segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Em 2004

 A vida tinha cheiro de plástico e tutti-frutti e os carros eram naves espaciais que me levavam de um planeta para outro. Era tudo pop music, glitter e tons de rosa. O mundo era mais encantado com meu discman lotado de adesivos de caderno Tilibra. Eu me imaginava como equilibrista entre os fios elétricos e escorregava nos grandiosos tapetes de grama do Mato Grosso do Sul. Mergulhava profundo no Rio Paraná. No caminho para Minas Gerais, via as montanhas e cumes surgirem ao longe. Eu imaginava gigantes adormecidos em cobertas de rocha e a história de uma grande civilização mágica, adormecida por encantamentos. E o enjoo da viagem era ludibriado pelo encantador mundo da imaginação da janela do carro.

O mundo era muito maior e mais cheio de possibilidades e as pessoas muito mais distintas. Os dias quentes eram calorosos abraços de mãe e os dias frios cheios de mistério e canecas de chocolate quente. As gotas de chuva não significam resfriado, mas poças de lama em que eu podia pular. Eu queria muito mais janelas de carro, janelas de ônibus e janelas de avião. Mas logo findavam as férias... e era hora de contar as travessuras aos colegas da classe: antigos ou novos.

A energia ao acordar era potente. Eu estava pronta para explorar o grandioso universo, descobrir o quanto mais rápido poderia correr, pular, ler, e subir ainda mais alto na árvore da casa da minha avó Marlene. Quando eu subia nos muros dos vizinhos, ali era o topo do mundo. Mas eu queria mesmo é ir mais e mais alto na estante de livros. O mais difícil de alcançar era o mais curioso de se ler! Ao abrir um livro, cada página era um mistério que eu estava disposta a descobrir, enquanto comia granulado e intercalava entre segurar os doces e a lanterna para prosseguir na aventura.

Os cristais e incensos na casa da minha vó Iolanda me faziam sentir os ventos do mundo indiano; o retrato do Taj Mahal não era um mausoléu, mas uma bela história de amor num castelo... mas o que eu queria mesmo era apostar corrida naquela longa piscina até os portões do palácio dos reis apaixonados.

O mundo da criança é muito particular. Mesmo quando esse cristal era rachado pela violência dos adultos, ele logo era decorado com flores e rosas feitas com giz de cera. Cada segundo da infância foi vivido intensamente, mente e corpo totalmente presentes, então o momento ruim era sobreposto pelo momento bom com muito mais graciosidade que os dias adultos. Mesmo assim, eu resguardava alguns desses momentos para contemplar o futuro.

Eu sabia que cresceria... além de já ter notado que as pernas ficavam mais longas e rápidas e ágeis a cada ano, já haviam me alertado que não eram só os joelhos que mudavam de lugar. Sim, eu já sabia que a maior dificuldade da vida não seria a tabuada ou as dores chatas do crescimento, eu já me escrevia cartas para o futuro, e nelas, já anotava rascunhos do meu testamento. Eu sabia que 2004 morreria, e com ele, quem eu era naqueles dias de massinha de modelar e lápis faber-castell. 

Sigo até hoje os desejos que deixei testamentados, apesar dos joelhos estarem mais longe do chão: dançar bastante, amar os cachorros, ser mais forte que os meninos e nunca, promessa de dedo, deixar de brincar.

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