domingo, 3 de novembro de 2024

Um café, por favor

Sou uma pessoa extrovertida, isso não é mistério para ninguém. Desde criança gosto de conversar com as pessoas e adoro quando elas me contam suas histórias e quando elas reagem ao que falo. Eu adoro quando alguém ri comigo, e quando choram comigo. Interagir com humanos me deixa feliz e enérgica. Porém, os anos foram se passando e fui ficando mais fechada. A interação tem o seu custo... se não se cuidar você se submete aos outros e não consegue ter um tempo de contemplação isolada e fica exausto. 

Houve uma época em que achei, genuinamente, que tinha ficado fadigada dos humanos: essa matéria orgânica em decomposição, estranha, revestida de um órgão pálido ou tingido, com bolotas esbranquiçadas e pontos pretos na parte alta, no que se chama de rosto, chamados olhos, que servem para ver o que existe a sua volta, com pontas espigadas chamadas de ouvidos, com orifícios estranhos, fios que saem do corpo. Suspiro. Reticências.

Num desses dias de ojeriza, 6h30min, numa segunda-feira, cansada, experimentei pela primeira vez uma pequena xícara de café com muito açúcar e pensei que o gosto amargo não era justificável. Dali trinta minutos senti como se minha alma estivesse reocupando meu corpo e tive aquela sensação de eureka!

De lá pra cá, deixei as xícaras de lado, e passei a consumir o café em canecas, o amargor virou amor, e não adoço a bebida nem mesmo com uma brisa doce. Quente e forte. É assim que tomo meus baldes de café.

Sempre após tomar meu delicioso café a minha extroversão é aumentada em 1000%. No início lembro das pessoas que eu conheço, meus amigos, e crio seus fantasmas e conversamos mentalmente sobre aquele meu relatório no meu escritório de advocacia. Rio com esses fantasmas pensando como alguém que chama Uialá teve coragem de processar o banco porque seu nome no cartão veio escrito como Óialá.

Outra caneca, por volta de 200ml, aquele líquido delicioso, o cheiro da manhã! Olho as pessoas pela janela da sala, pessoas que sequer conheço, e penso comigo sobre o extraordinário da vida, como elas são belas, inteligentes, como são criativas, simpáticas, únicas, vivas, poéticas, profundas, e que mesmo as cruéis são personagens essenciais deste mundo, e eu as amo todas.

Mais uma caneca, e passo a desejar a imortalidade. Sabe, eu queria ter tempo de conversar com cada uma dessas pessoas e conhecer toda a vida delas, inteira, e seus segredos todos para sempre. " É mesmo, senhor pedreiro? Você está com essa mochila rosa com glitter para trabalhar, não porque era de sua filha, mas porque você realmente é fã de O Clube das Winxs? Eu também sou fã, a minha favorita era a Bloom, e a sua deve ter sido a Flora, heim"... 

Poxa, é uma pena que morrerei sem ter interagido com esses 8 bilhões de humanos. Como é triste a mortalidade! Ela me tira a chance de poder conhecer quem nascerá... e como eu queria conversar realmente com aqueles que já se foram! Particularmente com o Montaigne, acho que seríamos melhores amigos, mesmo que ele não visse lá as mulheres como seres muito capazes de se darem bem com a razão. O ensaio dele sobre como a filosofia nos ensina a morrer é supimpa!

Mais uma caneca e já quero saber o processo criativo do Shakespeare e a quem ele direcionava aqueles belos e raros sonetos: para seu preceptor ou para alguma mulher a quem amava? Marco Aurélio roncava? A cor favorita da Cleópatra, qual seria? 

Última caneca, o coração já em chamas. Hoje em dia tento parar o consumo às 14h para não atrapalhar o bom sono. Às 14h15min entro em debate com algum conselho intergalático e penso como seria interessante um podcast com uma vida alienígena: afinal, como é respirar dióxido de carbono e liberar oxigênio ao invés de respirar oxigênio e expirar dióxido de carbono e como isso afeta a formação dos  narizes? Os terráqueos os tem no centro do rosto, os uluplazukuafhaus os possui dentro das orelhas.

Às 18h, olhos semicerrados, sequer miro o meu próprio reflexo no espelho, que eu mesma já sou gente demais para conversar.

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