quinta-feira, 20 de maio de 2021

Gradagem

Como sinto? Primeiro, o pequeno impacto que danifica a pele. Em questão de segundos, esse dano acessa meus nervos, é transmitido ao cérebro e uma reação é produzida: dor. A dor não é sentida à toa, é uma forma orgânica de te alertar que existe um problema ali e que ele deve ser contido para não se tornar algo maior. Se seu sistema orgânico de autopreservação estiver saudável, a dor acontece quando é tida como contornável ou quando a causa é passível de ser contida. É problemático quando a ferida não causa dor alguma, ela cresce e se instala e muitas vezes mata, por ter tido todo esse tempo, agindo furtivamente.

Quando sinto a dor, ando até a caixinha de remédios, limpo a ferida e colo um curativo para proteger meu corpo até que meu sistema imunológico atue para fechá-la totalmente. E quando a cura se inicia, já não choro, apesar de continuar tratando aquela ferida, que agora se mostra uma área sensível ao toque. A sensibilidade vai reduzindo ao passo que ela some. Talvez deixe uma cicatriz, mas se bem cuidada, não deixará sequer uma memória.


Um fato interessante: Às vezes antecipamos a dor, sentindo-a antes mesmo que ela aconteça. É uma dor mental, que dói na mesma intensidade, mas só cessa quando a dor real, física, advém. O corte efetivo, corta a dor da mente. Troca-se uma dor que não sangra, que não tem curativo, para uma dor totalmente contornável. É libertador. Dolorido, mas libertador.


E quando a dor é mental, e sem previsão de se concretizar fisicamente? Aquela dor que não advém da ansiedade que é ver que uma agulha te perfurará em alguns segundos. Aquela dor que não se alcança, que fica parecendo pior, por não ter solução, aquela que não se alivia através das lágrimas.

A libertação vem da dor física e curável, a gente aprende isso quando rala os joelhos pela primeira vez, depois de saber, com certeza, que aquela manobra de patins iria te espatifar no chão. Será que é assim que pensam as pessoas que se auto lesionam? Trocam uma dor por outra, porque a outra é prática e simples de contornar? Uma dor distrai a outra? É, talvez pensem assim. Trocam, para reduzir o tempo do sentimento angustiante. Trocam e trocam e trocam. Me parece bastante tentador esse mecanismo. Parece eficaz transformar algo inalcançável em alcançável. Se não fosse eficaz, ninguém o utilizaria. 


Mas é eficaz por quanto tempo? Quando se foge das dores da mente, quando não se exploram as suas raízes, evidentemente, fica-se lesionando como forma de cuidado, a fim de conter apenas e tão somente os ramos. Que semente potente essa que cria a dor da mente! Principalmente quando encontra solo fértil. O mundo, tal como é, grada qualquer mente. 


Se se pensa um tantinho que for sobre essa vida, que passa correndo diante dos olhos, e nesse mundo, que suga suas forças e que não as renova, cujas belezas não compensam as angústias; nas pessoas, que nunca estão dispostas a pensarem em algo a não ser em si mesmas; que ninguém teria paciência para te ouvir ou compreender, porque amar o próximo não é útil o suficiente no final das contas; ou porque o problema não está nos demais, mas em si mesmo, que não se responsabiliza pelos próprios atos, que é frágil demais pra existência, que sofre por pouco ou quase nada, que não se encoraja, que suga o sorriso dos outros, feito o mundo que te devora...


Ai! Ai! Ai! 


A semente brotou em mim.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Catarse

A vida parece muitas vezes intolerável. E de fato é. Muitos dos nossos sofrimentos são tão amargos, que simplesmente pensar que eles cessarão nos soa patético. Me parece que prolongamos o sofrimento porque queremos sofrê-lo em toda sua importância. Se sofremos pouco ou o esquecemos, é como se a dor fosse ínfima demais para ser sentida, como uma criança que se esgoela por um corte na folha sulfite - olhamos essa cena com um sorriso professoral e pensamos "ela não sabe o que é dor, ainda". Não, não, não... nosso sofrimento é tão maior! Tão mais relevante! Nosso sofrimento é tão único e tão importante, que ninguém entenderia as suas razões. Apaguem-se as razões! Não é um corte de sulfite, é uma gloriosa tragédia . É uma tragédia que se passa repetidamente dentro do crânio e tão somente ali: boletos, trabalho, casa, casamento, divórcio, amizades, impostos, crianças. 


Sofra, mas não conte - é a lição que todo adulto aprende desde a adolescência. Na adolescência, todo adulto sabe de cor a sua linha de sofrimento, e te contam com aquele desdém irritante. E é tão mais irritante quando o sofrimento, de fato, segue aquela linha temporal!


Olá, puberdade! Sofrerá pela aparência física, sofrerá pela confiança, sofrerá por não conseguir se adequar aos grupos, sofrerá por não ter um ou cinco amores correspondidos, sofrerá porque verá no álcool uma saída e seus pais não te entenderão. E ouvirá uma música rebelde, porque aquela arte parece te compreender. E há tanta revolta! E há tanta alegria e tanta tristeza! E aquele desdém geriátrico sobre as dores, sobre quão patética e comum é a sua vida, só te farão aumentar o volume do rock, punk, metal, grunge, poprock, trap... até o próximo estilo musical. "MINHA DOR CONTA PORQUE MINHA DOR DÓI!".


Acho que essa lógica, a interligação de sentimentos e orgulho, é levada pela maioria para os outros aniversários e até o fim. A importância da dor vira uma importância do ego. A importância é maior porque as dores envolvem dinheiro. Ótima justificativa. Agora sofra em paz. Mas parece que isso não basta... É um show bizarro. Algumas pessoas simulam a tristeza e a levam ao ponto de não conseguirem mais diferenciar o que é a tragédia e o que é atuação. Na tentativa de fazer o sofrimento passageiro justificável, acabam por torná-lo permanente. E dali, mudam-se todas as configurações da própria existência.


Agora a infelicidade está completamente instalada nas suas funções, e ela te vira e desvira as entranhas cerebrais. As leis são novas e conflitantes: Sinta a tristeza! Mas apenas por dentro. Chore! Mas apenas à portas fechadas. Não quer ser conhecido como um doente ou leviano? Siga essas regras. Fique em silêncio. Não compartilhe. Aquiete-se. Que doa, e que não procure remédio. É normal doer, existe quem sinta mais e reclame menos. Trabalhe para não pensar. Beba para sorrir. Mas não sorria demais. Sorrir demais, não se sabe ao certo o porquê, é perigoso. 


Será que acolhemos essas tragédias como forma de nos sentirmos especiais e olhamos a felicidade com desgosto, porque ela de alguma forma diminui esse apelo dramático? Ou não nos entregamos à felicidade e a odiamos porque ela é uma amiga cruel, que te ama e te envolve e se esvai tão rapidamente quanto chega? Por que rejeitamos o sorriso quando ele é sentido por todos os nervos? Por que não deixar essa vida mais leve? Por que tantas cartas de suicídio e tão poucas frases verdadeiras de auto encorajamento? 


Encorajamento é tão brega, é tão ridículo - e é isso que suas novas funções te dizem, e é assim que se apaga qualquer chama de auto piedade. Afinal, piedade é fraqueza, mas autoflagelação é honra! Mas honra para quem? Honra para quê? Pra onde vai toda essa honra, quando ninguém sabe dos seus sofrimentos silenciosos? É uma guerra íntima de repressão da alegria, que se finda numa guerra íntima de repressão da dor. E como toda guerra, após um tempo, perde-se o sentido, não se sabe mais porque o Hezbollah atacou Israel, porque o antissemitismo tomou tamanha proporção, se os liberais são mais culpados que os conservadores. Não há sentido!


Esse inconsciente, agora antônimo da paz, permanece ali, guiando sua existência, através de suas escolhas, provocando maiores e mais explosivos conflitos e se retroalimentando do caos que criou para si e "Ai, minha dor é a maior do mundo e com honra, em silêncio, a sofrerei".


Corte na folha sulfite, joelho ralado, cinco amores não correspondidos, inadequação social, boletim escolar, meus pais não me entendem!, boletos, trabalho, casa, casamento, divórcio, amizades, meus parceiros não me entendem!, impostos, crianças, morte. Mesmo sabendo de cor a linha temporal de todas as dores, se pensar bem, não é ser adulto que dói, é ser que sempre doerá. Não é fácil, mas proporções da tristeza podem ser diminuídas, caso se escolha abandonar as armas e pôr fim à guerra sancta interna de autoflagelo e caos perturbador.


A paz interna é mais difícil que continuar a própria guerra. São muitos acordos e mudanças, são muitos planos e novas estratégias. É ter que lidar com os inimigos com diálogo, e abraçar sentimentos que sobreviveram à muitas tentativas de homicídio. É difícil, mas, por agora: HASTEIE A BANDEIRA BRANCA!