quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Poser

 Um dos maiores temores dos adolescentes do início dos anos 2000 não era ser poser, era ser considerado poser. Eu não sei em que momento ouvi, pela primeira vez, o termo, mas tenho quase certeza que foi lá pelas tempos em que eu estava procurando alguma caixa para me encaixar. 

 Na época, a caixa significava tribo. Ou se era patricinha, ou se era roqueira. Se gostava de rosa, por certo não era moral que se usasse cinto com spikes. Quem assistia à MTV, certamente não poderia gostar das telenovelas globais. E eu tinha dez anos... ainda.

 Faço aniversário em novembro, o que significa que, enquanto todos já tinham a idade que tinham que ter há meeses, estava eu lá no quarto bimestre, ainda no limiar da infância. Para piorar meu quadro: eu era a menor criatura da 5ª série A e ainda contava com mais dentes de leite do que anos de vida. Eu ainda habitava na caixinha das crianças - mas estava decidida a crescer. E logo! 

 Para identificar meu lugar, abri minha pasta de CDs. Percebi que sentia certa vergonha dos álbuns da Kelly Key, dos Rebeldes, Rouge - já não me representavam mais. Observei, então, que guardava mais orgulho das faixas internacionais gringas. Eu gostava de ouvir os The Strokes, The Kooks, Gorillaz. "Então é certo que sou indie", pensei. Mais algumas páginas: My Chemical Romance, Blink 182, Fall Out Boys. "Talvez, emo". 

Adorei a minha futura caixinha. E daí se era um rock mais melancólico ou talvez algo mais indie. O importante é que eu estava na do rock. E eu adorava o estilo e possuíam algo que eu almejava: atitude para serem quem eram. Fui passando ainda mais as páginas. Daí que me deparei com Rihanna, Shakira, Britney Spears... Fingi, simplesmente, que não era mais do meu gosto essas coisas de menininha.

 Ser menininha era ser frágil, indefesa, era ser como todas as outras garotas frescas. Eu, não, eu já havia decidido que era diferente das outras e que meu lugar no mundo era junto ao panteão do rock.

 Cobri as paredes cor-de-rosa com pôsteres, pintei meus olhos de preto, troquei meu guarda-roupa no que pude. Foi tortuosa a transição. Tive que insistir para que a minha mãe me desse um all star preto de cano alto. E sofri tendo que usar minhas camisetas da Lilica-Ripilica até conseguir alguma camiseta extra GG preta de alguma banda.

 A cena do rock, na época, era muito descolada. Havia uma banda de rock à cada duas garagens. Era legal ir até à pista de skate, ouvir Charlie Brown Jr., ouvir Red Hot Chilli Peppers. Eram dias quentes e o lápis de olho preto, escorrido na cara oleosa era realmente parte daquela cultura toda. Eu usava meia rastão, pintava os cabelos com papel crepon, e ficava horas e horas na internet tentando encontrar todo aquele estilo que não se vendia na minha região. 

 Talvez alguém tenha me perguntado o nome dos integrantes da banda, talvez eu só tenha percebido que eu não sabia - e foi aí que fiquei assombrada pelo estigma de ser poser. Parecia que só eu é que tinha esse medo, ninguém mais. Todos estavam adequados, sabiam os nomes dos tio-avós do Flea. E eu? Eu não sabia é de nada.

 Em algum ponto, roqueiros agrediam os emos e estes foram sendo estigmatizados. Houve, literalmente, na história da humanidade, um ponto em que um grupo agredia o outro para se desvincular de qualquer semelhança de estilo musical. Fazer o quê, esses eram os anos 2000...

 Fui me adequando à caixa naquilo que era de melhor. Mas para nunca ser expulsa, também me adequei ao que tinha de pior: o estilo de vida. À parte de ser muito menina para a parte do sexo, busquei as drogas e o rock n roll. Ser muito miúda me ajudou a não ter tanto acesso às drogas mais pesadas. Mas foi por ali, aos doze é que tomei meus primeiros goles de álcool. O roqueiro tem que cumprir os seus mandamentos. Se não cumpre, é poser.

Eu não sabia que eu não "tinha que" ser de tal forma. Nem que  não "tinha que" ir a tal lugar, nem ser de tal forma. Se não estava coagida, eu não precisava e nem queria? Descobri que era só não fazer. Troquei o "tenho que" por outras coisas, como: "eu quero" ou "eu preciso". Descobri que boa parte das minhas decisões não eram minhas, mas dos outros. E ainda, que cedemos a pressões sociais menores do que supomos que são. "Poser" é uma dessas pequeníssimas pressões.

 Quando relembro minha vida, assim, da pré-adolescência, adolescência, parece que vivi muito mais coisas. Essa fase representou, me parece, mais que 1/3 da minha vida toda. Ao mesmo tempo, não me definiu como pensei que me definiria. Gostaria, inclusive, de me desassociar completamente de certas tribos (dentre as muitas que participei depois). Confundi, por muito tempo, valores morais com tendências sociais criadas em razão de um mercado financeiro. 

 Demorei a perceber que essas caixas não significavam nada além de uma falsa autenticidade. Como disse Lipovetsky, ‘a autenticidade tornou-se o último refúgio do significado’. Roqueiros compram muitas camisas pretas; tal qual as patricinhas compram na Shein. Somos todos humanos e consumidores. Se não sabemos quem realmente somos, somos conduzidos pelas tendências mercadológicas. Eu estava com receio de ser poser por algo que não refletia algo profundo: eu temia me afogar num pires!

 Lá pelas tantas, quis ser mais honesta sobre mim. E foi nessa que conquistei excelentes amizades. Espelhamento de comportamento é algo muito comum. Se você começa a ser verdadeiro com as pessoas, é bem provável que elas sejam verdadeiras com você.

O medo poser ficou no passado e o revisito com uma irônica nostalgia. Com os anos, desenvolvi certa claustrofobia de caixas, sabendo que não se pode fugir muito delas. É de praxe que eu tateie em volta para saber se estou dentro de alguma, só para ter certeza. Talvez eu tema, mesmo, é ser poser de mim mesma.