quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Tomar decisões com o dedo machucado

  A gente nasce e logo nos catalogam, encaixam-nos num lugar, dão-nos de comer e beber e engatinhamos. O início da vida é uma exploração guiada pelos adultos, uma aventura indicada para aquela faixa etária em que os erros não são tão fatais se não nos arrancam o topo do dedão do pé. 

  Alguns, ao perderem o topo do dedão do pé não querem que a dor se repita, temem a trágica visão de sangue, e na crença de evitarem a repetição da dor voltam os olhos para a experiência do outro.

  O "outro" é um sujeito meio indefinido que nunca teve o topo do dedão do pé arrancado numa partida de futebol de rua e ainda faz gol de bicicleta. O outro sabe da vida, e sabe tanto, que diz o que se deve saber. Os princípios do outro são mais elevados, o temperamento é mais calmo, a inteligência é mais aguçada... o outro é belíssimo! O outro não vai jogar futebol descalço. O outro não rala o joelho. O outro possui desses feitos que nos causa inspiração e uma certa inveja... Mas o outro é o outro, ele é o ideal, e tantas vezes nós o plagiamos para evitarmos os erros deste eu errático, ensanguentado, exausto e sem o tampão do dedo.

  O outro nunca perderia o tampão do dedo, se porventura o perdesse, não teria esgoelado e chorado tanto como este eu. Causa-nos medo sentir a dor, causa-nos medo esgoelar de novo, errar dói e isso é um primitivo-intuitivo pavor.

  O medo dos erros nos leva a fazer coisas esquisitas, como por exemplo, praticar erros mais elaborados. O medo de ser rejeitada já me levou a dizer sim para tudo. E apesar de ser uma pessoa que adora explorar as possibilidades da existência na terra, muitas delas eu explorei por puro medo de errar. Porque mesmo diante das possibilidades, escolhi me submeter a outro ideal. Dos tipos de erro que se comete na vida, no entanto, aceitar explorar as possibilidades não é tão ruim assim, há mais chance, estatisticamente falando, de se deparar consigo mesmo em alguma parte do caminho para tomar as decisões próprias da maturidade. Por outro lado, o erro de só se explorar uma única possibilidade de regras de vida me soa mais... fatal.

  Ao leitor (ninguém lê esse blog) nada tenho contra regras! Elas são praticamente inescapáveis. Quem vive uma vida regrada, quando cria as próprias regras, é mais feliz do que quem se submete as regras alheias. Compreendo muitíssimo que as regras alheias nos dão um lugar seguro, que são o abraço do útero, como se houvesse uma mãe nos alimentando pelo cordão umbilical. Mas um cordão umbilical nos alimenta de nutrientes, não de sabores. Só a vida nos dá sabores, esse pré-nascimento, proto-vida, não. 

  O erro de trilhar um caminho alheio é magistral, é aquele erro que faz o moribundo na cama de hospital se contorcer. No cansaço da morte nos lembramos da vida, mas se se viveu um protótipo de vida, nada ali há para se rever que seja pessoal, é um filme composto de colagens, um documentário de uma vida estranha. 

  O moribundo descobre só saber o próprio nome e talvez se apegue àquele dia quente de verão, jogando futebol descalço, e sorria com a bola na trave e a dor do tampão do dedo.

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