quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Quem fica no chão não sobe nos ares

   A máxima expressão da poesia de seu cotidiano era acenar um sutil adeus pelo reflexo do espelho, sentindo o gosto de pasta dental.

  Sonolento, caminhando pela estação, refletiu sobre as longas horas de viagem que o aguardavam, sobre os sete dias da semana, sobre os trinta dias do mês e o ano bissexto. E este era o máximo de imaginação para aquele habitante do momento presente.

  Mais uma manhã de segunda-feira a caminho do trabalho. Mais um passo seguido de outro passo. Mais um chiclete colado no chão. Mais um som de tosse, o agudo daquele mesmo assovio de sempre e um crescente odor de poluição - o máximo de sua percepção.

  Muitas pernas, braços, gritos, empurrões, muitos perdões rápidos e frouxos pelos empurrões, o ritmo dos passos se aceleram, freiam, cessam, disparam - o máximo da desordem.

  Um suicida atrapalha o tráfego, uma nova bomba no jornal, mais uma criança desaparecida - o máximo da novidade. Agora, o bilhete é eletrônico. O auge da tecnologia!

  Entrou no vagão, abraçou sua maleta, protegeu seus bens, no máximo do afeto. E olhou para frente, buscando seu lugar, com o mesmo vazio, com a mesma prudência, com o máximo de sua filosofia.

 Mas. No entanto. Todavia. Eis que os sentidos o alertam para um raríssimo advérbio de contraste!

 Uma névoa conhecida tocou suas narinas, fazendo com que se recordasse dos tempos do cigarro de canela, e guiaram seus enferrujados olhos até ela. Reconheceu uma figura nostálgica e esguia dançando por entre as figuras do vagão lotado. Era aquela garota que cruzava o corredor da escola com pressa, todas as manhãs, para esconder o maço de cigarros em um reboco da parede do urinol. Que atrapalhava seu mijo, que contava histórias de terror e noites reviradas enquanto fumava, escondida, na podridão do banheiro masculino. A garota que atraia amigos até sua casa, desde que virara sua vizinha. Que te pedia açúcar pelo muro, que o fazia dividir o refrigerante no intervalo das aulas. Que o provocava pela janela da sala de aula, que desenhava corações num caderno e lhe mostrava. A garota que usava camisetas estampadas e coturnos frouxos. A garota que passava muitas noites de sexta bebendo de garrafas em frente à sua casa, cantando com os mais variados conjuntos de tribos. A olhava e sentia um sorriso. Gargalhou quando ela o acordou, naquela única vez, de madrugada para lhe ceder abrigo, o mesmo dia em que ouviu os gritos dos pais enquanto a tomou num rápido e choroso abraço. Sentiu com a ponta dos dedos a carne macia e os ossos. Mas logo foi ela, pulando a janela e voltando para casa...

Era a garota que usava saias curtas, mas se esquecia de cruzar as pernas, quando se sentava na varanda lendo livros, ou quando tentava e tentava aprender os acordes de uma guitarra azul e desafinada. A garota que desapareceu da casa da frente, tão misteriosamente quanto chegou, antes que ele pudesse definir com precisão o tom de seus olhos. No dia da mudança, ela o encarou por um instante, pareciam castanhos.

Aquela garota, uma década depois, entra no vagão do trem e senta-se naquele mesmo banco em que ele se acostumou a sentar nos últimos anos. Ela mirou os olhos em sua direção, olhos definitivamente castanhos, e sorriu.

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