segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Fernanda

 Nos últimos dias as pessoas me perguntam duas vezes se eu estou bem. A primeira é por protocolo; a gente sorri e respondo que sim. A segunda vez é logo em seguida, é aí que vem o nó na garganta e os sorrisos apagam. 

É ali que me lembro dos cachos de cabelo dela encostando na minha bochecha direita. Ali é quando lembro do nosso último abraço - que jamais, jamais, pensei que seria o último. Não imaginava que, lembrando da minha amiga, ela me tiraria a alegria e a vontade de viver. Essa foi a terrível e única vez que ela me machucou sem nenhum arranhão.

Se fosse eu quem tivesse ido, o mundo estaria bem melhor representado, isso eu garanto. Às vezes penso que tudo não passa de um pesadelo. Na verdade, ela está lá na casa dela, tomando chá, relaxando ao lado da janela, folheando o vade mecum. 

A Fer nunca terminou de ler O Corcunda de Notre Dame. Eu não a convenci a gostar de poesia. Eu dizia que ela entenderia poesia quando se apaixonasse. A fiz prometer que me contaria sobre o primeiro amor e jurei que ela logo se casaria. Nós não viajaremos para São Paulo juntas para visitarmos os museus. Ela não virá comemorar meu aniversário no dia 16. E o presente que ela me entregou 3 dias antes do acidente fatal está ali na minha estante.

Ano passado, todos os amigos se reuniram na casa dela no dia 21 de dezembro, apesar do aniversário dela ser no dia 19. Menos de um ano depois, estávamos todos lá, sentados em volta da mãe dela, esperando o pai trazer a Certidão de Óbito. Uma amiga da família foi passando o documento no círculo de visitantes, um a um lendo, relendo. Politraumatismo. 27 anos.

Penso que se fosse para realmente escrever algo decente sobre a Fer, eu teria que dispor dos meus dias para criar um livro de vários tomos.Se fosse para escrever algo realmente decente sobre a Fer, eu precisaria de muitos volumes. Começaria com uma ironia fúnebre: eu dizia a ela que não sobreviveria aos 27 anos, porque me identificava com os astros do rock que partiram nessa idade. E foi-se a Fer aos 27. E eu aqui, aos 30, sem ela. 

É surreal a morte. Até o dia 21 de outubro de 2025 eu pensava que quem morria eram os outros, e nunca quem eu amo. 

Como a Fer era uma pessoa muito sóbria, inteligentíssima, dona de uma coerência ímpar, eu ando lutando para combater meus demônios. O maior presente que ela deixou foi o exemplo. Ativamente luto para agir como ela agiria. Ela conversaria com os amigos para ver se estavam realmente bem; se moveria para prestar as homenagens devidas, teria uma palavra de conforto para a família, e ela seguiria bem e sã pelos muitos anos da vida tranquila que ela teria.

Para me confortar, gosto de pensar que ela nunca sofreu realmente, justamente porque valorou as coisas certas de serem valoradas: o amor, a família, a amizade, a aventura, a intelectualidade... A Fer sempre andava por um caminho de retidão. Ela sabia separar o certo do errado intuitivamente e de forma bastante adequada. E essa intuição foi se apurando cada vez mais, desde que a conheci, quando tínhamos 13 e 15 anos. 

A Fer era tudo (e infinitamente mais) porque teve uma criação amorosa - e até mesmo por isso guardo um grande carinho pela família dela. A Fer é a mãe dela, é o pai, a irmã, a avó, o primo. E eu gostaria de poder fazer algo por todos eles. Mas não sei o que fazer.

Quando respondo, pela segunda vez, se estou bem, 

respondo que ficarei.

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