segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Viver intensamente

Viver intensamente não é o que pensamos: não é fumar, beber ou viver como se não houvesse amanhã. Não é como fez o Claudemir, que, ao fumar um baseado pela primeira vez aos 16 anos, disse aos pais que os olhos vermelhos eram culpa de alergia. Ou como aos 32, quando se embriagou com meio litro de vodka, traiu a esposa e justificou a mancha de batom na camisa dizendo que era vinho tinto.

Mentir é uma forma de fuga que nos aprisiona das possibilidades da vida. Ouviu Claudemir? Viver intensamente, ao contrário, é ser sincero! É fazer algo que honestamente se quis fazer e depois encarar as consequências do que se fez. Não é cursar contabilidade por medo da reação dos pais a um curso de filosofia. Talvez tudo pudesse ter sido mais simples se Claudemir tivesse dito: “Sim, mãe, experimentei um baseado hoje.” Quem sabe, anos depois, ele poderia rir desse episódio com ela, porque na época isso tudo teria estreitado os laços familiares e ele não teria sido tão julgado por não aceitar o ingresso em Contabilidade na USP. Ou, em vez de deixar o casamento naufragar em culpa, poderia ter dito: “Meu bem, bebi demais e a mancha de batom é do Boticário. Arrependo-me. Você ainda quer ficar comigo se eu prometer mudar?”

Viver intensamente é ser honesto consigo e com os outros. É dizer “eu também te amo” depois de uma declaração de amor e viver o que o amor tem a oferecer. Mas também é, como a esposa de Claudemir, ter coragem de admitir que o casamento não é mais o mesmo desde aquela camisa suspeita. Por que continuar lavando as roupas de quem já não inspira amor? Por que largar tudo para lavar roupas? É olhar para si mesma e decidir: “Não está mais funcionando.” É recomeçar sozinha ou com outra pessoa, voltar a ser veterinária ou, quem sabe, descobrir que seu sonho mudou.

Viver intensamente é ver que aquela não era a sua profissão dos sonhos e que o consumismo exacerbado talvez fosse uma forma de autoengano. É, na verdade, não ser veterinária, mas ser dentista. É dar conta de seguir o sonho da segunda faculdade enquanto se lava cachorros pela manhã, sem medo de falhar! É terminar o curso de odontologia e depois juntar o dinheiro para o consultório. 

E então, num acaso da vida, reencontrar Claudemir no shopping e conversar com ele sobre a última década. É aceitar que agora, aos quarenta e dois anos, nenhum vê o resto da vida sem o outro. Que um não se vê contador, mas professor de filosofia, e que a outra não se vê sem os caninos humanos. É aceitar que é hora de tentar de novo.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Poetria XXXVII

Poetizar é ser ridículo com convicção 

Observe a ventura de sua ação

Caneta nas mãos! 

Poetizar é ser também pesquisador

quando a conclusão rima com 'dor'

Sobre o método, o sumário:

um mesclar criativo do abecedário

O poeta barbado por baixo dos pelos

abaixo das farpas 

da musculatura, dos ossos, da alma

descansa e feito criança

encara de frente e conceitua

os sentimentos inominados e seus derivados 

que fazem da carne ser mais que a sua

Se a humanidade não os nomeia por timidez

ou preguiça, ou ocupação

o poeta sutura a teia com uma oração 

Engendra-se pela lacuna da compostura

vê o que mora no espírito de toda criatura

que nasce e cresce contra a própria vontade

Vã é a saciedade da curiosidade

Quando os encontra não há faculdade

A não ser relatá-los com sua boa sinceridade 

por não caberem nos vernáculos tantos dilemas

cabem decerto nos ternos poemas.

Defeituosa

Nem boa nem má, mas não nada

Perfeccionista desorganizada

Niilista cheia de esperanças

Impulsiva viciada em segurança


Princípios sinceros que dão preguiça

Prepara o banho com areia movediça

Executa o que nunca se planeja 

Colhe os frutos podres de bandeja


A imaginação solta flui, mas a breca no papel

Aponta os dedos para si própria, enquanto olha para o céu

Segue de passo firme o perfume da rosa-dos-ventos


Busca a paz com clamores violentos

Intuitiva defensora das metódicas ciências

Apática de coração de ambivalências.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Conclaves

De uns anos pra cá ficamos muito ocupados, eu e meus amigos. Todos tão sobrecarregados com nossas próprias vidas atarefadas, que utilizamos os finais de semana e feriados para o sono recuperativo e não para a gandaia festiva, como antigamente. Não os vejo por semanas, meses! Até nos sonhos nos desencontramos. Adulto cansado sonha em tela preta. O cérebro à meia-luz não produz imagem.

Olha, deixar de ser um bicho gregário era algo impensável para mim há menos de uma década... Bem que me alertavam que aos trinta a coisa ficaria assim, que a vida não seria um Friends

Marcar o encontro é uma tarefa à parte. Um diz "temos que nos encontrar, hein!" e o outro responde "qualquer dia desses" e ficamos nessa até que um de nós leva a sério e marca data, local e hora. Geralmente se trata de aniversário ou despedida - datas irrevogavelmente gregárias.

Se vamos adiar a sesta, fazemos por bem nos encontrarmos para um bom cafézinho, obrigatoriamente num lugar bom e aconchegante para conversarmos por muitas horas e colocarmos o papo em dia - até o próximo conclave. 

Se chego antes no local, procuro sempre uma mesa em um canto mais silencioso, sem ecos ou muita gente por perto. Sou meio surda, e nada me irrita mais do que ter que pedir para a pessoa repetir a história — a emoção da narrativa original se perde. Sim, admito: estou ficando ranzinza. Quando encontro a mesa ideal, o ritual começa: aquecemos a conversa, desenferrujamos as gargantas e passeamos por todos os tópicos possíveis, desde metafísica até marcas de café, passando por política, economia, moda, biologia. E colocamos as gargalhadas em dia, também. Gargalhamos por todas as gargalhadas que não gargalhamos juntos nos últimos tempos. Por qual razão adiamos tanto esses preciosos encontros? Me revigoram muito mais que a cafeína, isso eu garanto. 

Às vezes, alguém se questiona se a mesa ao lado está nos ouvindo. Bem, em primeiro lugar, acho improvável que se interessem por algo que não seja fofoca. Até porque não fofocamos — longe disso. O que fazemos é analisar a vida alheia como objeto de estudo biopsicossocial.

Em segundo lugar, se por acaso a mesa ao lado se interessar por nosso papo, não me desespero. Talvez sejam outros adultos que não presenciam há muito tempo uma conversa entre amigos... De todo modo, só pessoas especiais engajariam na nossa conversa e por isso deveríamos é nos sentar na mesma mesa. Afinal, se falta um parafuso aqui, falta outro acolá. Daí conversaríamos sobre parafusos.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Produção de texto

 Estive olhando para a minha lata de lixo e refletindo... Os estudiosos do português por aí dizem que a reescrita é a parte fundamental na produção de um texto. E de fato é. Mas perceba que o poema, a crônica, enfim, todos os tipos textuais são formas de mascaramento do que realmente sentimos. Isso porque cada texto possui uma estética que nos aprisiona a um dado estilo. A arte da revisão trata-se, na verdade, da confecção de uma bela mentira.

 Na reescrita, rearranjamos aqui e ali a ideia, adequamos as palavras aos conceitos mais precisos. Temos que arrumar as incoerências para não soarmos cafonas e o reformamos para o agrado popular. O trabalho dura horas! Não existe a palavra adequada àquela sensação? Trocamos por outra que faça sentido gramatical e acabamos por realocar a frase inteira! No final, sequer sabemos o que antes estava escrito.

 A reescrita é uma prisão social, não é o texto refeito para si mesmo, para o autoentendimento, mas para o entendimento dos outros. E nessa tradução se perde muito do conteúdo original, essencial, cru, autêntico! Por exemplo, os porquês. São tantos! Na minha opinião, o porquê mais bonito é o "porquê" - eu particularmente usaria ele e apenas ele em tudo, mas como devo me fazer entender, vou lá no Google para ter certeza se é o por que, porque, porquê ou por quê. 

Ah, esse processo todo trava o raciocínio de uma metáfora! Estava indo tão bem a produção textual, até que tive que buscar se é "viagem" ou "viajem", e até compreender tudo e relembrar o que é substantivo, já nem se precisava mais mencionar o assunto no argumento. Transformei a frase num texto que foge totalmente do meu sentir e vira uma crônica. Se não fossem tantas regras, meu amor, já teria um livro cento e dez porcento honesto!

 Verdadeiro, de verdade, é o que consta do nosso diário pessoal e secreto. Ou melhor, naquele rascunho do rascunho do texto. É autêntico aquele primeiro pensamento solto, jogado na folha de papel, com erro ortográfico, incoerente, que num primeiro momento de alienação social pensamos se tratar de uma porcaria, quando na verdade reflete tudo de mais sincero. E é bela! É bela a frase intocada pelas grades da estética! Ali que está a sinceridade que tanto procuramos: na folha de papel amassada e jogada na lata de lixo. 

Vamos à comprovação!

Vou até o lixo buscar a mim!

Abro o papel:

"T amar é 1 viagem de sentimentos mas porquê meu coração nã pára em uma estação?"

Amasso novamente. Agora passo no triturador.

Deus salve a estética!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O idiota essencial

 Luis Fernando Veríssimo vê o homem apaixonado como a parte mais honesta da experiência humana, é o cerne do que o constitui como individuo, é o seu âmago, é o que dá o pontapé celular inicial das propriedades da carne, é o idiota essencial; é aquele cara atrás de um poste, que finge encontrar ao acaso a mulher amada no local em que ele sabe que a iria a encontrar. É o cara que simula ler, no poste, a lista de bichos e à proximidade dela diz "olha que coincidência". O verdadeiro homem seria aquele imbecil ali, e não o cidadão adulto e razoável que o mascara. O homem nunca é tão ele mesmo quanto atrás daquele poste.

Não atrás de um poste, mas atrás de uma caneta, esteve o Vinícius de Moraes, o idiota essencial mais elegante que conheço, um aficionado pelo apaixonar-se. O Toquinho, seu parceiro musical, já confirmou isso num podcast recente, falando que havia nele uma busca incessante pelo amor da vida. A sua amiga, Tônia Barreto, no documentário Vinícius (2005) o descreveu como uma espécie de Don Juan, que se autoinstigava à paixão só para ter sobre o que escrever. De fato, foi um grande apaixonado. E um apaixonado em série!

 O impasse do Vinícius é que logo após a conquista da paixão arrebatadora, ele se esgotava do fogo da poesia e logo ia arranjando desculpas para partir para outro "amor da vida". Entre elas, implicar com uma cirurgia do nariz que teria desfeito a bela e única face da musa. 

 Fico pensando... se ele escrevia tão bem quando apaixonado, o que não escreveria se tivesse amado de verdade alguma de suas musas? Imagine só as epopeias! Ou talvez, tivéssemos perdido um grande poeta brasileiro para o absoluto silêncio... Isso porque, mesmo tendo à disposição a sensibilidade, criatividade e a inteligência necessárias para se escrever poemas sobre o amor de verdade verdadeira, amar é uma dessas coisas que nos deixam realmente sem palavras. É parte tão fundamental do nosso íntimo, ainda mais que o poste, que sua expressão é manuseada com grande cuidado pelos maiores autores do mundo, como o Pablo Neruda nos Cem Sonetos de Amor.

 O Neruda foi o tipo de autor que, no auge do sentimento, conseguiu conectar as exuberâncias da rosa de sal, do topázio e cravos com a ardência da paixão e, sem soar brega, disse que nada dessa exuberância toda representava o amor que ele sentia pela Matilde Urratia. Infelizmente as palavras limitavam a correta descrição precisa daquele amor em palavras (e ele tentou pelo menos 100 vezes!). Apesar da limitação, a mensagem alcançou certamente a destinatária, isso porque os amantes são cidadãos de um mundo feito de entrelinhas. E entre as linhas do poema XVII... como deve ter sido para Matilde saber que ela era amada como se ama a certas coisas obscuras, secretamente, entre a sombra e a alma? Talvez só sendo amada assim. 

Escrever sobre amar, como sentimento, não como ato, é como pisar numa corda bamba que, a qualquer deslize, é ridículo. E escrever enquanto se está embriagado de amor é ainda mais complicado. Bom, se me acusarem de passar todos os dias a falar sobre o amor, mea culpa!, confesso que falo, mas calo muito... muitíssimo mais o que sinto. E isso a contragosto. 

Sobre o amor, esse grande mistério à plena vista, não escrevo, presto reverência.

Omeprazol

 Para o estômago se usa muito o omeprazol - um alívio temporário que não cura. Para sabermos o motivo da azia e cessá-la em sua essência, consideramos a possibilidade de que aquela pizza talvez tenha sido a culpada. Contudo, é difícil apurar uma intolerância quando nosso cardápio é aleatório. 

Os nutricionistas nos impõem uma rotina para investigar se a culpa é do glúten ou da lactose. Retira-se o glúten, observa-se. Reintroduz-se na dieta e elimina-se a lactose. Está formada a equação. Note como é necessária a exclusão de certos grupos alimentares para perceber que o pão desceu bem, mas o queijo é que nos coalhou. As variáveis foram isoladas e o resultado é claro: evite a lactose.

 Na vida, cabe a metáfora: Exclua-se de certos ambientes, corte alguns contatos e teste! Se os gases pararam, meu bem, o certo é que não os retome.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Crise

 O que fazer numa daquelas crises de ansiedade? Lembrar de inspirar, logo em seguida, espirar, nessa ordem. Repetir o ato de respirar numa frequência mais lenta e autoconsciente. Tomar um chá de camomila. Lembrar de respirar enquanto toma o chá - não demais para evitar afogamentos. Banhar-se com água morna. No mundo ideal nos chuveiros existiria a opção de se banhar com chá.

Tenha alguém para conversar. Melhor se for alguém que se pode levar para baixo do chuveiro para conversar sobre como seria bom se de lá caísse chá de camomila. Senão, outro alguém. Um alguém legal, confiável, que julgue pouco e ouça bem - características similares as de quem se poderia levar para o banho. Ou se expresse de algum modo, num blog, por exemplo. 

Planeje o dia seguinte, anotando os afazeres numa folha de papel. Medite com aquele tal método dzogchen. Leia um livro sobre um assunto leve, como 'O pequeno livro do amor'... ou um assunto muito entediante, como um manual Direito Tributário.

Lembre-se, por fim, que não morrerá. Ao menos não imediatamente. Se imediatamente, aconselho que pule o banho, o chá de camomila etc. e vá direto para a UTI. Mas se o seu tempo restante for o de uma infusão de camomila, o tráfego estiver ruim, saca? Opte pela infusão e descanse em paz.