quarta-feira, 22 de junho de 2022

Mais um trechinho daquele livro que nunca será finalizado

 Ele ama o mundo e seu propósito é melhorá-lo. Ele é educado com estranhos, e possui um grande amor pela humanidade. Nas relações interpessoais era controlado, calmo, sério. Ganhava o respeito e a admiração de qualquer um que ele escolhia encontrar. Todos estavam em seu radar, mas ele estava no radar de poucos. Sim, ele escolhia em qual radar entrar. Se ele não quisesse aparecer no mundo, se fazia de sombra entre as pessoas. E entre as pessoas, era sombra. Mas a partir do momento que decidia se apresentar, muitas vezes com o intuito de ajudar, outras vezes por ser pressionado pelas circunstâncias, as pessoas imediatamente se encantavam com ele. Ele era uma sombra atenta à luz e às pessoas, e ainda mais que isso, do tanto que as observava. Talvez por isso lhe era cansativo conhecê-las, as pessoas. Já as amava todas à distância, já prestava atenção em todos os detalhes possíveis de se conhecer sobre desconhecidos... seriam perturbadoras, para ele, as bifurcações sentimentais que sempre encontramos ao nos aproximarmos dos outros.

  Amar as pessoas é algo muito difícil. Isso eu sei. Amar envolve sentir coisas contraditórias. É sentir compaixão e desejar o melhor. É tomar preocupações que não nos atinem. É querer estar presente e disponível para ajudar, mesmo quando alertamos o problema, e quando as pessoas teimam e tornam o problema concreto. Talvez isso também o cansasse e lhe fizesse ser a sombra que busca ser.

  Puxo da memória aqui, um desses dias monótonos. Um desses dias dos meus olhares vagando por entre as massas, e encontrando o olhar dele entre a multidão por um mero acaso. E meus olhos pousaram naquela sombra que me olhava.  Acho que a surpreendi, um tanto. Observei aquela sombra, que observava seus objetos. Analisei aquela sombra com um interesse desinteressado. E ela caiu entre meus olhares com mais frequência, depois disso. Eram olhares inconscientes e vazios de sentimento. Apenas vagos, mas lembro dela de pé, com as mãos nos bolsos, alheia ao grupo de pessoas que a cercava. Observei aquela sombra, andando apressada pelos corredores. Mais uma vez, aquela sombra, em uma fotografia, entre outras pessoas, olhando para a câmera como se estivesse forçada. Não sorria, como as outras. Outra vez, a sombra, andando ao lado de um amigo que carregava um trompete. Havia ali um trompete! Um trompete! Como posso me lembrar de uma sombra andando ao lado direito de um trompete? É um objeto bastante incomum, bastante chamativo. Ele era só uma sombra escondida entre soslaios, que de algum modo ficou registrada pelo meu cérebro. Ele já habitava minhas sinapses, e isso já o fazia diferente da comum indiferença dos meus olhares vagantes dirigidos às massas. 

  Eu observo as massas, os humanos. Observo seus traços, trejeitos e suas interações. Observo como reagem ao ficarem tristes, como reagem ao ficarem alegres, o que os agrada e desagrada, a partir de suas feições. Observo suas roupas, o que acham adequado para cada ocasião, o que mais ou menos os interessa olhar, encarar, virar o pescoço. Observo a transformação de suas culturas, o que fazem para serem aceitos. Observo a contradição entre o que dizem e o que expressam no rosto. Observo, mas nunca consigo chegar mais... fundo. O que causa suas sensações? Não sei a razão da alegria toda, porque é tão grande ou tão pequena, só sei que estão alegres... muitas vezes com coisas que não me deixam alegres na mesma medida. Percebo muito desses contrastes. O que lhes causa pranto, me causa raiva. E o que me causa raiva, lhes causa... nada. E minha alegria é diferente em proporção e situação, e assim também minha tristeza. Mas não sei de seus sentimentos, essas coisas profundas e sensíveis que movem os seres.

  Ao contrário daquela sombra. Ela, muito mais alheia aos grupos e interações, enquanto eu, na maioria das vezes, em grandes círculos sociais. E ela sabe mais do que eu jamais saberei sobre o que comove as pessoas. E isso é uma parede que tenho dificuldade em quebrar, é a limitação que não extrapolo com frequência... e nem me importo tanto em extrapolar. Eu não amo a humanidade. Eu gosto dela, e só quando ela me faz bem. A sombra, não. Se faz de sombra por um grande amor... e tudo isso observei, observando a sombra. E só concluí, quando a sombra já não se fazia mais de sombra em minha vida. Isso concluí, quando ele já era nítido, sentou-se ao meu lado e aprendi seu nome.

  E benditas são as circunstâncias que forçaram o encontro entre a sombra dos meus soslaios e meus olhos, boca, ouvidos e nariz.

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