quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Cor-de-rosa ainda tem hífen!

 Sabe-se-lá por que, de todos os aniversários, o próximo é o mais esquisito de todos. Ver tão logo à frente trinta anos de minha vida chegando é uma mistura de frustração de expectativas e de felicidade por ter sobrevivido dietas malucas e bebidas suspeitas. Mas também pavor. Como toda boa millenial não me enxergo com essa idade que chega aí, não era para eu ser já uma velha sábia?

 Me é bem-quisto que os mais jovens estão reavivando os anos 2000, fico já toda nostálgica quando me deparo com as cinturas baixas e sobrancelhas finas. Os anos 2000 foram os anos dos flip phones raiz, da trema na língüa portuguesa, dos "Beijos, Blues e Poesia", quando eu ouvia músicas românticas imaginando como seria amar pela primeira vez. E mais: os hífens se acomodavam em lugares diferentes entre as palavras... o cor-de-rosa, no entanto, permanecem os dois nos mesmíssimos cômodos.

Eu amava todas as cores do arco-íris, mas o rosa <3... No início deste século (apesar de parecer que já se foram dez) eu tinha uma caixa de sapatos cor-de-rosa, que me era muito querida por ter tantos tons da minha cor favorita. Ali eu guardava muitas cartas de mim para mim mesma e alguns diários super-secretos contando as histórias de primeiras paixões e intermináveis tragédias infantis: não dava para voar, mesmo que eu pulasse realmente muito alto do sofá de casa. Algumas folhas foram escritas em estado de êxtase porque eu estudaria com as mesmas amigas da 4ª série do ensino fundamental, outras foram escritas mais tarde na vida, em estado de embriaguez, chorando as pitangas por não estar tão bem socialmente encaixada como eu gostaria.

Nesse meio-tempo, a caixa se despedaçou, troquei por uma caixa de madeira com cores mais radicais. Eu não queria mais gostar de cor-de-rosa, eu gostava é de vermelho. Gostava tanto que comprei uma caixa de tinta e coloquei aquela cor de sangue nas minhas longas madeixas. A cor e a minha intensidade combinavam. O pigmento rebelde era também a cor da minha aura. A pimentinha estressada, intensa, rebelde, que pegou R$ 50,00 furtivamente da própria mãe para colocar na nuca um símbolo de sua intensidade adolescente: um raio. O dinheiro acabou no contorno da tatuagem e a rebeldia para surrupiar mais dinheiro para a colorir no tom intenso cessou por ali também: pensei na minha ética. Não é o vermelho um tom mais pigmentado do cor-de-rosa?

Ex-presidenta Mundial, muito prazer! Eu tinha outras expectativas de quem eu seria naquela época, quanto mais hoje em dia! Nas memórias mais distantes eu achava que o mundo não deveria possuir fronteiras e que uma presidente mundial de coração grande e sem ganância deveria ocupar esse cargo. Mas ali pelos 9 anos percebi que a humanidade dividida era melhor administrada... Talvez eu devesse ser como o Marcos Pontes, cursar física, trajar as vestes de astronauta e ver minha casa lá da lua! Pensei depois em ser mais do que eu, em usar minha imaginação vestindo a carcaça de outras personagens, e me brotou a idéia (com acento) de ser atriz de Hollywood. O último sonho da primeira metade dos anos 2000 foi revolucionar o ordinário como a estilista do punk Vivienne Westwood, e tentar a carreira no Estados Unidos da América.

Até que "fodam-se os estado unidenses!". Sobre os anos 2010, já não havia como fugir das trocas dos hifens, o dinheiro para se ir à lua era inútil, eu buscava a distribuição da renda; a revolução fashion deveria ser mesmo é social, o cabelo saiu de vermelho para laranja, que contrastava com o cinza da fumaça de muitos cigarros que foram acessos, e tudo era política. Inclusive a franjinha nova e minha ânsia por não ser eu um alguém individual, mas uma engrenagem de um coletivo.

Vim envelhecendo a conta-gotas, mas me altercando como num maremoto. Os pigmentos do cabelo saíram, permanecem na cor do meu batom nas ocasiões especiais. Mais de uma década depois: me tornei mesmo é advogada e professora de um sistema que eu própria queria derrubar para estabelecer aquele governo pacífico e mundial sem fronteiras. Ir à lua importa. A revolução começa por mim, quando olho fundo para aquela caixa cor-de-rosa.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Parafraseando a realidade enquanto ouço um sabiá com certidão de idade

Ontem sonhei que eu era uma pessoa mais simples, a nada questionei. Como foi incrível olhar aquele éter lúdico de sonhos com olhos tão humildes. Não sei se caminhava ou se estava parada, se eu caía ou voava, nem mesmo se eu era eu mesma: humana, viva, mulher. 

Os sonhos talvez sejam quebra-cabeças feitos em desordem, que remontam o dia, a rotina, os anos e os desejos em uma estranha linguagem intuitiva e familiar. Existe quem pense ser possível extrair dos sonhos previsões do futuro ou códigos da alma. No Japão, está em desenvolvimento uma máquina que busca representar os sonhos integralmente. Mas fato é que o mundo dos sonhos só se entende, realmente, sonhando. Gasto as palavras tentando decifrar o que me acontece por lá todas as noites. É como se suas razões peculiares precisassem de palavras que não existem, de cores não descobertas, de sons que nunca ecoaram fora da imaginação arbitrária.

Platão entendia que se algo existia no mundo das ideias, poderia existir no mundo real. Talvez não sejam vãs as minhas tentativas de dar palavras, cores e sons para os meus sonhos... talvez esteja tudo aí ao acesso do possível.

O que consigo dizer é que sonhei que eu era mais simples do que sou aqui, agora, digitando, e o que  resta para os meus neurônios é parafrasear a realidade.

Nos ocorre ver a vida com esses olhos simplificados em certas ocasiões... Nessas raras ocasiões em que focamos os olhos para entendermos uma imagem que se forma à medida que a compreendemos. Começamos pelo som, cor, e pela forma: é humana ou um objeto? O estranhamento é um relapso meditativo, é a concentração intensa no que nos acontece de imediato - nem sentimentos são formados, porque sua formação dependeria de uma conclusão observacional. No puro estranhamento nos faltam estímulos suficientes para a formação de qualquer convicção. Ele dura tão poucos milésimos de segundos! São tão rápidas as sinapses que formam o medo ou a alegria, ou a tristeza que o engole.

Os sonhos são os portais para um mundo de estranhamento contemplativo. Nos permite segurar a atenção no caos sem que o reconheçamos como tal. E por isso, talvez, seja um exercício tão complexo traduzir seus hieróglifos. Mas no que podemos descrevê-los, como humanidade, descrevemos. Nesse texto me inspiro nos grandes tradutores que tentaram.

E venho eu aqui, as 01h07min de uma quarta-feira ocupada, respirando o mesmo ar de Salvador Dalí, Picasso, Marta Minujín, só que mais poluído... no mesmo mundo que ecoou o albúm Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, a discografia dos Pixies, com os olhos de quem assistiu aquele filme "Comet", falando a mesma língua de Murilo Mendes e tantos outros bons poetas, descrever que ser simples é estar em estranhamento.

Ai quem me dera eu pudesse traduzir de verdade!

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Loop temporal

 Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama em que sempre se deita. Tentou ligar a máquina de café em cápsulas, mas lembrou-se de que havia se esquecido de comprá-las. Fez uma nota mental: comprar cápsulas.

Sentou-se à mesa com uma bolacha e um copo de leite quase coalhado com café solúvel quase vencido e adicionou à lista mental: leite e pão. Enquanto mastigava, pegou o aparelho celular e passou pelas notícias do dia, viu as conquistas dos amigos na rede social e leu sobre a nova invenção. 

Tirou uma selfie após o banho matinal e saiu para o seu dia. No trajeto, usou os fones de ouvido para ouvir o hit do verão lançado naquele mesmo dia. Cantarolou o hit, riu dos vídeos mostrados pelo algoritmo, trabalhou em silêncio, odiando o aniversário que estava sendo comemorado na copa: local de trabalho não deveria ter festa. Seu serviço é relevante e a promoção está próxima. Fim do expediente.

Estressou-se com os dançarinos na rua, fugiu o olhar do mendigo, e agora uma selfie tomando um café caro. Outro hit do verão tocando nos ouvidos. Ao retornar para casa, lembrou de ter esquecido do pão e das cápsulas, pediu o jantar no aplicativo, pediu ao entregador que subisse ao seu andar. Recolheu o seu pedido sem checar. Comeu sem notar o erro da encomenda: o acréscimo do bacon foi esquecido. Tragou a fumaça de seu pod, enquanto aspirava a fuligem da sacada. Resolveu por beber aquela garrafa de cerveja enquanto esperava o celular carregar. 

Mais quatro horas deslizando os dedos numa tela quente, o celular preso ao cabo, o cabo preso ao carregador, o carregador preso à parede. Na tela: as conquistas dos amigos, o novo hit do verão, a promoção, as plásticas, os efeitos, os defeitos, a prática física, a auto aceitação. Comprou dez camisetas de ginástica e uma cinta modeladora de alta compressão. No aplicativo de namoro, marcou um encontro para o final de semana. Caiu no sono já na madrugada.

Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama, sem notar que esta é a 23ª quarta-feira seguida de um loop temporal.

domingo, 15 de setembro de 2024

O amor não é para amadores

  Não se ama lá muito bem de primeira… as tentativas talvez sejam o que chamamos de paixões. É a paixão a tentativa de comprimir o amor da vida inteira numa só pequena pílula. A paixão é aquela coisa corrida e perigosa que se abre num domingo e leva Romeu e Julieta para os braços da morte numa quarta-feira. 

 A paixão é uma cópia mal sucedida porque amputa o amor de muitas formas e, sem piedade, não o faz com anestesia! Amputa-lhe o apuramento, o processo delicado da mesmice, da rotina, do tédio, da calmaria, do envelhecer, de seus sutis altos e baixos, comprime-o a um tamanho ínfimo de sua mais elevada e mais baixa parte. Tão ínfimo… mas tão intenso e viciante, que muitos de seus sobreviventes são como os drogados que perambulam nas ruas, capazes de se comprometerem à vilania, só para satisfazerem o desejo de receberem da paixão mais um bocado. 

 E perambulam, até mesmo quando cientes de que uma paixão bem sucedida tem consequências tais como a dose mais letal do mais letal dos venenos. Ao final da paixão, sobra-lhes o trauma, o ódio e o ressentimento.

 O amor, por outro lado, guarda em si tudo que é belo e trágico da poesia. É mais que um breve sentido, o amor é um reconhecimento do carinho e do afeto. É ele singelo e simples, como o caminhar tranquilo do idoso, é o leme pacífico em meio às ondas agitadas e o racionar da água em meio ao deserto. 

O amor nunca é bem-sucedido, porque nunca será ele mal sucedido. Assim é que se o reconhece. É o material entregue à maestria de um experiente artesão, que mesmo no que lhe parece defeituoso, encontra ali uma saída criativa. Apara suas arestas, limpa e contorna o intrincado trabalho, usa suas peças como elas estão, entalha ali o que se cabe entalhar.

Cada amor é único e especial, e mesmo que dure pouco, que não consagre a união de suas partes, que seja só, o artesão que o recebe faz dele aquilo que dura no peito eternamente com a dignidade finita da nostalgia. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Em 2004

 A vida tinha cheiro de plástico e tutti-frutti e os carros eram naves espaciais que me levavam de um planeta para outro. Era tudo pop music, glitter e tons de rosa. O mundo era mais encantado com meu discman lotado de adesivos de caderno Tilibra. Eu me imaginava como equilibrista entre os fios elétricos e escorregava nos grandiosos tapetes de grama do Mato Grosso do Sul. Mergulhava profundo no Rio Paraná. No caminho para Minas Gerais, via as montanhas e cumes surgirem ao longe. Eu imaginava gigantes adormecidos em cobertas de rocha e a história de uma grande civilização mágica, adormecida por encantamentos. E o enjoo da viagem era ludibriado pelo encantador mundo da imaginação da janela do carro.

O mundo era muito maior e mais cheio de possibilidades e as pessoas muito mais distintas. Os dias quentes eram calorosos abraços de mãe e os dias frios cheios de mistério e canecas de chocolate quente. As gotas de chuva não significam resfriado, mas poças de lama em que eu podia pular. Eu queria muito mais janelas de carro, janelas de ônibus e janelas de avião. Mas logo findavam as férias... e era hora de contar as travessuras aos colegas da classe: antigos ou novos.

A energia ao acordar era potente. Eu estava pronta para explorar o grandioso universo, descobrir o quanto mais rápido poderia correr, pular, ler, e subir ainda mais alto na árvore da casa da minha avó Marlene. Quando eu subia nos muros dos vizinhos, ali era o topo do mundo. Mas eu queria mesmo é ir mais e mais alto na estante de livros. O mais difícil de alcançar era o mais curioso de se ler! Ao abrir um livro, cada página era um mistério que eu estava disposta a descobrir, enquanto comia granulado e intercalava entre segurar os doces e a lanterna para prosseguir na aventura.

Os cristais e incensos na casa da minha vó Iolanda me faziam sentir os ventos do mundo indiano; o retrato do Taj Mahal não era um mausoléu, mas uma bela história de amor num castelo... mas o que eu queria mesmo era apostar corrida naquela longa piscina até os portões do palácio dos reis apaixonados.

O mundo da criança é muito particular. Mesmo quando esse cristal era rachado pela violência dos adultos, ele logo era decorado com flores e rosas feitas com giz de cera. Cada segundo da infância foi vivido intensamente, mente e corpo totalmente presentes, então o momento ruim era sobreposto pelo momento bom com muito mais graciosidade que os dias adultos. Mesmo assim, eu resguardava alguns desses momentos para contemplar o futuro.

Eu sabia que cresceria... além de já ter notado que as pernas ficavam mais longas e rápidas e ágeis a cada ano, já haviam me alertado que não eram só os joelhos que mudavam de lugar. Sim, eu já sabia que a maior dificuldade da vida não seria a tabuada ou as dores chatas do crescimento, eu já me escrevia cartas para o futuro, e nelas, já anotava rascunhos do meu testamento. Eu sabia que 2004 morreria, e com ele, quem eu era naqueles dias de massinha de modelar e lápis faber-castell. 

Sigo até hoje os desejos que deixei testamentados, apesar dos joelhos estarem mais longe do chão: dançar bastante, amar os cachorros, ser mais forte que os meninos e nunca, promessa de dedo, deixar de brincar.