sábado, 20 de setembro de 2025

O meu inferno pessoal

 Se houvesse um inferno e ele fosse arquitetado à maneira do condenado, o meu seria uma repartição pública brasileira. O diabo, sempre inventivo na maldade, criaria um aplicativo do governo federal. Como se não bastassem documentos, números, códigos e subcódigos que devemos saber de cor e salteado, ele acrescentaria um sistema de reconhecimento facial com autenticação em dois — ou melhor, dez — fatores. Kafka teria material de sobra hoje em dia.

 Semana passada, meu vizinho deu ré e bateu na porta do meu carro, estacionado do outro lado da rua. Foi honesto: tocou a campainha, prometeu pagar, acionou o seguro. Mas o que me tirou do sério não foi o amassado, foi a burocracia. A seguradora exigiu dois documentos. Se um já é difícil de conseguir, dois é crueldade.

 Como a porta do meu carro não está abrindo, fui forçada a optar pela reparação pela seguradora. Pensei 'ao menos não preciso enfrentar fila, é só obter online'. Engano é pouco. A fila talvez fosse menos cruel.

 Para acessar o aplicativo, precisei baixar outro aplicativo. Para usar esse, reativar a autenticação de dois fatores. Para reativar, fotos do rosto de frente, de lado, de perfil — sem óculos. E como não enxergo um palmo à frente do nariz, a leitura das instruções minúsculas foi um suplício. Eis a explicação da cara de tristeza dos funcionários públicos.

 Após tantos trâmites, ainda descobri que a habilitação para dirigir estava vencido há poucas semanas. Para habilitá-la, adivinhe? Outro aplicativo, outras autenticações, taxas, pagamentos e agendamentos. Teria sido mais barato pagar a porcaria da porta do que sentir a raiva que senti: do meu vizinho; do sistema; da autenticação de dois fatores (que, na verdade, são dez).

 Se tenho raiva, é porque ainda tenho esperança num futuro em que saibam quem somos (e de graça, sem confirmação de firma). Esperança pelo fim dos cartorários, do Departamento de Trânsito, na Revolução! Esperança de que se eu me chacoalhar, urrar, feito um bebê nervoso, serei ouvida e atendida de uma vez. Fé de que o aplicativo compreenda que eu já autentiquei que eu sou a a mesma Eu que digitou a senha e tirou a selfie a menos de um segundo atrás; de que a falta de uma taxa não me fez esquecer como se dirige um veículo, como se a cada 5 ou 10 anos a memória se apagasse e só seria lembrada ao pagar R$ 400 ao Governo Federal, Estadual e Municipal.

 Ô sistema, Kafka, ô sistema!

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