quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Macaco Louco, Filosofia Grega e Amor fati




Tudo começa com um episódio do desenho As Meninas Superpoderosas, mais especificamente, em um episódio em que o Macaco Louco, arqui-inimigo das heroínas, consegue, finalmente, atingir o seu maior objetivo desde que se tornou racional: conquistar o mundo.

O Macaco Louco passou longos episódios lutando e apostando todas as suas moedas em planos maquiavélicos para se tornar a pessoa mais poderosa da terra. Ele dava tudo de si e chegava muito perto. Ele perdia tudo e logo se reconstruía. Depois de se reconstruir, ele reiniciava o ciclo. A cada plano maligno, a cada emboscada bem elaborada, Florzinha, Docinho e Lindinha, mais uma vez, salvavam, com maior ou menor dificuldade, a cidade de Townsville e o mundo, por consequência.

Ocorre que nesse episódio, em que o Macaco consegue o poder que sempre almejou, uma força cuja as meninas não conseguiram e não conseguiriam destruir com socos, chutes e lasers, ele se vê numa crise existencial. Ele se entedia e deixa de ver sentido em todo seu esforço: agora não faria nada, porque não tinha mais objetos para atingir, coisas para conquistar ou comprar.

Essa crise do Macaco me fez refletir, durante a infância, sobre meus próprios objetivos de vida. Eu tinha 10 anos de idade, e foi mais ou menos por aí que passei pela minha primeira metamorfose: comecei a me perguntar o que eu faria quando atingisse os meus objetivos - que naquela época consistiam em ser artista, arqueóloga e astronauta. Eu me peguei pensando se essas realizações me trariam felicidade ou se eu ficaria deprimida depois de realizá-las.

No final da história, o vilão resolveu deixar de lado tudo o que conseguiu, deixou as meninas voltarem a ser heroínas, mas não porque ele se tornou bom, mas porque ele queria voltar a seu ciclo vicioso.

 A partir disso, tive uma epifania estóica não planejada, que me move até hoje.

O estoicismo é uma filosofia de vida contrária ao epicurismo. No primeiro, a felicidade está em se desligar das trivialidades para se ter uma boa-vida, enquanto que o segundo entende que ser feliz é buscar prazeres moderados.

Eu aderi o estoicismo, assim como milhares de pessoas o aderem, sem sequer saber o seu nome. Passei a viver de forma a ignorar dramas alheios, para gastar minha energia emocional com coisas mais sérias e a evitar possuir ganância.

Como os estoicistas, eu vivi o início da minha adolescência como uma pessoa que evitava ter grandes sonhos, não via na riqueza ou nos prazeres triviais uma fonte de felicidade e tentei apreciar as minhas companhias da época. O estoicismo ensinou a mim que a vida era importante demais para ser desperdiçada, parafraseando Tyler Durden, "comprando merdas que não precisamos, com dinheiro que não temos, para impressionar pessoas que não gostamos".

O estoicismo me ensinou, ainda, a ter mais calma e consciência das minhas atitudes, a aceitar que a vida nem sempre é feliz e que ela não tem lá muito sentido. Eu aprendi, também sem saber, o "Amor Fati".

Amor fati é o amor ao destino. É apreciar a vida da forma como ela é e da maneira como ela sempre termina. É saber que tudo o que nasce um dia vai morrer, e que tudo bem. Tudo bem morrer. Tudo bem passar por situações difíceis. O importante é estar vivo, é poder ter sensações.

Durante a adolescência, o final dela, joguei toda essa filosofia no lixo, mas vez ou outra eu a resgatava. Hoje, apesar de não seguir completamente ela - acho que filosofia alguma eu sigo por completo - vez ou outra a utilizo nas minhas decisões.

O Macaco Louco e eu, no mesmo barco, quem diria?

Lolita e Annabel

"Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta.” 

    Essa é a introdução do polêmico Lolita, do escritor Vladimir Nabokov, um dos livros que me deixaram mais crítica quanto a qualidade das minhas leituras e que marcou a minha transição literária das obras infanto-juvenis para outras mais complexas.

    É com pesar que venho percebendo que há muita gente tirando conclusões precipitadas sobre a mensagem que Nabokov queria passar com o livro: uns acreditam que ele incentivou e sexualizou crianças, enquanto outros leram a história.

   A obra conta a vida de um pedófilo (Humpert Humpert), de 46 anos, que se "apaixona" perdidamente por Dolores Haze (Lolita), de 12 anos de idade. 


  
  Nabokov escreveu o texto em primeira pessoa, e tem como narrador Humpert Humpert. Este personagem conta a história como se já houvesse se passado diversos anos de seu relacionamento com Lolita e, desde o começo da leitura, é notável a quantidade de problemas mentais que o mesmo carrega.

    Em que pese a leitura pesada que é a história não-censurada de um pedófilo, a forma como Nabokov escreve é digna de admiração. Ele consegue poetizar e arrastar o leitor para dentro da obra e o obriga a raciocinar e a agir como Humpert, o fazendo ser o personagem.

   Junto com Humpert, e contra a sua própria vontade, você sente vergonha e culpa por compreender as palavras charmosas e poéticas dele. Por ficar bravo ou magoado com as atitudes de pessoas que não o compreendem.

   Quando Dolores ainda não era Lolita ou de sequer aparecer na vida de Humpert Humpert, ele contextualiza a antecessora da mesma. Durante a sua infância, o personagem tem como primeiro amor, no início de sua adolescência, Annabel Leigh.

  Antes de Humpert se relacionar sexualmente com Annabel, esta é levada para longe dele pela família, sendo que, tempos depois, antes que ele a pudesse esquecer, soube que ela faleceu de febre tifóide. 

    A loucura que é o coração de Humpert e a obsessão que ele confunde, durante toda a história, com amor, aparecem já quando ele é adolescente. Annabel Leight foi sua primeira Lolita e ele busca em garotas entre 9 e 12 anos a alma de seu primeiro amor, é como se ele procurasse, incessantemente, reencontrar em outras crianças a sensação de amar e ser amado pela primeira vez.

    Há momentos, claros, em que Humpert se força a ver Dolores como Annabel Leigh, em que ele se opõe em conceber que ela está crescendo e deixando de se comportar como seu amor platônico anterior. Ele procura a inocência, a sensação de medo e aventura na infante.

    A inspiração de Nabokov para Annabel Leigh, bem como a história de seu primeiro amor, veio de um poema trágico do autor Edgar Allan Poe chamado "Annabel Lee". Gosto do poema e achei a conversão dele para uma história uma das coisas mais incríveis que já li. Quando me deparei com "Annabel Lee", me deparei, também, com o suprassumo das sensações tidas por Humpert com sua Leigh.

    Encontrei uma tradução para português de "Annabel Lee", feita por Fernando Pessoa, que é excelente, mas a alterei bastante para facilitar a leitura:

Há muito, muito um ano atrás, existia
Num reino ao pé do mar,
Uma donzela que eu sabia
Annabel Lee se chamar;
Donzela em que outro pensar não se via
Que amar e ser amada por mim.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas nós amamos com um amor que era mais
Que amor
Eu e minha Annabel Lee;
Um amor que os alados serafins
Lá no Céu ousaram invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
minha linda Annabel Lee;
E o seu parente fidalgo veio de longe,
Para de mim a afastar,
Para a fecharem num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar…
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que um vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando minha Annabel Lee.
Mas nosso amor era mais forte que o amor
Daqueles mais antigos
Daqueles mais sábios –
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda Annabel Lee.

Porque os luares nunca brilham, sem me trazerem sonhos
Da linda Annabel Lee;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda Annabel Lee;
E assim, noite adentro, deito-me ao lado
da minha querida, minha vida e minha noiva,
No sepulcro ao pé do mar,
em seu túmulo ao pé do borbulhante mar.




terça-feira, 8 de agosto de 2017

Aconteceu com uma amiga

O que eu penso sobre mim mesma? Ah, sou uma garota bonita, interessante e divertida, claro. Não julgo o livro pela capa, mas pelo conteúdo. Tem essa amiga minha, que não vou dizer o nome, pra não a expôr, claro, que me disse certa vez:

Se eu tivesse uma autoestima ela estaria arruinada.
Eu vi uma pesquisa dias atrás que constatou que depois das pessoas olharem pro espelho por 5 segundos elas se sentem mais bonitas. Eu sinto o contrário. Quanto mais me olho, pior me vejo. Por isso ando evitando espelhos, selfies, câmeras, etc. Prefiro ser ignorante quanto a minha aparência física natural.
Quando estou maquiada, com salto-alto e com um vestido que custa o meu salário inteiro, a minha estima sobe um tanto, mas não muito. Acho que eu consigo fingir bem que penso algo bom sobre mim, no que se refere a aparência física, mas isso é uma mentira muito grande. Na maioria do tempo eu tento apenas não constatar o fato de eu não ser mais uma pessoa fisicamente atraente.
No começo, quando percebi que não seria uma daquelas garotas bonitas, que eu não atraia os homens por ter um corpo ou um rosto bonito, mas somente apenas porque eu tenho uma vagina, eu me deprimi bastante. Agora, eu só tento esquecer desse detalhe. Sou mais que uma aparência, sou mais que carne, gordura e ossos. Logo, eu tento me preservar de sofrer pelos meus aspectos físicos.
Se eu faço academia é porque quero poder correr sem perder o fôlego, pois quero viver mais e porque adoro me movimentar. Se passo maquiagem é por pura diversão, por distração, não é mais um esforço diário. O protetor solar de todo dia, as idas ao esteticista, os gastos com produtos estéticos: tudo porque gosto de sentir que estou cuidando, minimamente, de mim mesma.
Mas às vezes alguém vem me lembrar. Alguém vem me contar o que acha de mim sem que eu peça. "Hey, você fica melhor maquiada" ou "Hey, quem é aquela garota linda que aparece nas suas selfies?". Nessas situações eu me abalo um tanto. Não tanto quanto antes, mas me abalo. É como se um sopro destruísse tudo o que estava encoberto na minha consciência e eu me lembro: Meu deus, sou feia. 
Quando alguém quer me abalar, é fácil demais. Tão simples. Se as pessoas soubessem o tanto que eu tento esquecer de como aparento!
Depois dessas situações - que me arrasam bastante - eu fico tentando me reconstruir. Isso demora um tempo. Demora muito mais se eu estiver na TPM. Não quero viver em função do que as pessoas esperam de mim, quero viver em função do que eu espero de mim. Não quero me decepcionar. 
Eu li em algum lugar que mulheres da terceira idade deixam de se preocupar com a aparência física pq elas meio que já desistiram de ser bonitas. Eu estou tentando entrar nessa onda. Não quero me esforçar mais. Quero descansar e aproveitar outros aspectos da minha vida. Quero me preocupar com outras coisas, ser arrasada por outras situações. Deixar de sofrer interferências externas.

Mas compartilhar insegurança com os outros é tão, hãm, íntimo, né? Eu não faria isso não, claro, sou bem resolvida. Talvez ela precise ir a algum psicólogo, né. Bye, bye.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Existindo

Cinco acentos de couro, com cintos de segurança, numa lata de metal com quatro rodas, movida a gasolina ou diesel, com airbags, rádio, conexão bluetooth, entre outros botões indecifráveis. Tem capacidade de ir de 0 km/h a 100 km/h em poucos segundos.

Um trafego afogado.

Uma lata engarrafada com outros vinte veículos, muitas deles ocupados por menos gente, mas a maioria com apenas um único indivíduo, dentre os solitários,  há um que não precisa sequer a conduzir: possui piloto automático.

Ouvem as suas playlists com o vidro fechado para não serem incomodados.

Todos os veículos ligados e ansiosos para a abertura do sinal.

Precisam ir pro trabalho, para iniciar o serviço em suas salas pessoais, precisam levar os filhos ao professor particular. Precisam ir a academia treinar com o personal trainer. Precisam correr na esteira. Precisam voltar para casa.

O sinal abriu.

A casa foi arquitetada por um célebre profissional e decorada com os móveis mais populares da temporada.

Uma casa com cinco quartos conjugados com banheiro para uma família de três pessoas.

Duas cozinhas e duas salas, uma de tevê e outra de estar.

O sofá é de couro, as almofadas e os móveis foram feitos sob medida. A televisão é esteticamente agradável e é harmoniosa com o ambiente que a cerca. É a cabo e, se ligada, possui mais de 300 canais.

A visita pode se sentar nos dois sofás ou nas cadeiras almofadadas. A vista dá para os outros prédios. Este cômodo tem uma mesa de centro que custou R$ 2.000,00.

O telefone da sala de estar não está com as contas atrasadas, funciona perfeitamente, de última geração, mas está sujo de poeira.

A cozinha de visita e a de uso comum são limpas diariamente.

Um cômodo é utilizado.

Um quarto, um teto, um banheiro, uma cama enorme para apenas um, sozinho, dormir em um lado.

O quarto de dormir possui frigobar e o entregador quem traz a comida quente, que é comida na mesa do computador, onde fica todo tipo de tecnologia, dentre elas, uma televisão e um aparelho celular.

Cidades feitas para individualistas. Estradas feitas para individualistas. Casas feitas para individualistas.

Às vezes chove, às vezes faz frio e o sol aparece, escaldante, com grande frequência. Nada disso é sentido por grande parte desses indivíduos.

Enquanto alguns estão envoltos em suas caixas de lata, outros se movem juntos, numa caixa grande de metal, com assentos sempre ocupados, com corredores lotados, por longas distâncias, para trabalhar em locais em que não há salas individuais.

Vivem amontoados nas filas do ônibus, do metrô, dos pontos de partida, das repartições do governo ou do hospital público. Interagem e interagem, quer queiram ou não.

Após a longa espera no engarrafamento, onde estão espremidos com mais 60 pessoas, param no ponto e caminham até suas residências. Exaustos.

A residência possui dois cômodos para seis pessoas.

A sala é conjugada com a cozinha e os quartos. O outro cômodo possui uma privada e um chuveiro.

Os móveis são escassos.

A casa está sempre vazia.

O intervalo de almoço acabou.

Voltam ao trajeto: ponto de ônibus, espera, interação não-voluntária, trabalho -intervalo- trabalho. Tudo isso fazem para mudar a própria realidade.

Desejam a vida que veem quando tem a sorte de sentar na janela do transporte público, que lhes é oferecida na propaganda que passa na tevê da loja de móveis, a caminho de casa. Não querem ir ou voltar dos mesmos lugares. Querem mudar a rota. Seguir outro caminho.

Muitos pensam isso enquanto entram na padaria para tomar o café para aguentar o dia.

Correm com seus guarda-chuvas, passam frio com o casaco velho e mancham a camisa de suor nos dias de sol intenso.

Existem aqueles, ainda, que não tem lugar pra ir.

Alguns vivem nos espaços vazios das vidas das pessoas. No intervalo entre a vitrine da padaria e da garagem do condomínio. Suas posses também não existem. Sentem o odor do trânsito e o calor das conversas do ponto de ônibus. O entra e sai dos comércios e dos prédios.

Nada esperam, nada almejam e não tem para onde voltar.

Em dias de frio, se resfriam, em dias de chuva, se molham e em dias de calor intenso, se queimam.


Estes se encontram apenas fisicamente vivos.