domingo, 26 de maio de 2024

Lusco-fuscos

  Desde muito cedo entendemos que é preciso podar certas partes de nossos "eus" para sermos aceitos, amados ou ao menos não odiados por nossas famílias, amigos, sociedade. Nos escondemos por tantos anos que nos sentimos confusos no labirinto de espelhos de nossas próprias almas. Quem somos nós naquele reflexo?
  Por termos nossas personalidades moldadas a cada encontro humano, pensamos que nosso "verdadeiro lado" se refere tão somente aos nossos defeitos e que não há qualquer coisa que esteja guardada, que se possa identificar como qualidade. 
  Temos aquela crença traiçoeira que, se algo é escondido, logo é necessariamente ruim, porque bom é aquilo que pode ser exposto e apreciado. Mas o mar não é feito tão somente de sua superfície, a beleza das águas não jaz nos reflexos luminosos do sol sob suas ondas. O dia claro não é mais belo que a misteriosa escuridão da noite, ele só nos parece mais seguro. Um teatro é feito de roteiros escritos por trás do tablado, ele é aplaudido ao gosto da plateia. O que é evidente é somente uma parte de um todo.
  Sim, muitas vezes quando dançamos no baile da vida usando máscaras nos sentimos maus atores. Mas as máscaras são nossa escolha, elas sempre trazem consigo nossos mistérios, elas são a sombra do sol ao meio-dia. Toda sombra tem algo da treva. A máscara pode ser o disfarce do nosso medo, da nossa intolerância, da nossa tristeza, como também da nossa felicidade, do nosso amor, do carinho. As trevas são compostas, também, do que é bom e belo.
  Não somos só a ausência da luz, nem mesmo o profundo do oceano. Somos, também, aquilo que se está a vista.
  Nunca, em lugar nenhum, somos nós mesmos por completo: não há noite e dia, em suas totalidades, acontecendo ao mesmo tempo. Há um espectro de tons que se transpassa entre o entardecer e o anoitecer. O mar é a superfície que vai se misturando à profundidade. Sermos nós mesmos não é um ponto extremo, não é luz ou escuridão, está nos lugares em que mais partes nossas estão misturadas, como no lusco-fusco, quando as cores do céu estão entre laranja, rosa e cinza. E mesmo ali, sempre haverá um segredo.
  Só se vislumbra o todo na reflexão da solitude, quando se sabe o que o dia esconde da noite, o que as ondas significam para as fossas oceânicas. É ali que sabemos o quanto estamos sozinhos, o quanto somos nós, nós mesmos. E nós mesmos somos tudo, e nós mesmos somos, para nós, indivisíveis e únicos, mutáveis e irresignados. Nós mesmos somos duais e todo o degradê que compõe um extremo ao outro. Somos as águas que se encontram e se entrecruzam, somos nós os ventos quentes do verão que antes eram as ventanias frias do inverno. Nós somos os vilões que escondem o heroísmo e os heróis que escondem a vilania, aqueles que perdem o próprio controle para o amor, que perdem a máscara para o ódio.
  Quão complexos são nossos crepúsculos!

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