Vermelho.
Veículos furiosos aceleram e desaceleram com seus motores quentes, buzinas estão a postos, o ódio nos semblantes; encaram fulminantes o semáforo para que se adiante. Eis a ansiedade dos segundos que separam o vermelho do amarelo. Duas cores os separam do descanso, do compromisso, da cerveja, do abraço, do riso, do choro, do mercado, do lanche, da comida. Amarelo! E todos sabem que o amarelo é quase verde.
À direita, um velho ultrapassa os carros e passa o semáforo que os aprisiona. Nos faróis acesos constata-se um brilho de inveja. Cigarros são jogados ainda acesos; motociclistas costuram o tráfego com seus barulhentos escapamentos. O som aumenta! É verde! Bam! As rodas queimam o asfalto. O carro da frente da fila é velho, demora dois segundo da partida. Xingamentos explodem por entre vidraças. As motos vencendo a corrida. Buzinas buzinam. O carro acelera e inaugura a partida.
Enquanto isso, o senhorzinho com longas orelhas, pedala vagaroso uma Monark. Ele, que nunca conseguiria queimar o asfalto com suas sandálias de borracha, inspira a borracha queimada que o persegue. A luz dos faróis ilumina seu caminho, o que o salva de uma garrafa quebrada que boia na água fétida do esgoto que fica no meio-fio. Paciente e cansado, espremido entre o asfalto dos carros e a calçada dos pedestres, é ultrapassado em menos de uma quadra.
Os motoristas passam velozes e deixam para trás da avenida e da memória o senhorzinho orelhudo e aquela vaga inveja. Trocam de faixa, desviam, contornam, uns dão seta, mostram o braço, o dedo do meio, a língua, os punhos, mudam abruptamente de direção, param, são multados pelo pardal. Motos desviam do quebra-molas, condutores se chacoalham ao passarem direto pelo obstáculo. Uns correm prum botequim, outros aceleram prum funeral. Ultrapassam pela esquerda, reciprocamente. A ambulância impedida de resgatar um condutor; a polícia acelera para pegar o ladrão. O ladrão refugia-se na calçada.
O senhorzinho pedala numa subida difícil, quase é atingido por um ladrão. Ele vira primeiro à direita, depois esquerda, até que descansa os pés numa íngreme descida que o transporta. Na descida, passa em frente a um funeral. Com seus ouvidos cansados, ouve risadas de uma família que há muito não se reunia. Mas não registra o pensamento. Depois vira à direita, retoma o pedal, desacelera, desce cuidadoso, amarra o pneu no poste batido e desce no botequim. Cumprimenta o dono, pede "a de sempre".
Sua cachaça é servida num copo meio-lavado, senta-se numa meia-cadeira, encosta-se num improviso de mesa. Ouve lágrimas de solidão, corações partidos, Amado Batista e bolas de bilhar, enquanto descansa os olhos, e o descansa o coração. Deu o último gole de sua cachaça fatal.
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