segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Loop temporal

 Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama em que sempre se deita. Tentou ligar a máquina de café em cápsulas, mas lembrou-se de que havia se esquecido de comprá-las. Fez uma nota mental: comprar cápsulas.

Sentou-se à mesa com uma bolacha e um copo de leite quase coalhado com café solúvel quase vencido e adicionou à lista mental: leite e pão. Enquanto mastigava, pegou o aparelho celular e passou pelas notícias do dia, viu as conquistas dos amigos na rede social e leu sobre a nova invenção. 

Tirou uma selfie após o banho matinal e saiu para o seu dia. No trajeto, usou os fones de ouvido para ouvir o hit do verão lançado naquele mesmo dia. Cantarolou o hit, riu dos vídeos mostrados pelo algoritmo, trabalhou em silêncio, odiando o aniversário que estava sendo comemorado na copa: local de trabalho não deveria ter festa. Seu serviço é relevante e a promoção está próxima. Fim do expediente.

Estressou-se com os dançarinos na rua, fugiu o olhar do mendigo, e agora uma selfie tomando um café caro. Outro hit do verão tocando nos ouvidos. Ao retornar para casa, lembrou de ter esquecido do pão e das cápsulas, pediu o jantar no aplicativo, pediu ao entregador que subisse ao seu andar. Recolheu o seu pedido sem checar. Comeu sem notar o erro da encomenda: o acréscimo do bacon foi esquecido. Tragou a fumaça de seu pod, enquanto aspirava a fuligem da sacada. Resolveu por beber aquela garrafa de cerveja enquanto esperava o celular carregar. 

Mais quatro horas deslizando os dedos numa tela quente, o celular preso ao cabo, o cabo preso ao carregador, o carregador preso à parede. Na tela: as conquistas dos amigos, o novo hit do verão, a promoção, as plásticas, os efeitos, os defeitos, a prática física, a auto aceitação. Comprou dez camisetas de ginástica e uma cinta modeladora de alta compressão. No aplicativo de namoro, marcou um encontro para o final de semana. Caiu no sono já na madrugada.

Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama, sem notar que esta é a 23ª quarta-feira seguida de um loop temporal.

domingo, 15 de setembro de 2024

O amor não é para amadores

  Não se ama lá muito bem de primeira… as tentativas talvez sejam o que chamamos de paixões. É a paixão a tentativa de comprimir o amor da vida inteira numa só pequena pílula. A paixão é aquela coisa corrida e perigosa que se abre num domingo e leva Romeu e Julieta para os braços da morte numa quarta-feira. 

 A paixão é uma cópia mal sucedida porque amputa o amor de muitas formas e, sem piedade, não o faz com anestesia! Amputa-lhe o apuramento, o processo delicado da mesmice, da rotina, do tédio, da calmaria, do envelhecer, de seus sutis altos e baixos, comprime-o a um tamanho ínfimo de sua mais elevada e mais baixa parte. Tão ínfimo… mas tão intenso e viciante, que muitos de seus sobreviventes são como os drogados que perambulam nas ruas, capazes de se comprometerem à vilania, só para satisfazerem o desejo de receberem da paixão mais um bocado. 

 E perambulam, até mesmo quando cientes de que uma paixão bem sucedida tem consequências tais como a dose mais letal do mais letal dos venenos. Ao final da paixão, sobra-lhes o trauma, o ódio e o ressentimento.

 O amor, por outro lado, guarda em si tudo que é belo e trágico da poesia. É mais que um breve sentido, o amor é um reconhecimento do carinho e do afeto. É ele singelo e simples, como o caminhar tranquilo do idoso, é o leme pacífico em meio às ondas agitadas e o racionar da água em meio ao deserto. 

O amor nunca é bem-sucedido, porque nunca será ele mal sucedido. Assim é que se o reconhece. É o material entregue à maestria de um experiente artesão, que mesmo no que lhe parece defeituoso, encontra ali uma saída criativa. Apara suas arestas, limpa e contorna o intrincado trabalho, usa suas peças como elas estão, entalha ali o que se cabe entalhar.

Cada amor é único e especial, e mesmo que dure pouco, que não consagre a união de suas partes, que seja só, o artesão que o recebe faz dele aquilo que dura no peito eternamente com a dignidade finita da nostalgia. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Em 2004

 A vida tinha cheiro de plástico e tutti-frutti e os carros eram naves espaciais que me levavam de um planeta para outro. Era tudo pop music, glitter e tons de rosa. O mundo era mais encantado com meu discman lotado de adesivos de caderno Tilibra. Eu me imaginava como equilibrista entre os fios elétricos e escorregava nos grandiosos tapetes de grama do Mato Grosso do Sul. Mergulhava profundo no Rio Paraná. No caminho para Minas Gerais, via as montanhas e cumes surgirem ao longe. Eu imaginava gigantes adormecidos em cobertas de rocha e a história de uma grande civilização mágica, adormecida por encantamentos. E o enjoo da viagem era ludibriado pelo encantador mundo da imaginação da janela do carro.

O mundo era muito maior e mais cheio de possibilidades e as pessoas muito mais distintas. Os dias quentes eram calorosos abraços de mãe e os dias frios cheios de mistério e canecas de chocolate quente. As gotas de chuva não significam resfriado, mas poças de lama em que eu podia pular. Eu queria muito mais janelas de carro, janelas de ônibus e janelas de avião. Mas logo findavam as férias... e era hora de contar as travessuras aos colegas da classe: antigos ou novos.

A energia ao acordar era potente. Eu estava pronta para explorar o grandioso universo, descobrir o quanto mais rápido poderia correr, pular, ler, e subir ainda mais alto na árvore da casa da minha avó Marlene. Quando eu subia nos muros dos vizinhos, ali era o topo do mundo. Mas eu queria mesmo é ir mais e mais alto na estante de livros. O mais difícil de alcançar era o mais curioso de se ler! Ao abrir um livro, cada página era um mistério que eu estava disposta a descobrir, enquanto comia granulado e intercalava entre segurar os doces e a lanterna para prosseguir na aventura.

Os cristais e incensos na casa da minha vó Iolanda me faziam sentir os ventos do mundo indiano; o retrato do Taj Mahal não era um mausoléu, mas uma bela história de amor num castelo... mas o que eu queria mesmo era apostar corrida naquela longa piscina até os portões do palácio dos reis apaixonados.

O mundo da criança é muito particular. Mesmo quando esse cristal era rachado pela violência dos adultos, ele logo era decorado com flores e rosas feitas com giz de cera. Cada segundo da infância foi vivido intensamente, mente e corpo totalmente presentes, então o momento ruim era sobreposto pelo momento bom com muito mais graciosidade que os dias adultos. Mesmo assim, eu resguardava alguns desses momentos para contemplar o futuro.

Eu sabia que cresceria... além de já ter notado que as pernas ficavam mais longas e rápidas e ágeis a cada ano, já haviam me alertado que não eram só os joelhos que mudavam de lugar. Sim, eu já sabia que a maior dificuldade da vida não seria a tabuada ou as dores chatas do crescimento, eu já me escrevia cartas para o futuro, e nelas, já anotava rascunhos do meu testamento. Eu sabia que 2004 morreria, e com ele, quem eu era naqueles dias de massinha de modelar e lápis faber-castell. 

Sigo até hoje os desejos que deixei testamentados, apesar dos joelhos estarem mais longe do chão: dançar bastante, amar os cachorros, ser mais forte que os meninos e nunca, promessa de dedo, deixar de brincar.