terça-feira, 17 de junho de 2025

Apologia à Leitura

Em 2024 eu tive, por obrigação, que desenvolver um projeto de extensão na universidade em que leciono. O projeto não poderia se limitar aos acadêmicos, devendo alcançar a comunidade naviraiense. Pensei, pensei e pensei: Clube de Leitura. 

Acontece que as pessoas não leem muito. Na verdade, mais da metade da população brasileira não lê, e mesmo ali na sala de aula, muitos não sabiam dizer a última vez que leram. Pensei, então, que seria uma boa oportunidade para estimular uma mudança positiva no mundo - começando por 57 alunos do curso de Direito que estavam forçados a comparecerem. Para tanto, deveria convencê-los a ficar de corpo e mente. Convencê-los que a leitura é importante e sobre o porquê ler sobre coisas inexistentes é tão legal. 

O cérebro de quem lê é diferente. Não sabia? Pois esteja ciente: A leitura é mais complexa que a fala. Nas minhas pesquisas para justificar essa afirmação, encontrei informações interessantíssimas para compartilhar com os integrantes do clube. Se uma criança é colocada em um ambiente conversacional, desenvolverá eventualmente a conversação, mas se colocada em uma biblioteca, ela não entenderá os sinais estranhos do papel, não saberá convertê-los em palavras por hábito. Para a leitura, é necessário o ensino, tanto para o desenvolvimento de frases coesas como para o desenvolvimento da atenção. Da atenção? Sim! É preciso atenção quando se lê. Mesmo que não haja uma entonação da voz, a leitura atenta ensina a imaginação a ouvir.

Ler é útil por muitas razões: entendermos orçamentos, instruções, o Vade Mecum, um Recurso Extraordinário e aquela primeira carta de amor. Podemos ir além do útil: ler algo que não está restrito a nós mesmos, nem mesmo à nossa terra... ou nosso tempo. 

Não faz muito tempo que viajei para a Colômbia, parei em Belo Horizonte nos anos 1960, passei por Macondo, fiz uma refeição num restaurante no fim do Universo e até ancorei em Ankh-Morpork. Esse fenômeno mágico de ser hipnotizada por símbolos e crer neles tem até nomenclatura: suspensão voluntária da descrença.

Mas por qual razão recorremos à literatura ficcional? Talvez a resposta tenha sido dada pelo poeta Rainer Maria Rilke. Ele me fez pensar que as coisas não são fáceis de se aprender e que a maioria dos acontecimentos é indizível - eles ocorrem em espaços não totalmente penetrados pelas palavras, e por isso os traduzimos através da arte. Mais indizíveis ainda são as obras de arte, essas existências misteriosas que se criam ao lado das nossas, no mesmo universo, mas num plano inexistente. Estranho, não?

O escritor sonda as próprias profundezas, aceita a existência em todo seu alcance abstrato e se empenha. Como é curioso o processo de um escritor que, com uma máquina de escrever, uma folha em branco, pensa consigo "E se todas as pessoas, de repente, ficassem cegas?" e escreve "O disco amarelo iluminou-se". 

Nosso cosmos existencial não é feito tão somente de semáforos, aviões, relógios, mas de coisas que não são feitas de átomos: sonhos, medos... coisas que assombram nossos instintos. O sonhar acordado, perceba, é imaginar o que está além das fronteiras do conhecimento, da própria vida. É alcançar um portal mágico, é o arrepio das premonições, é ver o invisível sem os olhos!

Talvez os antepassados assustassem as crianças para que elas não tocassem as chamas da fogueira, antes mesmo da escrita cuneiforme, mas literatura, escrita, que registra em símbolos a fantasia, começou, mesmo, por volta do século XIX, e em língua inglesa. Aprendi com o Jorge Luis Borges que um dos exemplares da leitura fantástica foi Rabelais (XVII).

O que encontramos na leitura de ficção, do tipo fantástico, é a surpresa. Na leitura fantástica é criado o ambiente propício ao medo (casarão, chuvas, raios), após, é criado um contraste entre a normalidade e o evento incomum. Durante a história da fantasia literária, os autores descobriram que não revelar o monstro, completamente, também é uma ferramenta eficaz. A surpresa muda o leitor e o leitor exige mais da surpresa.

Os livros ficcionais podem nos fazer sentir a tensa paixão entre a prostituta Hilda e o santo Frei Malthus para expressar as problemáticas do moralismo que ferveu o caldeirão da Ditadura Militar brasileira. Por outro lado, podem ser escritos para simplesmente nos fazer presenciar uma fórmula amorosa insossa e esquecível.

A leitura apaixonante, mesmo, é a boa leitura. As boas obras de arte surgiriam dessa necessidade de tradução das coisas indizíveis, não conhecidas, inexploradas, interessantes, desse cosmos existencial ao qual estamos condenados a passear.

Como separar a boa leitura da má leitura? Qual livro escolher na estante?

O Schopenhauer aconselha evitar a prateleira dos best sellers. Os mais vendidos, que causam grandes rebuliços públicos, muito famosos, cheios de edições e fórmulas, não merecem a compra, pois são frutos da limerência pelo dinheiro e não do amor à literatura. Livros assim, geram grande impacto por atingirem mais pessoas, justamente porque a maioria das pessoas se identifica com futilidades, coisas levianas, que não engrandecem a existência.

Mas é preciso ler sempre? Nunca largar um livro? Bater metas de folhas lidas transformando absolutamente tudo em Alta Performance? O Arthur Schopenhauer disse que não. 

O excesso da leitura tira a elasticidade do espírito da mesma forma que uma pressão contínua tira a elasticidade da mola. Isso porque a leitura é um substituto do pensamento próprio - a suspensão da descrença é deixar-se conduzir pelo pensamento alheio. E se não há intervalos, se retirados os pensamentos alheios, o que restará? Nada ou muito pouco. E por essa razão existem eruditos que leram até ficarem BURROS. 

Tão importante quanto a arte de ler é a arte de não ler (principalmente obras ruins).


sábado, 14 de junho de 2025

Não estou só

Fiz parte da terra

do vasto oceano

da nascente de serra

poça, por uns anos...


Fui lágrima ao léu

gota, no véu da noiva

hoje, nuvem no céu.


Amanhã - se por escolha

seja bom, seja o que for

seria água no bico do beija-flor.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Lili

 A minha tia foi fazer faculdade de biomedicina em uma cidade próxima à nossa, e por estar se sentindo sozinha, morando longe da família, adotou uma cadelinha magricela, pretinha, de dentes afiados, humor curto, da raça pinscher. Batizou-a: Lili. 

Eu era criança, e na minha casa não tinha cachorro, porque meu pai odiava o barulho e a minha mãe, a limpeza. Mas eu gostava tanto de bichos! Infelizmente, o contexto era rígido, sabe? No entanto, uma ou duas vezes na semana eu ouvia quatro patinhas zanzando pela minha casa. Puxa, como eu ficava feliz com a visita! Eu tinha mais expectativa pela Lili do que pela vinda da minha própria tia. 

Acontece que a rotina dos estudos da biomedicina afetaram os cuidados da Lili, e por essa razão as estadias dela foram se alongando e se alongando, até que minha avó resolveu acolhê-la de vez. A Lili talvez não tenha gostado muito da ideia, mas eu adorei.

Ela era tão pretinha, e os olhos mais escuros ainda. Latia tão fino, que ardia. Quase uma ecolocalização. Se lhe pusesse um par de asas, se entrosaria facilmente com os morcegos da rua. Como é perceptível, ela não tinha a melhor das aparências, e com o envelhecimento ainda foi decorada de verrugas. Mas tinha lá sua elegância. Era como um quadro do Dali, digna de um museu caro e europeu. Sobre a personalidade, recordo de ter certeza que ela votaria no Alckmin, e notei várias vezes como seus olhos iluminavam ao ver o Bush na tevê de tubo.

Ah, como a Lili sofreu com meus constantes abraços, beijinhos e cheiradas no cangote! Eu a adorava. Queria colocá-la dentro do meu coração. Já ela, queria é espaço gourmet, filé mignon e lazer. 

Minha vó me alertava a não falar tanto nas longas orelhas dela, porque o cérebro era muito pequeno e poderia explodir. Eu não dava ouvidos, e falava e falava e falava: te amo, que fofura, lindinha, meu denguinho. Ela devolvia com certo olhar de desprezo, mas não se afastava.

Poderiam dizer que ela era um pouco esnobe - o que é pura intriga da oposição. Toda vez que a gente chorava, ela subia no nosso colo e chorava junto. Não tinha como não sorrir.

Certa vez a Lili pulou do carro em movimento e sumiu por 40 dias. Foi encontrada por acaso, sã e salva, hospedada na luxuosa casa da mulher mais rica da cidade. Ela comeu Pedigree, ganhou roupinhas, visitas ao veterinário, banhos, vacinas e estava até com bom hálito - algo que achei que só aconteceria por milagre. Estava irreconhecível!

Teorizo que tudo foi arquitetado... que ela queria mesmo é viver no bem-bom. O cérebro poderia ser pequeno, mas a inteligência, não, capiche

Acontece que ela descobriu que o que bombeava seu sangue azul era um coração, e por isso se deixou encontrar. Percebeu que aceitaria rações mais econômicas e o reaproveitamento de meias velhas como casaco no inverno, do que ter que tolerar tanta riqueza longe da família.

Ou... Talvez ela quisesse era parar com tanto banho e escovação de dentes. Hum...

Bem... uma coisa ou outra, né?

De todo modo, foi um belo reencontro.

Lili voltou para nossas vidas e cá permaneceu, ao total, por 11 anos. Acho que se foi mais pelo tédio da artrite do que propriamente pela idade. 

E foi ela que me fez perguntar, pela primeira vez, se cachorro vai pro céu.