Aproximei-me da maca. Ela parecia tão doente ali... mesmo assim ela sorriu. Sentei-me ao seu lado e segurei sua mão fina e gelada, ouvi seu respirar tortuoso. "E ontem ela estava tão bem", pensei comigo.
- Para quem diz que não é possível fazer duas coisas ao mesmo tempo, como estar ocupado e aproveitando a vida - ela disse com a voz frágil - sou a contraprova. Antes de você chegar, finalizei meu testamento.
Mostrou-me um papel escrito "tEsTaMeNtOoOo" e o desenho de uma caveira esquisita feita com giz de cera rosa.
- Me inclua nessa contraprova. - ri - Você acabou de me fazer sentir duas coisas ao mesmo tempo.
Ela enxugou meu rosto.
- No meu velório, quero que sirvam bolo de chocolate.
- Acrescentarei brigadeiros.
- Que toquem samba.
- E também heavy metal.
- Bom... você pode usar a lista que deixei anotada tocando bem alto. Pode incomodar os vizinhos.
Ela me entregou uma folha de papel.
- Acho que os vizinhos estarão todos lá.
- Eu não conseguirei impedi-los - disse em tom sarcástico.
Nós rimos.
- Nunca mais conseguirei ser feliz sem você.
- Conseguirá, sim. Eu é que não conseguirei... Por outro lado, não sentirei mais toda essa dor, o que é uma vantagem.
- Não quero que você parta. - ela apertou a mão enquanto afrouxei a minha.
- Eu sempre disse nos velórios que os mortos ficam vivos nos corações dos vivos, como é esquisito dizer isso de mim mesma para você. Mas faço questão desse clichê. Obrigada por ficar aqui todos esses dias, habitarei os próximos no seu peito e assim retribuirei a sua companhia... A vida é tão solitária sem boa companhia.
Uma enfermeira entediada entrou na sala, informou que a agulha doeria, injetou o líquido viscoso e saiu com o silêncio da dor.
- A companhia das enfermeiras inclusive nos dá mais solidão, não acha? Elas só aparecem com más notícias ultimamente.
- Não puna o mensageiro. Elas sempre foram mais honestas que os meus amigos... menos você. Você foi aprendendo sobre a honestidade.
- É que antes de ser honesta com você, tive de ter honestidade comigo.
- A honestidade é um remédio amargo... mas não tão amargo quanto os que estão circulando nas minhas veias.
Um médico aproximou-se da porta, em meio sorriso, e perguntou, indiferente, se estava tudo bem, partindo logo após um OK.
- É estranhamente libertador poder falar com você em panos tão limpos... Com você percebi o quanto do mundo é produto da falsidade da boa educação.
- A boa educação serve para nos poupar tempo dos conflitos... Só depois de muito tempo é que percebemos que ela ocupou nosso tempo inteiro... E a percepção vem pelo contraste, quando finalmente ficamos nus.
- A vida só começa a acontecer quando voltamos a ser honestos, mas tem algumas honestidades que poderiam ficar escondidas.
- Podemos fazer tudo isso com muito amor, mas é preciso coragem para abrir o peito para o mundo.
- Como amarei depois de você? Fico refletindo... acho que amarei mais as pessoas que odeio. Você me fez aprender a dizer que amo e isso me fez amar a mim.
- Eu concluí que amor é um nó que está atado na garganta de todo mundo. E que bobagem de nó! Encarando a morte é que o desatei... e o que quero é você ame o mundo como eu amaria se pudesse ficar mais... e assim você será feliz duas vezes, por mim e por você.
- A minha felicidade é tão difícil...
- Quem acha a felicidade fácil é porque viveu pouco. Quem acha a felicidade impossível, também.
No dia seguinte, eu estava lá sendo a contraprova, novamente, ouvindo samba e depois heavy metal, comendo bolo e brigadeiros, rindo e chorando, honestamente, na companhia daqueles insuportáveis vizinhos.
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