Sabe-se lá há quanto tempo não penso em poesia!
Sinto conforto em estar assim, robótica, que daí não penso e a complexidade da vida se ameniza. Programei (ou fui programada?) para que esse sábado fosse tão cheio quanto todos os dias da semana. Porém, o inesperado: eis que todos os programas agendados foram desmarcados em cima da hora. A viagem, a sessão, a conversa, a saída, o restaurante. Tudo.
Fui às compras porque não sabia o que fazer com o tempo livre. Não estava nos planos principais, mas estava ali como um plano B: Minha programação B é comprar para sorrir. Dessa vez, optei por apoiar o comércio local e também por gastar mais calorias de pé do que com cliques. Lá encontrei muita gente. Como otimização de bateria, deixei de registrar os rostos que encontrei e as suas vozes. Simplesmente não poderiam interromper minha programação, pois o que será que aconteceria? Não havia tempo para sentir tamanha... seja lá o que for o que minhas roldanas suprimiram. Sentir não estava nos planos A, B ou C.
Ah... não sei ao certo o que respondi, mas estou firme que recitei aquela conversa pré-programada que se fala nas ocasiões sociais em que há muito barulho e muita gente e que não se há tempo para contemplar outra coisa senão um cinto de couro legítimo por R$ 39,00. Trinta e nove reais é um bom preço! Excelente! Era dia de promoção e uma mulher estava de olho no amontoado de roupas que eu cuidava, enquanto alguém me perguntava algo, talvez sobre como havia sido a semana. Eu não poderia dizer como foi, porque a) não tinha certeza se essa era a questão e b) eu também não saberia dizer como foi minha semana, precisava pegar a agenda. Joguei palavras ao vento, assim como as roupas na sacola e o número do cartão de crédito na maquininha. Não é hoje, pensei, que pensarei esses pensamentos.
Extrapolei mais uma vez o limite do cartão, sem pensar, com alívio. O peso das sacolas de plástico não justificava a notificação do banco neste celular que sequer terminei de pagar. Apaguei a notificação e fiquei só com o peso das sacolas.
Vesti as roupas só em casa, porque o impulso da compra não me permitiu sequer prová-las na loja. De frente ao espelho: Um vestido novo, admirei a bolsa nova, a camisa nova. A cama cheia de etiquetas. Minha programação para não desestabilizar meu sistema com raciocínios, sentimentos, tensões, como havia sido a semana, o mês, o passado, foi provar as roupas que comprei sem direito à devolução. O cinto novo nem combinava com a blusa nova.
A blusa nova, muito pequena, fez-me sentir um nódulo no seio. Interrupção das sinapses e pane no meu sistema. Não tenho tempo para nódulos, hoje. Uma ligação telefônica surpresa, visitas inesperadas, a blusa nova, mais conversa, risadas, a blusa nova e o nódulo. O nódulo. Mas com que tempo iria eu a um hospital? Segunda, não tenho tempo, muitos prazos. Risadas e conversas. Terça e quarta, seria impossível. "Sim, está tudo certo aqui, sim". Quinta é inviável, tal qual sexta e também o sábado. "Sim, essa blusa é nova". O nódulo também? Fui ao hospital.
A médica me tranquilizou com seu tédio. Só apalpou meu nódulo porque lhe falei que a blusa nova deixava aquela pele à mostra. Passou o exame, perguntou do histórico de câncer. Consulta rápida, como gosto, mas esqueci de acrescentar um pigarro chato e uma tosse irritante - que está sendo tratada por mim e meus conhecimentos parcos de automedicação.
Na saída do hospital, tranquilizei minha pane. Passei pelo corredor mastigando chicletes, pensando no café que eu deveria comprar e nos compromissos do dia e como resolver as desmarcações. Será que viajo sozinha hoje? Faço eu mesma a sessão? Marco outro compromisso? Visito a família que não vejo há anos? Faço o exame na terça? De repente, uma banda entra na sala de espera. Um a um. Os instrumentos refletiam à luz do sol. Flauta, saxofone, trompete, trombone, violino, partitura, ternos e gravatas, e por fim um maestro, que me desejou um bom final de semana.
Agora, para ser exata, recapitulando meu dia após horas de tédio, escrevendo da sala porque o quarto está revirado com roupas e etiquetas, percebo que pensei muito no nódulo e pouco no porquê não dei meia volta para acompanhar a sinfonia.