quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Poetria XXXVI

Para a dor não há atalho de cimento.

Eis meu mais curto sofrimento:

Olho o abismo em que a vista alcança

Dói-me, corrói-me, e se cansa

Devoro cru, com sangue quente, sofro agora 

não no leito da morte, na dor da memória.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Tomar decisões com o dedo machucado

  A gente nasce e logo nos catalogam, encaixam-nos num lugar, dão-nos de comer e beber e engatinhamos. O início da vida é uma exploração guiada pelos adultos, uma aventura indicada para aquela faixa etária em que os erros não são tão fatais se não nos arrancam o topo do dedão do pé. 

  Alguns, ao perderem o topo do dedão do pé não querem que a dor se repita, temem a trágica visão de sangue, e na crença de evitarem a repetição da dor voltam os olhos para a experiência do outro.

  O "outro" é um sujeito meio indefinido que nunca teve o topo do dedão do pé arrancado numa partida de futebol de rua e ainda faz gol de bicicleta. O outro sabe da vida, e sabe tanto, que diz o que se deve saber. Os princípios do outro são mais elevados, o temperamento é mais calmo, a inteligência é mais aguçada... o outro é belíssimo! O outro não vai jogar futebol descalço. O outro não rala o joelho. O outro possui desses feitos que nos causa inspiração e uma certa inveja... Mas o outro é o outro, ele é o ideal, e tantas vezes nós o plagiamos para evitarmos os erros deste eu errático, ensanguentado, exausto e sem o tampão do dedo.

  O outro nunca perderia o tampão do dedo, se porventura o perdesse, não teria esgoelado e chorado tanto como este eu. Causa-nos medo sentir a dor, causa-nos medo esgoelar de novo, errar dói e isso é um primitivo-intuitivo pavor.

  O medo dos erros nos leva a fazer coisas esquisitas, como por exemplo, praticar erros mais elaborados. O medo de ser rejeitada já me levou a dizer sim para tudo. E apesar de ser uma pessoa que adora explorar as possibilidades da existência na terra, muitas delas eu explorei por puro medo de errar. Porque mesmo diante das possibilidades, escolhi me submeter a outro ideal. Dos tipos de erro que se comete na vida, no entanto, aceitar explorar as possibilidades não é tão ruim assim, há mais chance, estatisticamente falando, de se deparar consigo mesmo em alguma parte do caminho para tomar as decisões próprias da maturidade. Por outro lado, o erro de só se explorar uma única possibilidade de regras de vida me soa mais... fatal.

  Ao leitor (ninguém lê esse blog) nada tenho contra regras! Elas são praticamente inescapáveis. Quem vive uma vida regrada, quando cria as próprias regras, é mais feliz do que quem se submete as regras alheias. Compreendo muitíssimo que as regras alheias nos dão um lugar seguro, que são o abraço do útero, como se houvesse uma mãe nos alimentando pelo cordão umbilical. Mas um cordão umbilical nos alimenta de nutrientes, não de sabores. Só a vida nos dá sabores, esse pré-nascimento, proto-vida, não. 

  O erro de trilhar um caminho alheio é magistral, é aquele erro que faz o moribundo na cama de hospital se contorcer. No cansaço da morte nos lembramos da vida, mas se se viveu um protótipo de vida, nada ali há para se rever que seja pessoal, é um filme composto de colagens, um documentário de uma vida estranha. 

  O moribundo descobre só saber o próprio nome e talvez se apegue àquele dia quente de verão, jogando futebol descalço, e sorria com a bola na trave e a dor do tampão do dedo.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Times New Roman 12

  O intelectual é aquele ali: o otimista adulto demais para ser otimista, o que está encoberto de uma atmosfera lúgubre e vive em seu refúgio natural: o cérebro. O intelectual é distinto, sua intelectualidade não se confunde, é o sarcasmo, é não rir além dos dentes, é estar constantemente insatisfeito com o que é bom. Ele já nasce com a maldição de ver tudo o que não se conquistou, o que se deixou de fazer, os buracos da trama e o futuro brilhante apagado pelo imutável passado. 

 Trata-se de condição de sua espécie compreender que só se é verdadeiramente intelectual aquele que é triste. É assim que se reconhece como parte do grupo. Essa tristeza sem lágrimas é tida como a marca do verdadeiro amadurecimento. Observe que a infância é o deslumbre, a esperança e o sorriso de um córtex pré-frontal não completamente formado. Logo que há o reconhecimento das incoerências do mundo, nasce-lhe a raiva, por conclusão lógica. A melancolia é consequência direta do apaziguamento da revolta juvenil. É com a tristeza, talvez um par de óculos e uma pele pálida que se o reconhece.

  O intelectual, por rotina, se senta em sua mesa de estudos, injuria o mundo, maltrata a esperança e desumaniza a felicidade. Ele digita que tudo está fora de controle e que o azar é uma construção há tantos anos que se perdeu de seus rastros. Em sua conclusão: desista, e referencia a si mesmo. Ele sabe tudo que se há para saber, mas não é o que responde quando lhe perguntam.

 O cruel mundo gira, o sol que explodirá acorda pela manhã em contagem regressiva, o leite da geladeira coalhou, e lá vai o intelectual forçado ao mundo, buscar o café da manhã. No trajeto à padaria, vê quem sorri com ironia, pensa-se seguro, acima daquela ignorância toda. Caminha pomposo por entre as gentes, tem dó dos empobrecidos tristes - seu objeto de estudo para mais tarde. O intelectual não se sente muito a vontade em conversar com o objeto de estudo, no entanto, arranja o seu jeito: fala em tom de condescendência, e isto, sim, funciona muito bem. Retorna o intelectual com o leite e um olhar orgulhoso para seu refúgio.

 O refúgio do intelectual é bastante distinto, tido que lhe abriga com uma segurança mui peculiar: apaga-lhe o sorriso e a felicidade, sintomas da indesejável imaturidade. No refúgio, só os maduros! No refúgio ele percebe que não disse ao moribundo, olhando nos olhos, sobre seu destino fatal, sente-se covarde por um momento, mas como escreverá sobre, com nota de rodapé, sentiu-se bem logo em seguida. O intelectual é o herói que preserva a verdade das mentes pequenas e as expande em times new roman 12, em Qualis A1. O que importa não é o pouco, é o muito, é a larga escala, é o grande esquema das coisas. 

Eis o que é verdadeiramente grande: é a justiça, pensa ao encostar a cabeça no travesseiro, é importante apesar de não ter logrado a conceituar muito bem naquela introdução. Remói por hábito, mas agora lhe chama atenção a estranheza de sua guerra em prol da justiça num mundo tão condenado.

Não há nada o que se dizer de original, sonolência, as mãos atadas a referências, o leite coalha, Comic Sans... Dorme o intelectual.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Curiosidade hedônica

 Estou num período de intenso preparo físico. Tive muitas versões de mim mesma, as primeiras versões não se impressionariam com a disciplina de hoje, já as intermediárias ficariam impactadas, perplexas e até frustradas. Em alguns momentos minha febre pela disciplina sumiu completamente ao ponto de me causar desprezo. Mas essa ojeriza só aconteceu porque eu olhava ao redor e via pessoas que conseguiam existir sem pensarem tanto sobre o que estavam fazendo. Essas pessoas pareciam tão alienígenas! Foi incrível a descoberta de que há vida fora do planeta! E minha curiosidade me levou a buscar o conhecimento prático da coisa, com um foguete. Pensar demais, refleti à época, atrapalhava a experimentação completa da vida. 

 Para conhecer os céus, quis bisbilhotar os infernos. E tive uma vista... interessante.

 De quantos copos, taças e canecos já bebi? E estes dedos seguraram quantos cigarros de seda, de palha, de papel? Acho que me dediquei demais aos meus objetos de estudo por causa dessa tal curiosidade. Não é preciso tanta dedicação prática quando se pode fazer uma busca mais bibliográfica, não é mesmo? Olha, não é como se eu estivesse num confessionário, aqui, não me arrependo de uma só gota, nem de qualquer um dos tragos! Pelo contrário, acho que experimentei muito da vida, mas descobri que era do todo uma só parte. Os psicodélicos, psicotrópicos, psicoativos de toda natureza que passaram pela minha garganta, língua e nariz me deram lições interessantes sobre partes de mim que descobri que conseguia expandir ou retrair. E os ambientes esquisitos e futilidades me deram desgostos como também me deram prazeres. Abracei e estapeei mais dilemas morais do que posso contar.

  Das drogas mais pesadas, a minha curiosidade foi a maior, como se pode ver, foi ela a porta de entrada para todas as outras. Depois dela que me corrompi, e depois dela que percebi que corrupção não é aquilo que consta do dicionário, depois risquei e pensei que talvez corrupção seja o que significa no dicionário, depois coloquei aspas e troquei os sinônimos. Foi pela curiosidade que eu quis me tornar uma adicta, mas por uma ironia da vida, meu corpo não me deu esse gene (ufa!). Quis me tornar isto ou aquilo e de fato busquei a experiência. Pela curiosidade quis machucar o corpo para acalmar a mente. Depois inverti e quis salvar o corpo de perturbar a mente. Pela curiosidade descobri que mente e corpo são uma coisa só, que meu cérebro é matéria, que sou eu, tanto quanto meus dedos, olhos, nariz e boca. E que não se cuida de um fígado como se cuida das unhas na manicure!

 Não há vida apenas fora do planeta, aqui no meu também há: sou eu, oras! Este planeta estranho, feito de quebra-cabeça, com peças pequenas, talvez algumas perdidas por aí, outras inexistentes, outras em outro quebra-cabeça - e que saudade de algumas delas!

Provisoriamente penso que sou eu que ordeno as peças que tenho, até mesmo o espaço vazio. Sou eu que escolho a lição que tiro das experiências quando um trauma não a escolhe por mim. E mesmo quando há um trauma, e que a culpa não seja necessariamente minha, a responsabilidade é - e disso não tem como fugir (digo porque tentei). Mas é provisório o pensamento. A curiosidade sobre o livre-arbítrio perpassa por entre minhas sinapses dançando tango com outros mil assuntos correlacionados enquanto assuntos aleatórios pulam carnaval.

E agora, ao final, não sei quem escreveu este texto, se eu ou ela. 

Talvez nenhuma de nós.

Talvez o sono.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Poetria XXXV

Quem não sabe, presume

E presume com o que se sabe

Quando o saber, a nada, se resume!

Se se presume o saber por costume

Se sabe ainda menos do que se sabe.