quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A primeira decepção a gente nunca esquece

 Na infância, fui exposta a muito conteúdo de romance. Criei uma grande expectativa com relação ao amor. Eu achava, de coração eu achava, que o amor era encontrar alguém que me completasse, que me fizesse companhia nos tempos obscuros. Tinha expectativa até do primeiro coração partido - era quase como um estoicismo: era parte dos caminhos do amor quebrar a cara. No entanto, diferentemente do que eu esperava, minha primeira decepção amorosa não veio de alguma rejeição particular, mas do próprio status quo, do cenário romântico dos anos 2000.

As minhas amigas - todas muito bonitas - iniciaram namoros muito cedo, ali por volta dos 11/12 anos de idade. Olhando em volta deduzi: Menina bonitas namoravam com meninos bonitos. Gente feia, ficava de fora. Vixi... e olha eu ali, de fora.

Não demorei para perceber que o romance era um campo de batalha e que eu estava bem longe do front. E o front era importantíssimo! Só estavam lá os aptos, selecionados pela cultura: quem não tinha espinha; não precisava de aparelho ortodôntico; já possuíam características adultas. As meninas: seios. Os meninos: talvez um bigodinho com três ou quatro fios másculos. Penso que guerras e concursos de beleza se confundiam naquele campo amoroso. 

Estar ali, no centro da disputa, era como disputar uma coroa: receber um pedido de namoro equivalia a ganhar o Miss Universo. Namorar era o reconhecimento de que se tornara mulher. E se eu tivesse conhecido a frase da Simone de Beauvoir na época, concordaria que não se nasce mulher: torna-se. E ainda acrescentaria que sutiãs e aliança de compromisso eram parte fundamental da transformação.

Eu já deduzia tudo isso e normalizava essa lógica, de tal forma que até tentei me adequar. Digo e repito que o sutiã de bojo foi, para mim, tão importante quanto a descoberta do fogo e da roda. Mas que complicação que era namorar! Principalmente quando as, agora oponentes, eram tão... curvilíneas. 

Fiquei pra trás e fiquei sozinha. Não só porque os meninos não me queriam, mas porque minhas amigas mudaram... e para bem longe de mim: adultas e crianças não pertencem aos mesmos grupos.

Lembro de ligar para a A. e G. para marcamos uma partida bets na rua (não as bets de apostas!). Não puderam ir: tinham combinado de tomar chá de canela com outras meninas. "Chá de canela? Tudo bem, marcamos para  outro dia". Bip.

Só anos depois entendi que acreditavam que aquele chá servia como anticoncepcional. Não fazia nem 2 anos que tínhamos aprendido de onde os bebês saíam e elas já estavam buscando formas alternativas para eles sequer entrassem...

Foi minha primeira grande decepção amorosa: descobrir que, para elas, namorar significava estar sempre ao lado dos rapazes, servindo tereré na beira da quadra, enquanto eles jogavam futebol. Os assuntos se resumiam a sexo, namorado, chá de canela, cytotec, testes de gravidez, choro por traição, alívio de não estar grávida, beber para esquecer. E eu acreditava, com arrepios, que essa seria também a minha realidade, e que era só questão de tempo...

Não foi. Na época achei que era azar não ter me desenvolvido fisicamente, azar ter tanta acne, ter que usar aparelho, pele oleosa. Na verdade, foi sorte. O "atraso" - que era apenas um desenvolvimento absolutamente normal para uma menina de 12 anos - me fez esperar para descobrir que ser mulher poderia ser muito mais. 

Descobri que o amor vai tão mais além do sexo! Que podia jogar futebol na quadra com o meu namorado, manter as amigas solteiras na minha vida, falar sobre a ineficácia do chá de canela, beber para criar memórias legais, chorar por traição, litigar pela liberação do cytotec, ter amigas e amigos íntimos, sair sem dar satisfação pro namorado, fazer dele meu melhor amigo, aumentar as amizades com as amizades dele, criar laços fortes com todo tipo de gente.

Minha primeira decepção amorosa me fez aprender a amar... amar ser mulher.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A Criatividade

Tem autores, como o Neil Gailman, que escrevem todos os dias- e não se levantam sem que a folha em branco se torne uma obra de arte. Ouvi dizer que Victor Hugo se despia, entregava as roupas aos criados e ordenava que só as devolvessem depois uma certa meta de produtividade. O Gabriel García Márquez só escrevia histórias que gostaria de ler, e se dedicava fervorosamente, ao ponto de se ver cara a cara com a falência financeira.

Balzac utilizava o método do sono segmentado, muito café e rigidez. O velho Bukowski também só escrevia com algo para beber - qualquer coisa bem mais alcoólica do que café. Dizia escrever para não enlouquecer - por ironia, o método era diário... É poético, mas também preocupante que tombava a cabeça fazendo da máquina de escrever seu travesseiro.

Mas minha profissão não é cronista, minha profissão não é poeta. É bem mais dramática: advogada. E por nunca ter tempo, escrevo tão somente quando sinto aquela unção da criatividade inundando minh'alma.

Penso que um texto nasce da mesma forma como o amor nasce... ou como uma coceira na ponta do nariz. Ou seja, irrompe nas horas mais inoportunas. A Criatividade escolhe um momento em que eu não tenho ao alcance uma caneta sequer. Me coça depois da meia-noite, na prévia de uma reunião importante, ou quando estou numa tormenta de ações civis. 

Ela fica ali, circulando, parecendo genial demais para se deixar escapar. E faço um esforço hercúleo para não deixá-la esquecida até o fim do expediente, anotando um traço aqui, outro ali, em algum lugar qualquer. Se acontece de não anotar, pecado este que pratico diariamente, ela se perde. Por vezes, totalmente. Por vezes, retorna durante meu banho - quando não dá para anotar é nada. No tempo que tenho de sair, me enxugar, buscar um papel, uma caneta, carregar o notebook o suficiente para conseguir registrar... PUFT! Já se foi. E sobre o que mesmo eu falava?...

E acho que, se ela nasce, é desse ninho que chamo de cérebro. Ela tem a ver com essas milhões de opiniões que tenho, que ficam rodando em segundo plano enquanto termino a 14ª contraminuta de Recurso Especial do dia. Ela deve fazer um zigue-zague, costurando uma mágoa, aquele filósofo lá, com um coração partido ali, três linhas de um livro que abandonei; aquela lembrança boa com a chuva de verão.

Oi, tudo bem?

Nas conversas corporativas é muito comum que nos comuniquemos de forma teatral. 

Nos e-mails? "Prezado colega, Espero que este e-mail te encontre bem.". O colega não é prezado, nunca o vi na vida. Talvez seja prezado pela família, né? Mas não por mim. E não quero exatamente que o texto o encontre bem. Quero que ele esteja bem o suficiente para liberar aquele comprovante atrasadíssimo, que me prometeu a uma hora atrás. Na verdade, quero é que o e-mail o encontre é MAL, porque fiz 40 minutos de hora extra e minha pizza está esfriando. É sexta! Tenha dó, colega!

E a ironia do "Att." ou "At.te"? Não são muito atenciosos, heim?

Eu nunca uso "Prezado". E o "Tudo bem com você", que integra a liturgia do cumprimento, me causa alergia. E o prólogo oficial dos diálogos rotineiros são tipo: "Oi, Ju. Bom dia! Tudo bem com você?". 

Mas eu detesto isso. Primeiro porque o dia não é bom; e se ninguém quer saber se está tudo bem consigo mesmo, imagina só com a equipe do Financeiro. Vamos combinar: o "Oi" só é colocado para não chegarmos falando o nome da pessoa, soando de forma autoritária.

Quando posso, portanto, deixo apenas o “Oi” e já parto para o assunto. Prefiro ser poupada de gastar as teclas do teclado respondendo que está tudo bem. Por vir de um lar de criação cristã, aprendi desde cedo a não fazer com os outros aquilo que não quero que façam comigo. Dar a outra cara à tapa, respeite o próximo como a si mesmo... ou algo nesse sentido.

É assim que inicio interações trabalhísticas: Oi, Ju. Então (e adentro no assunto). Apesar disso ser plenamente possível, quase ninguém faz. É um vício não só da língua. É um vício de uma sociedade que só Bauman explica. Testando, percebi que mesmo que eu não coloque essas introduções, ninguém realmente nota a ausência.

Acontece das pessoas estarem tão automatizadas, que mesmo quando deixo de lado o Tudo Bem Com Você Ponto de Interrogação, elas me respondem que estão bem e devolvem "E com você?". É aí que noto que o tiro saiu pela culatra. O que planejei se voltou contra mim. Agora terei que responder com Que Bom Que Você Esteja Bem, está Tudo Certo Por Aqui - mesmo que eu não tenha, sob hipótese alguma, perguntado antes.

E por qual razão respondo a esse questionamento artificial? Por quê sou arrastada para essa encenação? O intuito é não quebrar a quarta parede. É não fazer com que a pobre, cansada, exausta, semi-burnoutada, trabalhadora do outro lado daquela tela de computador note que enviou uma resposta a uma pergunta nunca, jamais feita. Para que a Ju das Finanças não abra a planilha de Excel e note que caiu vítima de um sistema fajuto dos Tudo-Bens. Para que ela não se questione sobre o porquê de não quererem saber como ela está - mesmo que ela esteja bem. Sempre bem, Obrigada.

É para salvar a Ju. Para ela nunca despertar para o fato de que nunca esteve e nem estará mal. Que ninguém estará mal: o Joca do RH, a Lua do TI, o Aristeu do Compliance e nem mesmo o Cristóvão do Jurídico, que odeia a tudo e todos e que não esconde isso dos colegas. Ninguém. Nunca. Estará. Mal. Numa resposta de mensagem corporativa.

Atenciosamente,

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Cadabra!

 


Desde jovem, muito jovem

Aos montes me tolhem

Deixo. Que olhem!


Cresci feia - ora, pois, ris!

Nariz torto de chafariz

Verruga na ponta, adorno de cicatriz


E cresci com tudo

Trajei chapéu pontudo

Teci-me de preto - escudo


Deram-me vassoura "Para o chão!"

- Ao cão! -

Transformei-a em aviação

Sobrevoei seu espantado coração


Da fogueira a qual fui amarrada

E era quente feito vulcão

Escapei com esforço de nada

Colhi a madeira - lenha pro caldeirão


Do espanto e do ódio

Olho de sapo, lasca de ródio

E de cima do pódio, bebi com limão


Em minha cabana isolada

És doce, morada!

A escória da população


Importo-me? Pouco

Converso com corvos!

Têm melhor oração


E passeio entre a floresta

Aventuro-me em suas frestas

Leio meus feitiços

Meus amigos esquisitos


Marco as folhas com minhas unhas compridas

Afio nas cortinas!

Meus cabelos já brancos

E todos em bando:


Às crianças perdidas, ofereço doces

À bela jovem, um tear

E a maçã que envenenaram

Puseram-me a tudo culpar!


Afundo na floresta -

"Nunca a vimos" - o povo em festa

Mas me veem nas frestas

De suas morais avessas


De suas culpas quietas

realizadas às pressas

Em oportunas surdinas

Afio minhas unhas em suas cortinas

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Gangas da vida

 Sabe o porquê da paradeira neste blog? 

Minhas unhas estavam muito... muito compridas. E não é por vaidade. Quem me dera! Mas por uma grande falta de administração do tempo. 

Devo colocar a culpa na modernidade? Mais ou menos. Posso colocar? 

Posso. 

O barulho das unhas tocando o teclado me incomodava profundamente toda vez que eu me sentava para escrever algo pessoal. Podar essas garras se trata de uma, dentre várias, tarefas que fui adiando e adiando. Pelo menos há licença poética da feminilidade. 

De todo modo, imaginei que eventualmente elas se quebrariam. Mas não. Muito pelo contrário.

Estas unhas toleraram um mês de impactos na capoeira, subidas e descidas no Pole Dance, aulas de ritmos brasileiros, outros sobes e desces do feed do Instagram, 8 horas diárias de trabalho + 25 horas extras. Toleraram dupla jornada de serviço, minha ansiedade de 3h de estudos diários, 1h30 de musculação, 6 vezes na semana, mais horas e horas de rolagem no feed, e ainda outras horas extras e...

Que unhas fortes! 

Bem, pensei que precisava desabafar algo, há muito tempo, daí que finalmente procurei a tesoura. Quase desisti enquanto procurava a bendita tesoura. Mas não desisti. Cá estou, escrevendo com meus dedos livres, sem aquele "tac tac tac" chato. 

Enquanto cortava, pensei que queria ter várias vidas para fazer tudo: cortar as unhas regularmente, lutar, desenhar, compôr... E saber por qual razão o acento do "compor" não sobreviveu ao Acordo Ortográfico. 

Com mais uma vida, juro, eu leria o Acordo Ortográfico. Nesta, não dá! Já estou lendo cinco livros.

Marco Aurélio meditou que não adianta ao homem viver mais do que é permitido por sua natureza. Isso porque a vida é um ciclo que se repete infinitamente e nada seria tão novo quanto o momento presente. Duvido que ele não se espantaria com a vida moderna. 

Ele ainda dizia que a vida era breve, mas com essa ocupação toda... ela não chega ao "bre".

A tecnologia me passava a ideia de otimização do tempo, mas ando é desconfiada que ela nos retira as coisas legais e nos deixa a sós com as chatices burocráticas. Não quero bradar contra o avanço do mundo. Nem terceirizar tudo e transformar esse texto numa lista de desculpas egoicas.

Talvez, se eu não ficasse duas horas diárias me comparando com bilhões de pessoas mais criativas, mais fortes e com unhas aparadas, quem sabe esse texto nem sequer teria existido - daria lugar a outro. 

Tá bom que a tecnologia tem sua parcela... mas eu também.

Odeio, desde muito jovem, me reconhecer como parte da massa de manobra humana (coisa que faria Aurélio me repreender). Odeio me notar nos trechos de "Sociedade do Cansaço", de ser um bicho que se encanta pelas gangas da High Performance, da autocomparação compulsiva, do consumismo influenciado.

Tristemente, estou naquele padrão de consumidores que gasta pelo impulso, que não tem reservas. Em 2024 foi o ano que mais me robotizei nas tarefas. Pensei que era feita de fuzis, hardwares e softwares. Mas sou mesmo é de carne e ossos. Meu lado humano, consegui abstrair das faturas do cartão de crédito - estavam altíssimas.

Quanto mais me atualizo sobre os males da modernidade, mais consigo separar o que controlo do que não controlo. Neste ano consegui reconhecer como ser parte de uma demografia de consumo implicou na redução da minha felicidade geral. E quero pôr minhas mãos de carne à obra.

Por consumir muito, precisei trabalhar muito — o que atrapalhou meu sono, me fez trabalhar cansada, me tornou mais propensa ao impulso, entregue aos prazeres imediatos e mais inclinada a buscar felicidade no pix parcelado.

Agora que cortei as unhas e desabafei aqui, 

estou pronta para o próximo item da lista.