segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Mindinho

 Presumir é como tatear um cômodo conhecido com as luzes apagadas. Não é saber, é achar que sabe. É usar um conhecimento velho, consolidado, como régua do porvir. É acordar de madrugada para fazer xixi sem acender a luz porque, veja bem, você mora na casa há 25 anos. 

Você sabe que a estante está ao lado direito; dá os passos com firmeza. O armário está há trinta centímetros do ombro, a cômoda por volta de um metro, a cama está logo ali, o osso do cachorro largado no tapete já estava mais do que previsto na trajetória. 

A peça de Lego também não foi esquecida - essa não me pega jamais! - a mesa está logo a... 

Ai! 

E foi-se o dedo na quina do sofá. Santa paciência, desde quando essa droga de sofá está aqui?!

A dor não nos permite concluir, no máximo culpar. Então ela passa. 

Quanta coisa a gente aprende no cotidiano... 

Bater o mindinho é um exercício de humildade.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Lá se vai a carruagem do meu passado

Lá se vai a carruagem do meu passado

entre os idos da violência, 

a asma do cigarro

os trilhos da cocaína, 

os beijos ensanguentados


os anos que se arrastaram, 

uns homens que se arrasaram

as virgens que não casaram, 

algumas viúvas, alguns bastardos


E uns amigos antigos, 

estampados no noticiário

ora o astuto, ora o degolado


Quem diria... 

Vai-se o mundo, descarrilhado.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A colheita

  Estou numa fase boa da minha vida, isso porque estou conseguindo certo sucesso no âmbito profissional e em vias de conquistar alguns bens materiais que nunca pensei que teria. Estou aqui, parada em frente ao campo, feito o agricultor que está com tudo no jeito para iniciar a colheita. O que pensa o agricultor neste momento é exatamente o que eu gostaria de pensar: "é hora da colheita". Mas não penso assim - pelo menos não automaticamente.

 Há alguns anos, em 2020, quando a pandemia ainda parecia um exagero de curta duração, eu tinha conquistado meu primeiro trabalho formal, com carteira assinada e direitos trabalhistas comuns. Pontuo que não era um trabalho qualquer - por uma afortunada coincidência era relacionado a uma área de meu interesse, e me permitia manter contato com meus amigos diariamente. Meu aniversário era no mesmo mês do meu primeiro 13º salário e meu cartão de crédito não era uma preocupação. Foi naquele ano que recebi muito carinho dos meus amigos. No trabalho, me presentearam com coisas maravilhosas, comemos um lanche delicioso, recebi muitas mensagens afetuosas, fui abraçada pela minha família, comi muito bolo de chocolate. Foi um dia todo de sorrisos! Um dia perfeito... perfeito! Perfeito demais, né?  Estranho... perfeito, é? Sei não.

 Ao final do dia, li para minha mãe algumas das mensagens que recebi de alunos da academia que frequento. Muitas delas me parabenizando, mas a maioria me agradecendo de algum modo. Um me agradecendo por uma interação positiva, outro por ajudar com a timidez, enfim, coisas maravilhosas que eu nunca imaginava receber. Minha mãe: "isso é presságio de morte".

 Quando ouvi isso da minha mãe, fiquei bastante reflexiva. Apesar de eu ser cética, estava exercendo essa crença desarrazoada desde a tenra infância. Que cultura esquisita, essa nossa, de só demonstrar afeto nas condolências? A felicidade não deveria cheirar a caixão. Muitos dos meus sorrisos me fazem imaginar uma coroa de flores. Talvez seja aquela porcaria de "memento mori"? Sei lá. Ela sempre me deixa com um retrogosto de medo. Medo do final da felicidade. Medo da esperança que a felicidade traz.

Tem aquela sabedoria de Francis Bacon de que a esperança é um bom almoço, mas um mal jantar. Pois então, tenho medo de engasgar antes da primeira colherada. Percebi naquela ocasião como estou habituada à contradição de desgostar dos bons momentos da vida. Meu aniversário tinha sido espetacular, e fiz um esforço bizarramente hercúleo para desfrutar dele.

 Por tanto tempo, e nem sei desde quando, eu me sentia como que vitoriosa por antecipar os maus tempos. Sentia esse orgulho esquisito de ter chegado antes do azar. Acontece é que eu sofria (e talvez ainda sofra) duas vezes mais. Se vou usar o "memento mori", que pelo menos seja da forma correta: É assim que eu chegaria no leito de morte? Com orgulho de não ter desfrutado das conquistas? Essa é a pessoa que eu gostaria de ser? Bom... se eu não me freasse, cairia no automatismo. Quero mesmo é chegar junto à sorte e, se possível, atrasada no azar.

 Cinco anos se passaram, e peno em olhar para a colheita, só para ela, e me alegrar pelos bons frutos - sem pensar numa eventual seca, numa estratégia para combater a crueldade de um futuro terrível que nem se concretizou. 

 Não tenho como esquecer de Aristóteles, que orienta que vida boa é aquela em que se desfruta das coisas que causam deleite e se sofre com as coisas que causam sofrimento, cada uma em seu respectivo momento. É nisso que me firmo hoje.

 Hei de aceitar que minha vida é boa, e está ficando melhor sem a crendice de pensar que a bonança atrai o mal. Em ter esperança, sem abandonar a razão e a alegria. Quero rir sem pensar que o riso é prelúdio do choro. Existem mais formas de se viver do que de morrer. Quero viver para aceitar que sou feliz.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Poser

 Um dos maiores temores dos adolescentes do início dos anos 2000 não era ser poser, era ser considerado poser. Eu não sei em que momento ouvi, pela primeira vez, o termo, mas tenho quase certeza que foi lá pelas tempos em que eu estava procurando alguma caixa para me encaixar. 

 Na época, a caixa significava tribo. Ou se era patricinha, ou se era roqueira. Se gostava de rosa, por certo não era moral que se usasse cinto com spikes. Quem assistia à MTV, certamente não poderia gostar das telenovelas globais. E eu tinha dez anos... ainda.

 Faço aniversário em novembro, o que significa que, enquanto todos já tinham a idade que tinham que ter há meeses, estava eu lá no quarto bimestre, ainda no limiar da infância. Para piorar meu quadro: eu era a menor criatura da 5ª série A e ainda contava com mais dentes de leite do que anos de vida. Eu ainda habitava na caixinha das crianças - mas estava decidida a crescer. E logo! 

 Para identificar meu lugar, abri minha pasta de CDs. Percebi que sentia certa vergonha dos álbuns da Kelly Key, dos Rebeldes, Rouge - já não me representavam mais. Observei, então, que guardava mais orgulho das faixas internacionais gringas. Eu gostava de ouvir os The Strokes, The Kooks, Gorillaz. "Então é certo que sou indie", pensei. Mais algumas páginas: My Chemical Romance, Blink 182, Fall Out Boys. "Talvez, emo". 

Adorei a minha futura caixinha. E daí se era um rock mais melancólico ou talvez algo mais indie? O importante é que eu estava na do rock. E eu adorava o estilo! Os roqueiros, alternativos, contra-cultura, punks, todos eles possuíam algo que eu almejava: atitude para serem quem eram. Fui passando ainda mais as páginas do meu porta-CDs. Daí que me deparei com Rihanna, Shakira, Britney Spears... de pronto fingi que não era mais do meu gosto essas coisas de menininha.

 Ser menininha era ser frágil, indefesa, era ser como todas as outras garotas frescas. Eu, não, eu já havia decidido que era diferente das outras e que meu lugar no mundo era junto ao panteão do rock.

 Cobri as paredes cor-de-rosa com pôsteres, pintei meus olhos de preto, troquei meu guarda-roupa no que pude. E foi tortuosa a transição! Tive que insistir para que a minha mãe me desse um all star preto de cano alto. Além disos, sofri tendo que usar minhas camisetas da Lilica-Ripilica até conseguir alguma camiseta extra GG preta de alguma banda.

 A cena do rock, na época, era muito descolada. Havia uma banda de rock à cada duas garagens. Era legal ir até à pista de skate, ouvir Charlie Brown Jr., ouvir Red Hot Chilli Peppers. Na minha região, ainda tinha Cueio Limão! Eram dias quentes e o lápis de olho preto, escorrido na cara oleosa era realmente parte daquela cultura toda. Eu usava meia rastão, pintava os cabelos com papel crepon, e ficava horas e horas na internet tentando encontrar todo aquele estilo que não se vendia na minha cidade. 

 Talvez alguém tenha me perguntado o nome dos integrantes da banda, talvez eu só tenha percebido que eu não sabia - e foi aí que fiquei assombrada pelo estigma de ser poser. Parecia que só eu é que tinha esse medo, ninguém mais. Todos estavam adequados, sabiam os nomes dos tio-avós do Flea. E eu? Eu não sabia é de nada.

 Em algum ponto, roqueiros agrediam os emos e estes foram sendo estigmatizados. Houve, literalmente, na história da humanidade, um ponto em que um grupo agredia o outro para se desvincular de qualquer semelhança de estilo musical. Fazer o quê? Esses eram os anos 2000...

 Fui me adequando à caixa naquilo que era de melhor. Mas para nunca ser expulsa, também me adequei ao que tinha de pior: o estilo de vida. À parte de ser muito menina para a parte do sexo, busquei as drogas e o rock n roll. Ser muito miúda me ajudou a não ter tanto acesso às drogas mais pesadas. Mas foi por ali, aos doze é que tomei meus primeiros goles de álcool. Afinal, o roqueiro tem que cumprir os seus mandamentos. Se não cumpre, é poser.

Eu não sabia que eu não "tinha que" ser de tal forma. Nem que não "tinha que" ir a tal lugar para me adequar. Oras, se eu não estava coagida, eu não precisava e nem queria? Eu não tinha que nada. Descobri que era só não fazer. Troquei o "tenho que" por outras coisas, como: "eu quero" ou "eu preciso". Descobri que boa parte das minhas decisões não eram minhas, mas dos outros. E ainda, que cedemos a pressões sociais menores do que supomos que são. "Poser" é uma dessas pequeníssimas pressões.

 Quando relembro minha vida, assim, da pré-adolescência, adolescência, parece que vivi mais coisa. Essa fase representou, me parece, mais que 1/3 da minha vida toda. Ao mesmo tempo, não me definiu como pensei que me definiria. Gostaria, inclusive, de me desassociar completamente de certas tribos (dentre as muitas que participei depois). Confundi, por muito tempo, valores morais com tendências sociais criadas em razão de um mercado financeiro. 

 Demorei a perceber que essas caixas não significavam nada além de uma falsa autenticidade. Como disse Lipovetsky, ‘a autenticidade tornou-se o último refúgio do significado’. Roqueiros compram muitas camisas pretas; tal qual as patricinhas compram na Shein. Somos todos humanos e consumidores. Se não sabemos quem realmente somos, somos conduzidos pelas tendências mercadológicas. Pois é... eu estava com receio de ser poser por algo que não refletia algo profundo - eu temia me afogar num pires!

 Lá pelas tantas, quis ser mais honesta sobre mim. E foi nessa que conquistei excelentes amizades. Pense comigo: Espelhamento de comportamento é algo muito comum. Logo, se você começa a ser verdadeiro com as pessoas, é bem provável que elas sejam recíprocas.

O medo poser ficou no passado e o revisito com uma irônica nostalgia. Com os anos, desenvolvi certa claustrofobia de caixas, sabendo que não se pode fugir muito delas. É de praxe que eu tateie em volta para saber se estou dentro de alguma, só para ter certeza. Talvez eu tema, mesmo, é ser poser de mim mesma.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Comendo pelas beiradas

A toda hora que escrevo uma expressão idiomática, o corretor tenta me colocar na linha. Foi aí que caiu a minha ficha: a culpa é da brasilidade. Uma expressão brasileira, de verdade, diz tudo o que tem que dizer através de um trocadilho filosófico e cômico. Nenhum brasileiro que se prese ignora a profundidade semântica. O brasileiro só fala na cara, assim, direto e reto, quando se mete em briga - quando quer só puxar uma orelha, fantasia o pito com alguma frase meio sem pé nem cabeça. Qualquer gringo ficaria igual a uma barata tonta tentando traduzir.

Particularmente, não é da minha preferência comer pelas beiradas, mas as normas sociais me exigem isso. São normas com consequências que são uma fria. É trabalhoso morder para depois ter que assoprar. E o brasileiro não esquenta, ferve!

É cultural que o brasileiro nato fique com o pé atrás em meter o dedo na ferida. Tem medo de pagar mico, tem medo de ver a cobra fumar (com razão). E é só alguém ser direto e reto que a gente já muda o disco para fugir da confusão, não é mesmo? Talvez porque sejamos muito emotivos e acabemos trocando as bolas entre a franqueza e a ameaça.

O meu lugar feliz? Está bem longe de pisar em ovos. É onde posso, mesmo, dar com a língua nos dentes e com a cabeça nas nuvens. 

Como é bom poder ver pelo em ovo e, logo em seguida, abrir o coração sem arrumar sarna pra coçar. E todo mundo sabe, por menos que saiba, como é boa a sensação de botar as cartas na mesa e ninguém se levantar do jogo. Dar a cara a tapa, assim, seja para descascar um abacaxi, seja para falar pelos cotovelos, é uma honra que só a verdadeira maturidade pode proporcionar. 

Bater papo é legal, mas conversar é melhor ainda.