quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Comendo pelas beiradas

A toda hora que escrevo uma expressão idiomática, o corretor tenta me colocar na linha. Foi aí que caiu a minha ficha: a culpa é da brasilidade. Uma expressão brasileira, de verdade, diz tudo o que tem que dizer através de um trocadilho filosófico e cômico. Nenhum brasileiro que se prese ignora a profundidade semântica. O brasileiro só fala na cara, assim, direto e reto, quando se mete em briga - quando quer só puxar uma orelha, fantasia o pito com alguma frase meio sem pé nem cabeça. Qualquer gringo ficaria igual a uma barata tonta tentando traduzir.

Particularmente, não é da minha preferência comer pelas beiradas, mas as normas sociais me exigem isso. São normas com consequências que são uma fria. É trabalhoso morder para depois ter que assoprar. E o brasileiro não esquenta, ferve!

É cultural que o brasileiro nato fique com o pé atrás em meter o dedo na ferida. Tem medo de pagar mico, tem medo de ver a cobra fumar (com razão). E é só alguém ser direto e reto que a gente já muda o disco para fugir da confusão, não é mesmo? Talvez porque sejamos muito emotivos e acabemos trocando as bolas entre a franqueza e a ameaça.

O meu lugar feliz? Está bem longe de pisar em ovos. É onde posso, mesmo, dar com a língua nos dentes e com a cabeça nas nuvens. 

Como é bom poder ver pelo em ovo e, logo em seguida, abrir o coração sem arrumar sarna pra coçar. E todo mundo sabe, por menos que saiba, como é boa a sensação de botar as cartas na mesa e ninguém se levantar do jogo. Dar a cara a tapa, assim, seja para descascar um abacaxi, seja para falar pelos cotovelos, é uma honra que só a verdadeira maturidade pode proporcionar. 

Bater papo é legal, mas conversar é melhor ainda. 

sábado, 20 de setembro de 2025

O meu inferno pessoal

 Se houvesse um inferno e ele fosse arquitetado à maneira do condenado, o meu seria uma repartição pública brasileira. O diabo, sempre inventivo na maldade, criaria um aplicativo do governo federal. Como se não bastassem documentos, números, códigos e subcódigos que devemos saber de cor e salteado, ele acrescentaria um sistema de reconhecimento facial com autenticação em dois — ou melhor, dez — fatores. Kafka teria material de sobra hoje em dia.

 Semana passada, meu vizinho deu ré e bateu na porta do meu carro, estacionado do outro lado da rua. Foi honesto: tocou a campainha, prometeu pagar, acionou o seguro. Mas o que me tirou do sério não foi o amassado, foi a burocracia. A seguradora exigiu dois documentos. Se um já é difícil de conseguir, dois é crueldade.

 Como a porta do meu carro não está abrindo, fui forçada a optar pela reparação pela seguradora. Pensei 'ao menos não preciso enfrentar fila, é só obter online'. Engano é pouco. A fila talvez fosse menos cruel.

 Para acessar o aplicativo, precisei baixar outro aplicativo. Para usar esse, reativar a autenticação de dois fatores. Para reativar, fotos do rosto de frente, de lado, de perfil — sem óculos. E como não enxergo um palmo à frente do nariz, a leitura das instruções minúsculas foi um suplício. Eis a explicação da cara de tristeza dos funcionários públicos.

 Após tantos trâmites, ainda descobri que a habilitação para dirigir estava vencido há poucas semanas. Para habilitá-la, adivinhe? Outro aplicativo, outras autenticações, taxas, pagamentos e agendamentos. Teria sido mais barato pagar a porcaria da porta do que sentir a raiva que senti: do meu vizinho; do sistema; da autenticação de dois fatores (que, na verdade, são dez).

 Se tenho raiva, é porque ainda tenho esperança num futuro em que saibam quem somos (e de graça, sem confirmação de firma). Esperança pelo fim dos cartorários, do Departamento de Trânsito, na Revolução! Esperança de que se eu me chacoalhar, urrar, feito um bebê nervoso, serei ouvida e atendida de uma vez. Fé de que o aplicativo compreenda que eu já autentiquei que eu sou a a mesma Eu que digitou a senha e tirou a selfie a menos de um segundo atrás; de que a falta de uma taxa não me fez esquecer como se dirige um veículo, como se a cada 5 ou 10 anos a memória se apagasse e só seria lembrada ao pagar R$ 400 ao Governo Federal, Estadual e Municipal.

 Ô sistema, Kafka, ô sistema!

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A primeira decepção a gente nunca esquece

 Na infância, fui exposta a muito conteúdo de romance. Criei uma grande expectativa com relação ao amor. Eu achava, de coração eu achava, que o amor era encontrar alguém que me completasse, que me fizesse companhia nos tempos obscuros. Tinha expectativa até do primeiro coração partido - era quase como um estoicismo: era parte dos caminhos do amor quebrar a cara. No entanto, diferentemente do que eu esperava, minha primeira decepção amorosa não veio de alguma rejeição particular, mas do próprio status quo, do cenário romântico dos anos 2000.

As minhas amigas - todas muito bonitas - iniciaram namoros muito cedo, ali por volta dos 11/12 anos de idade. Olhando em volta deduzi: Menina bonitas namoravam com meninos bonitos. Gente feia, ficava de fora. Vixi... e olha eu ali, de fora.

Não demorei para perceber que o romance era um campo de batalha e que eu estava bem longe do front. E o front era importantíssimo! Só estavam lá os aptos, selecionados pela cultura: quem não tinha espinha; não precisava de aparelho ortodôntico; já possuíam características adultas. As meninas: seios. Os meninos: talvez um bigodinho com três ou quatro fios másculos. Penso que guerras e concursos de beleza se confundiam naquele campo amoroso. 

Estar ali, no centro da disputa, era como disputar uma coroa: receber um pedido de namoro equivalia a ganhar o Miss Universo. Namorar era o reconhecimento de que se tornara mulher. E se eu tivesse conhecido a frase da Simone de Beauvoir na época, concordaria que não se nasce mulher: torna-se. E ainda acrescentaria que sutiãs e aliança de compromisso eram parte fundamental da transformação.

Eu já deduzia tudo isso e normalizava essa lógica, de tal forma que até tentei me adequar. Digo e repito que o sutiã de bojo foi, para mim, tão importante quanto a descoberta do fogo e da roda. Mas que complicação que era namorar! Principalmente quando as, agora oponentes, eram tão... curvilíneas. 

Fiquei pra trás e fiquei sozinha. Não só porque os meninos não me queriam, mas porque minhas amigas mudaram... e para bem longe de mim: adultas e crianças não pertencem aos mesmos grupos.

Lembro de ligar para a A. e G. para marcamos uma partida bets na rua (não as bets de apostas!). Não puderam ir: tinham combinado de tomar chá de canela com outras meninas. "Chá de canela? Tudo bem, marcamos para  outro dia". Bip.

Só anos depois entendi que acreditavam que aquele chá servia como anticoncepcional. Não fazia nem 2 anos que tínhamos aprendido de onde os bebês saíam e elas já estavam buscando formas alternativas para eles sequer entrassem...

Foi minha primeira grande decepção amorosa: descobrir que, para elas, namorar significava estar sempre ao lado dos rapazes, servindo tereré na beira da quadra, enquanto eles jogavam futebol. Os assuntos se resumiam a sexo, namorado, chá de canela, cytotec, testes de gravidez, choro por traição, alívio de não estar grávida, beber para esquecer. E eu acreditava, com arrepios, que essa seria também a minha realidade, e que era só questão de tempo...

Não foi. Na época achei que era azar não ter me desenvolvido fisicamente, azar ter tanta acne, ter que usar aparelho, pele oleosa. Na verdade, foi sorte. O "atraso" - que era apenas um desenvolvimento absolutamente normal para uma menina de 12 anos - me fez esperar para descobrir que ser mulher poderia ser muito mais. 

Descobri que o amor vai tão mais além do sexo! Que podia jogar futebol na quadra com o meu namorado, manter as amigas solteiras na minha vida, falar sobre a ineficácia do chá de canela, beber para criar memórias legais, chorar por traição, litigar pela liberação do cytotec, ter amigas e amigos íntimos, sair sem dar satisfação pro namorado, fazer dele meu melhor amigo, aumentar as amizades com as amizades dele, criar laços fortes com todo tipo de gente.

Minha primeira decepção amorosa me fez aprender a amar... amar ser mulher.