quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Céu

No céu da minha memória,

moram os mortos da minha história

Lá vivem, sorriem e amam

Conversam, vigiam e chamam -

Uns até mesmo oram.


No céu da minha memória

nunca envelhecem, nunca choram

Ironizam a tragédia -

O terreno é da comédia.


Fecho os olhos 

a saudade me fecha.

Feito uma flecha,

o amor me consola.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Fernanda

 Nos últimos dias as pessoas me perguntam duas vezes se eu estou bem. A primeira é por protocolo; a gente sorri e respondo que sim. A segunda vez é logo em seguida, é aí que vem o nó na garganta e os sorrisos apagam. 

É ali que me lembro dos cachos de cabelo dela encostando na minha bochecha direita. Ali é quando lembro do nosso último abraço - que jamais, jamais, pensei que seria o último. Não imaginava que, lembrando da minha amiga, ela me tiraria a alegria e a vontade de viver. Essa foi a terrível e única vez que ela me machucou sem nenhum arranhão.

Se fosse eu quem tivesse ido, o mundo estaria bem melhor representado, isso eu garanto. Às vezes penso que tudo não passa de um pesadelo. Na verdade, ela está lá na casa dela, tomando chá, relaxando ao lado da janela, folheando o vade mecum. 

A Fer nunca terminou de ler O Corcunda de Notre Dame. Eu não a convenci a gostar de poesia. Eu dizia que ela entenderia poesia quando se apaixonasse. A fiz prometer que me contaria sobre o primeiro amor e jurei que ela logo se casaria. Nós não viajaremos para São Paulo juntas para visitarmos os museus. Ela não virá comemorar meu aniversário no dia 16. E o presente que ela me entregou 3 dias antes do acidente fatal está ali na minha estante.

Ano passado, todos os amigos se reuniram na casa dela no dia 21 de dezembro, apesar do aniversário dela ser no dia 19. Menos de um ano depois, estávamos todos lá, sentados em volta da mãe dela, esperando o pai trazer a Certidão de Óbito. Uma amiga da família foi passando o documento no círculo de visitantes, um a um lendo, relendo. Politraumatismo. 27 anos.

Penso que se fosse para realmente escrever algo decente sobre a Fer, eu teria que dispor dos meus dias para criar um livro de vários tomos. Começaria com uma ironia fúnebre: eu dizia a ela que não sobreviveria aos 27 anos, porque me identificava com os astros do rock que partiram nessa idade. E foi-se a Fer aos 27. E eu aqui, aos 30, sem ela. 

É surreal a morte. Até o dia 21 de outubro de 2025 eu pensava que quem morria eram os outros, e nunca quem eu amo. 

Como a Fer era uma pessoa muito sóbria, inteligentíssima, dona de uma coerência ímpar, eu ando lutando para combater meus demônios. O maior presente que ela deixou foi o exemplo. Ativamente luto para agir como ela agiria. Ela conversaria com os amigos para ver se estavam realmente bem; se moveria para prestar as homenagens devidas, teria uma palavra de conforto para a família, e ela seguiria bem e sã pelos muitos anos da vida tranquila que ela teria.

Para me confortar, gosto de pensar que ela nunca sofreu realmente, justamente porque valorou as coisas certas de serem valoradas: o amor, a família, a amizade, a aventura, a intelectualidade... A Fer sempre andava por um caminho de retidão. Ela sabia separar o certo do errado intuitivamente e de forma bastante adequada. E essa intuição foi se apurando cada vez mais, desde que a conheci, quando tínhamos 13 e 15 anos. 

A Fer era tudo (e infinitamente mais) porque teve uma criação amorosa - e até mesmo por isso guardo um grande carinho pela família dela. A Fer é a mãe dela, é o pai, a irmã, a avó, o primo. E eu gostaria de poder fazer algo por todos eles. Mas não sei o que fazer.

Quando respondo, pela segunda vez, se estou bem, 

respondo que ficarei.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Mindinho

 Presumir é como tatear um cômodo conhecido com as luzes apagadas. Não é saber, é achar que sabe. É usar um conhecimento velho, consolidado, como régua do porvir. É acordar de madrugada para fazer xixi sem acender a luz porque, veja bem, você mora na casa há 25 anos. 

Você sabe que a estante está ao lado direito; dá os passos com firmeza. O armário está há trinta centímetros do ombro, a cômoda por volta de um metro, a cama está logo ali, o osso do cachorro largado no tapete já estava mais do que previsto na trajetória. 

A peça de Lego também não foi esquecida - essa não me pega jamais! - a mesa está logo a... 

Ai! 

E foi-se o dedo na quina do sofá. Santa paciência, desde quando essa droga de sofá está aqui?!

A dor não nos permite concluir, no máximo culpar. Então ela passa. 

Quanta coisa a gente aprende no cotidiano... 

Bater o mindinho é um exercício de humildade.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Lá se vai a carruagem do meu passado

Lá se vai a carruagem do meu passado

entre os idos da violência, 

a asma do cigarro

os trilhos da cocaína, 

os beijos ensanguentados


os anos que se arrastaram, 

uns homens que se arrasaram

as virgens que não casaram, 

algumas viúvas, alguns bastardos


E uns amigos antigos, 

estampados no noticiário

ora o astuto, ora o degolado


Quem diria... 

Vai-se o mundo, descarrilhado.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A colheita

  Estou numa fase boa da minha vida, isso porque estou conseguindo certo sucesso no âmbito profissional e em vias de conquistar alguns bens materiais que nunca pensei que teria. Estou aqui, parada em frente ao campo, feito o agricultor que está com tudo no jeito para iniciar a colheita. O que pensa o agricultor neste momento é exatamente o que eu gostaria de pensar: "é hora da colheita". Mas não penso assim - pelo menos não automaticamente.

 Há alguns anos, em 2020, quando a pandemia ainda parecia um exagero de curta duração, eu tinha conquistado meu primeiro trabalho formal, com carteira assinada e direitos trabalhistas comuns. Pontuo que não era um trabalho qualquer - por uma afortunada coincidência era relacionado a uma área de meu interesse, e me permitia manter contato com meus amigos diariamente. Meu aniversário era no mesmo mês do meu primeiro 13º salário e meu cartão de crédito não era uma preocupação. Foi naquele ano que recebi muito carinho dos meus amigos. No trabalho, me presentearam com coisas maravilhosas, comemos um lanche delicioso, recebi muitas mensagens afetuosas, fui abraçada pela minha família, comi muito bolo de chocolate. Foi um dia todo de sorrisos! Um dia perfeito... perfeito! Perfeito demais, né?  Estranho... perfeito, é? Sei não.

 Ao final do dia, li para minha mãe algumas das mensagens que recebi de alunos da academia que frequento. Muitas delas me parabenizando, mas a maioria me agradecendo de algum modo. Um me agradecendo por uma interação positiva, outro por ajudar com a timidez, enfim, coisas maravilhosas que eu nunca imaginava receber. Minha mãe: "isso é presságio de morte".

 Quando ouvi isso da minha mãe, fiquei bastante reflexiva. Apesar de eu ser cética, estava exercendo essa crença desarrazoada desde a tenra infância. Que cultura esquisita, essa nossa, de só demonstrar afeto nas condolências? A felicidade não deveria cheirar a caixão. Muitos dos meus sorrisos me fazem imaginar uma coroa de flores. Talvez seja aquela porcaria de "memento mori"? Sei lá. Ela sempre me deixa com um retrogosto de medo. Medo do final da felicidade. Medo da esperança que a felicidade traz.

Tem aquela sabedoria de Francis Bacon de que a esperança é um bom almoço, mas um mal jantar. Pois então, tenho medo de engasgar antes da primeira colherada. Percebi naquela ocasião como estou habituada à contradição de desgostar dos bons momentos da vida. Meu aniversário tinha sido espetacular, e fiz um esforço bizarramente hercúleo para desfrutar dele.

 Por tanto tempo, e nem sei desde quando, eu me sentia como que vitoriosa por antecipar os maus tempos. Sentia esse orgulho esquisito de ter chegado antes do azar. Acontece é que eu sofria (e talvez ainda sofra) duas vezes mais. Se vou usar o "memento mori", que pelo menos seja da forma correta: É assim que eu chegaria no leito de morte? Com orgulho de não ter desfrutado das conquistas? Essa é a pessoa que eu gostaria de ser? Bom... se eu não me freasse, cairia no automatismo. Quero mesmo é chegar junto à sorte e, se possível, atrasada no azar.

 Cinco anos se passaram, e peno em olhar para a colheita, só para ela, e me alegrar pelos bons frutos - sem pensar numa eventual seca, numa estratégia para combater a crueldade de um futuro terrível que nem se concretizou. 

 Não tenho como esquecer de Aristóteles, que orienta que vida boa é aquela em que se desfruta das coisas que causam deleite e se sofre com as coisas que causam sofrimento, cada uma em seu respectivo momento. É nisso que me firmo hoje.

 Hei de aceitar que minha vida é boa, e está ficando melhor sem a crendice de pensar que a bonança atrai o mal. Em ter esperança, sem abandonar a razão e a alegria. Quero rir sem pensar que o riso é prelúdio do choro. Existem mais formas de se viver do que de morrer. Quero viver para aceitar que sou feliz.