terça-feira, 29 de outubro de 2019

Deixe ver seus olhos, Capitu

" Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno aos seus inimigos; assim também a quantidade de delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno."


Dom Casmurro: Capítulo XXXII - Olhos de Ressaca

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Lembre

  Perpetua-se em nosso cérebro, sem qualquer consentimento, essa tentativa dolorosa de reviver o que já foi vivido. 

  Com insistência e pouca qualidade, as sinapses reproduzem palavras que deixaram de ecoar, sons que cessaram, imagens sem estática. Criam alternativas, saídas mágicas, cenários demasiadamente favoráveis, expondo ao corpo, desarrazoadamente, a sentimentos.

  E tudo não se passa de traços de memórias, indícios imaginários de objetos que não estão mais ali. Espaços vazios, onde antes havia calor. Realidades terminantemente imutáveis.

  Lembrar é uma parte agridoce da existência. 

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Aguarde

  Você pensou que no dia 03 de setembro estaria assim? Que seu corpo estaria caído no lar vazio e que seu sangue escorreria, vermelho vivo, pelas rachaduras do piso do quarto?
  Quando você era somente uma criança, rodeada por pessoas que te amavam, feliz e ignorante em relação ao mundo, doce e inocente, passou-se pela sua mente que seu destino seria um futuro rodeado pela dor, pela solidão e pela tristeza? Que sentiria uma dor escruciante e profunda, tão profunda, que te faria tirar a própria vida?
  Com que idade você começou a se sentir isolado, infeliz e sem propósitos? Qual foi o primeiro momento em que a ideia de que uma arma apontada pro seu crânio seria uma solução, se desenrolou no seu precioso, único e incrível cérebro?
  Mas seus olhos passaram a usar as lentes da tristeza e começaram a ver tudo como um buraco sem entrada ou saída. 
  Toda bondade era mal vista, todo tempo tranquilo era suspeito e toda raiva, angústia e ansiedade se acumularam por causa da vergonha de esvaziar a alma.
  Se você tivesse esperado dez minutos para apertar o gatilho, teria visto que a pessoa com quem mais se importava, a fonte dos seus sorrisos, teria voltado, teria desistido de desistir e estaria à porta da sua casa, pronta para recomeçar.
 Se tivesse esperado mais quinze minutos, choraria, mas agora de felicidade, e conversaria por longas horas, tirando toda a dor do peito.
 E se esperasse mais um dia, teria rido, como nunca antes, de uma piada idiota, contada por um amigo que te procurou por estar com saudade da sua amizade.
 Se esperasse uma semana, receberia notícias maravilhosas e muito aguardadas.
 Mais um pouco de tempo, e aprenderia a lidar com as frustrações, tornaria-se mais saudável, reformaria o que havia sido destruído e construiria muitas coisas que haviam sido antes postergadas.
 Se tivesse esperado. 
 Se apenas tivesse esperado.