, sacastes? 

 Elogiaram minha proatividade e organização. Agradeci e disse que o agradecimento deveria ir para o Café Naviraí - com seu gosto amargo de pneu de rodovia, que levanta defunto. Eu ia adentrar numa piada sobre cocaína, mas minha razão impediu isso. Por sorte, levaram com bom humor.

 Depois, uma pessoa desconhecida elogiou minha força e mentalidade, na academia. Respondi com o famoso "obrigada" e, por ficar sem palavras - afinal, foram tantas coisas boas num dia só - lambi o dedo e alisei minhas sobrancelhas (?) Entendeste? Também não entendi. Não sei por qual razão, mas acho que imitei o sotaque do Agostinho Carrara...

  Acredite se quiser, apesar de tudo isso aí, Agostinho Carrara, sobrancelha e cocaína, obtive uma grande evolução. Eu era bem pior! Sinto calafrios só de lembrar todos os "obrigados" não ditos, trocados por alguma pose esquisita, mandando beijo, fazendo símbolo da paz - tudo isso na cara da pessoa. Costumava terminar dizendo que eu não merecia, aí ficava dramático demais; então eu simulava uma pessoa esnobe e fazia bico. Depois, ria. Cruzes! Como elas não corriam de mim? É um mistério.

 Mas treinei com grande afinco, e hoje, antes de todo esse teatro esquisito, pelo menos... no mínimo... eu agradeço. Disseram "só agradeça", e eu fiz várias sessões mentais de: "obrigada, muito obrigada, agradeço seu apreço, obrigada, fico feliz pelo reconhecimento..."

 E toda vez que recebo um elogio, digo "obrigada", penso comigo "só diga obrigada, não faça símbolo da...." e eu lá fazendo um símbolo da paz. Mas pelo menos, né? O-bri-ga-da.

Talvez todo esse standup inconsciente seja porque eu quero que a pessoa saiba, sem o mínimo de dúvida, que eu estarei muito feliz e três vezes mais grata. Sim, estarei. É que nunca fico feliz e grata na hora, sabe?  Eu só fico depois, quando penso, sozinha - como agora. Só agora, 4h depois do último elogio, é que estou grata. É uma falsidade do bem, é uma resposta sistêmica prévia - eu sei que preciso de 4h de download para aceitar tudo.

  Além de não saber receber elogios, também não domino a arte de fazê-los. Sinto uma timidez absurda e gostaria muitíssimo de uma resposta quanto a isso. E quando elogio - o que nunca traduz o tanto que sinto - preciso olhar para o outro lado. Testei elogiar olhando nos olhos, antes, mas comecei a gaguejar. Então elogio melhor olhando para o outro lado. De uns anos para cá, noto que venho imitando a expressão facial de uma idosa. Freud diria que é porque idosos sabem reconhecer as coisas boas, sem soberba e sem inveja - e o que quero é que o elogiado saiba que o reconheço com o melhor dos modos, sem segundas intenções.

 Sequer consigo praticar a gratidão budista sem um tanto de vergonha. Prefiro que o yogi diga numa meditação guiada - ele agradece, eu respiro.

 Afinal, penso que o problema seja minha demora em sentir. Primeiro tenho que aceitar que eu existo fora da minha cabeça, que alguém constatou que sou matéria, analisou algo em mim, achou esse algo legal e se prontificou a levar até a minha pessoa física para que eu sentisse esse reconhecimento. 

 São tantas camadas!

 Obrigada.

kakaakakakakak

#paz

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Canseira da vida

 Ennui - esse é um curioso termo francês que descobri enquanto assistia à Gilmore Girls. Nesse episódio específico, um personagem meio esnobe está mais do que simplesmente entediado no trabalho. Ele está sofisticadamente entediado, metafisicamente entediado: ele afirma estar ennui

Dizer que se está "bored" não é tão profundo quanto estar ennui. Primeiro, porque ennui é francês - e qualquer coisa dita em francês é mil vezes mais complexa e duas mil vezes elegante do que em qualquer outra língua. Depois, a palavra carrega esse tom dramático francês de quem se sabe condenado a existir. 

Quando alguém está ennui, o mínimo é que acenda um cigarro, coma croissant e discuta dilemas existenciais numa mesa repleta de doutores, fazendo biquinho. Je suis désolé. É como um perfeito enquadramento de Godard. Albert Camus deve ter começado a escrever numa oportunidade dessas.

Cá com meus botões, houve muita ocasião em que senti esse desejo gigantesco de acender um cigarro e responder com "oui, oui, mounsieur": brigas políticas, polarismo, extremismos, problemas familiares, expectativas alheias, essa pobreza desgraçada, essa inflação... Agora sei o que sentia: ennui. Mas um ennui à brasileira, sabe?

Ennui em português pode ser traduzido para fastio, tédio, enfado, mas prefiro "canseira da vida". Na canseira da vida, a gente acende um cigarro de palha, come é croquete, e ainda por cima, ri. Se o Camus não estivesse ennui, mas com canseira, fosse ele brasileiro, talvez não teria escrito nada. Seria como todo brasileiro que não elabora, mas antes sente.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Futurólogo

Jorge era futurólogo. Sua família dizia que era transtorno de ansiedade, mas ele sabia mais que todos: era a previsão do futuro seu dom. Quanto mais idade, mais previsões fazia. Aos 25 ele já sabia o que lhe aconteceria aos 50, 60, 70. 

Jorge olhava pela janela quando a viu pela primeira vez: sua primeira esposa e o amor de sua vida. Imediatamente funcionaram as engrenagens de sua intuição. Soube na hora — ela gostava de ler, cheirava a rosas, tinha cabelos macios e um coração ainda mais leve. Se conheceram ali mesmo, pela janela.

Ela andava a procura de um amor e ao sentir uma brisa leve do destino, soprada pelo próprio cupido, hesitou o passo e encontrou os olhos de seu amor. Ah, o rompante do romance! Ela subiu as escadas do prédio com o coração apertado. Talvez fosse ela também uma vidente? Sua mão delicada bateu à porta e ela, aos suspiros, se convidou a entrar para um café. Jorge se divertiu sentindo o amargo gosto da mágoa.

Deu o primeiro beijo já sabendo quantos beijos daria. Arrumou um emprego contando as economias com a justa causa. Pediu em casamento sabendo os termos do divórcio. Fez dois filhos com a ciência de que não ficaria com a guarda. Economizou dinheiro para a pensão alimentícia até ser demitido. Chorou copiosamente pela separação e pelos vindouros anos de tristeza— pelo excesso de álcool, de sódio, pelo infarto... Tanta tristeza! Acendeu o cigarro. Guardara no armário todos os fósforos que riscaria.

Jorge passeou os olhos pela janela, choroso. Lá se ia sua ex-esposa — mãe de seus filhos —  caminhando pela rua, sem saber de nada. Santa é a ignorância! Sentiu o sofrimento da cama vazia do lado direito da casa que nunca alugou. 

Jorge... Jorge. Como já tinha vivido por 50 anos em tão pouco tempo! Jovem, divorciado, demitido de tantos empregos — e sem nunca ter beijado uma garota ou redigido a primeira linha do próprio currículo.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Amo you

É mais difícil dizer "eu te amo" que "i love you". 

A primeira dificuldade está na pronúncia. No eu te amo, a boca precisa abrir, fechar sem tocar os lábios, depois abrir de novo — mas não muito — para deixar os dentes se encontrarem. Em seguida, abrir outra vez, fechar no "m" e abrir. Parece um beijo! E daqueles bem enrolados.

No i love you a boca abre uma vez só e termina num biquinho: Iloveyou. Fala-se tudo junto. Dá para dizer iloveyou saindo apressado, olhando o relógio. Pode até ser um agradecimento ao garçom que trouxe aquele steak no ponto. Além disso, confessar-se em inglês é bem mais prático: é só dizer iloveyou que ainda sobra fôlego para fugir da rejeição.

O te amo, ao contrário, tem sua liturgia. É preciso parar, olhar e articular sílaba por sílaba: eu - te - amo. É dito cuidadosamente, pausadamente. Senão o ouvinte entende “tamo”, e pairam no ar muitas interrogações. Não dá para declarar tudo isso e ainda correr sem respirar.

I love you é de uma língua em que a intensidade da fala e o contexto modulam seu significado. Diz-se a sério, na brincadeira, ou mesmo pelo hábito. Dá até para escorregar na casca de banana e soltar "iloveyou". Já o eu te amo, não. 

O português é assim: sério ou cômico demais, sem meio-termo. O eu te amo pertence à categoria do sério de verdade. Exige da boca, do tempo e fôlego. 

Seja numa jura, seja numa trapaça, não se fala de amor impunemente.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Entre altos e baixinhos

Numa cena do excelente "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" o protagonista retorna a uma memória da própria infância. Ele se encontra embaixo da mesa da cozinha da casa, brincando sozinho, olhando os pés da mãe passando pra lá e pra cá, e sente de novo aquela solidão tão singular das crianças. 

Tenho muita dificuldade em fazer meus autorretratos, acho que tenho cara de nada e nenhuma característica marcante. 

Então resolvi que me desenharia como me sinto. 

E sabe o que saiu? Uma euzinha pequenininha. 

Enquanto desenhava senti uma tristeza... aquela tristeza do menino debaixo da mesa.

A eu do desenho morava numa casa lotada. 

Meus pais ainda casados e presentes, cumprindo suas responsabilidades: segurança, alimentação, rotina. Mesmo assim eu me sentia aterrorizada, sozinha, preocupada em ser esquecida, perdida por aí ou levada pelo homem do saco - que eu imaginava ser algum lixeiro aposentado que tinha por ethos jogar crianças no lixão.

Acho que o problema da solidão era a altura.

Os adultos estavam tão lá no AAALTO enquanto eu, perto demais do chão. Quando eu ficava de pé me deparava com os joelhos deles e não com os rostos. Era dificílimo ficar inclinando a cabeça para trás para me assegurar que eles me olhavam - então me contentava com os joelhos.

Me puseram na terra, eu não sabia direito desde quando. Eles falavam línguas complicadas de se traduzir. O som demorava pra viajar de lá pra cá, e eu tinha que esgoelAAr, puxar a saia da mãe, a blusa do pai.

"Ô, de cima!"

Meus pais se esqueciam de me puxarem para o alto para um grande abraço, o que me fazia sentir segurança, e se lembravam com uma frequência desconfortável de descerem de lá para me darem broncas. 

"Não", "Agora, não", "Depois".

Como é difícil esse amor à distância! As pessoas não se entendem, e o que dá de confusão! Penso se é daí que fiquei tão rebelde... 

Certa vez minha mãe foi me dar uma bronca, cruzou os braços, lá de cima, e ameaçou:

- Para com isso... Senão, senão, heim! 

Que absurdo! E eu, que não sabia o português direito, mas já litigava em causa própria, retruquei:

- Simone, Simone, heim!

A bronca acabou em riso.

Quem é Simone, nunca soube.

Mas foi assim que venci meu primeiro debate.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Hora da diversão

Duas horas. Foi o que usei para assistir ao filme Playtime (1967), que possivelmente inspirou a estética de uma série que gostei bastante chamada Ruptura (2022). O filme fez uma curiosa previsão do futuro, o diretor acertou em cheio! O formato daquele mundo cinematográfico é muitíssimo similar ao que vejo hoje. Jacques Tati, ao invés de estar rolando o feed do instagram, estava lá fora, observando. Observando a arquitetura moderna — ainda uma recém-nascida.

Em Playtime, demoramos pelo menos 30 minutos para perceber que ele está ambientado em Paris e que a primeira cena se passa num aeroporto e não numa delegacia ou enfermaria. A estética é retangular, cinza, e written in english - for the foreigners, of course.


Tudo é funcional. O trabalho é silencioso e a comunicação é uma burocracia tecnológica ininteligível. Só sendo um cidadão daquele universo corporativo para compreender o que significam as setas, botões, corredores e elevadores naquele labirinto amoral e cru. 

Tudo construído para o absolutamente útil: o trabalho é onde se deixa a vida em suspensão para produzir. A arte corporativa é a fotografia do CEO, em preto e branco, pendendo entre paredes de vidro. Nenhum local é diferente de outro local. A recepção é idêntica à cobertura.



Não só os prédios são genéricos. As pessoas também. Pelo menos à primeira veste. A moda estrangeira feminina é um ornamento de flores na cabeça, mas idêntica no restante. Tal qual os corredores das empresas, uma pessoa é idêntica a todas as outras.

A música? É a buzina de carro nos infinitos engarrafamentos. Os carros todos brancos, pretos e cinzas. Amontoam=se nas ruas, nos estacionamentos, no drive-thru. Os homens inserem moedas nos parquímetros com o mesmo instinto em que respiram. 

As ruas são para os carros, é proibido vaguear a pé. Se quiser perambular, que seja nos metros quadrados da própria casa (mas não demais, para não incomodar os vizinhos). 

A seta para a direita é para à direita - nada mais! Se quiser ir em frente, vá a uma rua que permita isso. A polícia está de olho e pronta para redigir a infração!

O entretenimento? Observar uma nova janela sendo instalada em um prédio. Aquela excitação do mais novo retângulo acinzentado da cidade sendo levantado. O símbolo do moderno. Da inovação!

Anoitece na cidade. O que muda? O que muda é que escureceu e agora as luzes estão acesas. As famílias felizes, são todas iguais - salve, Tolstói. Todos os maridos chegam em todas as casas às 18h, estacionam seus carros nas garagens com parquímetros, beijam suas esposas, tiram seus casacos, abrem suas cervejas, ligam suas televisões e assistem ao futebol.

Baixei o filme de forma pirata e tive muita dificuldade em encontrar legendas. Ao terminar o filme concluí que nem sequer precisava delas! Os diálogos são todos tão genéricos e o que importa, mesmo, de verdade, são os atos, a confusão e o desajuste social de um ou outro divergente que se mete sem querer em frente à câmera. 

Durante o filme fui me sentindo alienígena, como se estivesse observando algo muito novo, quando, na verdade, estou mais habituada à paisagem do que gostaria. Fiquei com a impressão de ter sido apresentada às imagens não editadas de um documentário.

Vamos ao bingo de Playtime: Arquitortura, acinzentamento e inglesamento.

Temos os prédios utilitários retangulares e antipáticos espalhados como uma praga na arquitetura moderna? Temos.

Temos uma vista mais cinzenta da janela de nossas casas? Com certeza - inclusive, já existe um estudo interessante da Science Museum Group que demonstrou que a paleta de cores do mundo vem ficando cada vez mais restrita a tons neutros e frios:


Quanto à linguagem, não é novidade que o mundo corporativo brasileiro e descolado prefere a simplicidade inglesa norte-americana ao nosso not-so-cool tupiniquim. Estamos presenciando há alguns anos a englishzation das línguas do mundo todo, na verdade. Três vezes por semana lembro do Saramago prevendo que o nosso destino é a comunicação por grunhidos.

O filme segue, os últimos minutos se passam num restaurante de alto padrão recém reformado. Lá estão o arquiteto, os pedreiros, garçons, cozinheiros, o porteiro, os músicos se preparando para entregarem mais uma noite esterilizada aos turistas.

Os clientes entram, e tudo que é desordenado sai pelo elevador de serviço. A elegância, fineza e limpeza se instalam - bom, ao menos por alguns minutos. 

Em certo momento se percebe que a reforma não foi lá muito bem sucedida, e mesmo com o esforço do maître, os erros de uma noite agitada acontecem. A porta quebra. As luzes piscam. O ar-condicionado quebra. A comida é salgada por duas vezes por garçons confusos. A bebida esquenta os corações embriagados. A pista de dança se enche e ferve. O teto cai. O porteiro se descuida e todo tipo de gente se convida a entrar. As pessoas nem se importam. Cantam e dançam. A desordem se ergue e a noite é um sucesso! A festa se estende até o amanhecer.

Tal qual a humanidade.

A película me fez refletir que, apesar desse viés de conformidade, os humanos, em si, não são cinzas como esses prédios. Nas condições plurais nós florescemos, porque nunca estamos realmente mortos enquanto não entramos num caixão. 

O caos nos desperta com sua multitude. A bagunça é inevitável e sua desordem nos move, nos dando camadas, complexidade e aventuras. A aparência de crueza é da moda para fora, mas da essência para dentro tem sempre algo que tremula. Mesmo nos mais rígidos. 

E não há acinzentamento que ordene indefinidamente a humanidade. Basta uma fagulha para que os homens decorem tudo com vida.

Estou aqui, sem sentir que estou viva — quando estou. Sem sentir que as coisas acontecem — quando acontecem. Sem ânimo de escrever, escrevendo. 

Escrever é sobre apurar os cinco sentidos. Talvez o sexto. 

Onde há homem, há história.