sexta-feira, 28 de junho de 2024

O exilado poeta

Sócrates a me reprimir
Disse, nas letras de Platão:
Que meus belos escritos
A ninguém fazem rir,
São teatro, enganação,
Que entorto as palavras retas,
Que inverto todas as setas,
Altero em tudo a direção.
Ah, coloco-o à indisposição,
Como é importante a verdade!
Mas a tenho por diversão.
Quereis ouvir com acuidade
Minha pomposa contestação?
Ora, pois preste-se à atenção:
Debaixo do chão que os enterra
A poesia buscarão em vão!
Desde a caverna, das mesas das tabernas
Aos impressos, ei-la viva, em vossa oposição.
E mesmo que se construam cidades à beça,
e farão frequente sua demolição,
Há sempre de morrer um poeta,
A Poesia não!

sábado, 15 de junho de 2024

Conversa terminal

 Aproximei-me da maca. Ela parecia tão doente ali... mesmo assim ela sorriu. Sentei-me ao seu lado e segurei sua mão fina e gelada, ouvi seu respirar tortuoso. "E ontem ela estava tão bem", pensei comigo.

- Para quem diz que não é possível fazer duas coisas ao mesmo tempo, como estar ocupado e aproveitando a vida - ela disse com a voz frágil - sou a contraprova. Antes de você chegar, finalizei meu testamento. 

Mostrou-me um papel escrito "tEsTaMeNtOoOo" e o desenho de uma caveira esquisita feita com giz de cera rosa.

- Me inclua nessa contraprova. - ri - Você acabou de me fazer sentir duas coisas ao mesmo tempo.

Ela enxugou meu rosto.

- No meu velório, quero que sirvam bolo de chocolate.

- Acrescentarei brigadeiros.

- Que toquem samba.

- E também heavy metal.

- Bom... você pode usar a lista que deixei anotada tocando bem alto. Pode incomodar os vizinhos.

Ela me entregou uma folha de papel.

- Acho que os vizinhos estarão todos lá.

- Eu não conseguirei impedi-los - disse em tom sarcástico.

Nós rimos.

- Nunca mais conseguirei ser feliz sem você.

- Conseguirá, sim. Eu é que não conseguirei... Por outro lado, não sentirei mais toda essa dor, o que é uma vantagem.

- Não quero que você parta. - ela apertou a mão enquanto afrouxei a minha.

- Eu sempre disse nos velórios que os mortos ficam vivos nos corações dos vivos, como é esquisito dizer isso de mim mesma para você. Mas faço questão desse clichê. Obrigada por ficar aqui todos esses dias, habitarei os próximos no seu peito e assim retribuirei a sua companhia... A vida é tão solitária sem boa companhia.

Uma enfermeira entediada entrou na sala, informou que a agulha doeria, injetou o líquido viscoso e saiu com o silêncio da dor.

- A companhia das enfermeiras inclusive nos dá mais solidão, não acha? Elas só aparecem com más notícias ultimamente.

- Não puna o mensageiro. Elas sempre foram mais honestas que os meus amigos... menos você. Você foi aprendendo sobre a honestidade.

- É que antes de ser honesta com você, tive de ter honestidade comigo.

- A honestidade é um remédio amargo... mas não tão amargo quanto os que estão circulando nas minhas veias.

Um médico aproximou-se da porta, em meio sorriso, e perguntou, indiferente, se estava tudo bem, partindo logo após um OK.

- É estranhamente libertador poder falar com você em panos tão limpos... Com você percebi o quanto do mundo é produto da falsidade da boa educação.

- A boa educação serve para nos poupar tempo dos conflitos... Só depois de muito tempo é que percebemos que ela ocupou nosso tempo inteiro... E a percepção vem pelo contraste, quando finalmente ficamos nus. 

- A vida só começa a acontecer quando voltamos a ser honestos, mas tem algumas honestidades que poderiam ficar escondidas.

- Podemos fazer tudo isso com muito amor, mas é preciso coragem para abrir o peito para o mundo.

- Como amarei depois de você? Fico refletindo... acho que amarei mais as pessoas que odeio. Você me fez aprender a dizer que amo e isso me fez amar a mim.

- Eu concluí que amor é um nó que está atado na garganta de todo mundo. E que bobagem de nó! Encarando a morte é que o desatei... e o que quero é você ame o mundo como eu amaria se pudesse ficar mais... e assim você será feliz duas vezes, por mim e por você.

- A minha felicidade é tão difícil...

- Quem acha a felicidade fácil é porque viveu pouco. Quem acha a felicidade impossível, também.


No dia seguinte, eu estava lá sendo a contraprova, novamente, ouvindo samba e depois heavy metal, comendo bolo e brigadeiros, rindo e chorando, honestamente, na companhia daqueles insuportáveis vizinhos.


domingo, 9 de junho de 2024

Poente

 Ando sentindo pouco ou quase nada. 

Descobri que vida é assim: parada. Sofri a angústia da descoberta, feito adolescente que da infância se desperta, até que envelheci. E como são melhores as águas calmas que as turbulências em que vivi! 

Quanto mais se sente, mais se sente, e a cada voo alçado em sua potencialidade, com menos se contenta o sentimento, pior se lida com a gravidade.

 Descobri que preferimos a dor ao tédio. Que queremos mais do ritmo da existência, mais de tudo o que há de anestésico, uma vida à la carte, sem percebermos que a placidez é sua maior parte.

 O tempo passa vagaroso quando se vive a vida, como um caminhar de um idoso e passa muito depressa quando dela se refugia, como a criança que desafia suas pernas recém-descobertas.

 A vida não se evapora mais rápido ao meu envelhecer, o sol sempre nasceu, depois vai se acomodando no horizonte, no conhecido poente do meu entardecer.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Poetria XXXIII

Esperei muito de ti, vida

Com esse teu silêncio vil!

Atentei tanto minha aurícula

Nenhum som tua voz emitiu.


Mas este meu ouvido te ouviu

Mesmo ante tua vacuidade

gestei uma tão grande vaidade!

E minha insanidade viu teu sorriso elastecendo


Mas vida, foste tu toda acontecendo

como é de teu costume acontecer

alheia a tudo, indiferente, sem a nada ver


E a viver, contemplei o engano, não persisti

não prometes, não choras e nunca sorri

vida, esperei muito de ti.