sábado, 9 de novembro de 2024

Nódulo

 Sabe-se lá há quanto tempo não penso em poesia!

 Sinto conforto em estar assim, robótica, que daí não penso e a complexidade da vida se ameniza. Programei (ou fui programada?) para que esse sábado fosse tão cheio quanto todos os dias da semana. Porém, o inesperado: eis que todos os programas agendados foram desmarcados em cima da hora. A viagem, a sessão, a conversa, a saída, o restaurante. Tudo. 

Fui às compras porque não sabia o que fazer com o tempo livre. Não estava nos planos principais, mas estava ali como um plano B: Minha programação B é comprar para sorrir. Dessa vez, optei por apoiar o comércio local e também por gastar mais calorias de pé do que com cliques. Lá encontrei muita gente. Como otimização de bateria, deixei de registrar os rostos que encontrei e as suas vozes. Simplesmente não poderiam interromper minha programação, pois o que será que aconteceria? Não havia tempo para sentir tamanha... seja lá o que for o que minhas roldanas suprimiram. Sentir não estava nos planos A, B ou C. 

Ah... não sei ao certo o que respondi, mas estou firme que recitei aquela conversa pré-programada que se fala nas ocasiões sociais em que há muito barulho e muita gente e que não se há tempo para contemplar outra coisa senão um cinto de couro legítimo por R$ 39,00. Trinta e nove reais é um bom preço! Excelente! Era dia de promoção e uma mulher estava de olho no amontoado de roupas que eu cuidava, enquanto alguém me perguntava algo, talvez sobre como havia sido a semana. Eu não poderia dizer como foi, porque a) não tinha certeza se essa era a questão e b) eu também não saberia dizer como foi minha semana, precisava pegar a agenda. Joguei palavras ao vento, assim como as roupas na sacola e o número do cartão de crédito na maquininha. Não é hoje, pensei, que pensarei esses pensamentos.

Extrapolei mais uma vez o limite do cartão, sem pensar, com alívio. O peso das sacolas de plástico não justificava a notificação do banco neste celular que sequer terminei de pagar. Apaguei a notificação e fiquei só com o peso das sacolas. 

Vesti as roupas só em casa, porque o impulso da compra não me permitiu sequer prová-las na loja. De frente ao espelho: Um vestido novo, admirei a bolsa nova, a camisa nova. A cama cheia de etiquetas. Minha programação para não desestabilizar meu sistema com raciocínios, sentimentos, tensões, como havia sido a semana, o mês, o passado, foi provar as roupas que comprei sem direito à devolução. O cinto novo nem combinava com a blusa nova.

A blusa nova, muito pequena, fez-me sentir um nódulo no seio. Interrupção das sinapses e pane no meu sistema. Não tenho tempo para nódulos, hoje. Uma ligação telefônica surpresa, visitas inesperadas, a blusa nova, mais conversa, risadas, a blusa nova e o nódulo. O nódulo. Mas com que tempo iria eu a um hospital? Segunda, não tenho tempo, muitos prazos. Risadas e conversas. Terça e quarta, seria impossível. "Sim, está tudo certo aqui, sim". Quinta é inviável, tal qual sexta e também o sábado. "Sim, essa blusa é nova". O nódulo também?  Fui ao hospital.

 A médica me tranquilizou com seu tédio. Só apalpou meu nódulo porque lhe falei que a blusa nova deixava aquela pele à mostra. Passou o exame, perguntou do histórico de câncer. Consulta rápida, como gosto, mas esqueci de acrescentar um pigarro chato e uma tosse irritante - que está sendo tratada por mim e meus conhecimentos parcos de automedicação.

 Na saída do hospital, tranquilizei minha pane. Passei pelo corredor mastigando chicletes, pensando no café que eu deveria comprar e nos compromissos do dia e como resolver as desmarcações. Será que viajo sozinha hoje? Faço eu mesma a sessão? Marco outro compromisso? Visito a família que não vejo há anos? Faço o exame na terça? De repente, uma banda entra na sala de espera. Um a um. Os instrumentos refletiam à luz do sol. Flauta, saxofone, trompete, trombone, violino, partitura, ternos e gravatas, e por fim um maestro, que me desejou um bom final de semana.

 Agora, para ser exata, recapitulando meu dia após horas de tédio, escrevendo da sala porque o quarto está revirado com roupas e etiquetas, percebo que pensei muito no nódulo e pouco no porquê não dei meia volta para acompanhar a sinfonia.

domingo, 3 de novembro de 2024

Um café, por favor

Sou uma pessoa extrovertida, isso não é mistério para ninguém. Desde criança gosto de conversar com as pessoas e adoro quando elas me contam suas histórias e quando elas reagem ao que falo. Eu adoro quando alguém ri comigo, e quando choram comigo. Interagir com humanos me deixa feliz e enérgica. Porém, os anos foram se passando e fui ficando mais fechada. A interação tem o seu custo... se não se cuidar você se submete aos outros e não consegue ter um tempo de contemplação isolada e fica exausto. 

Houve uma época em que achei, genuinamente, que tinha ficado fadigada dos humanos: essa matéria orgânica em decomposição, estranha, revestida de um órgão pálido ou tingido, com bolotas esbranquiçadas e pontos pretos na parte alta, no que se chama de rosto, chamados olhos, que servem para ver o que existe a sua volta, com pontas espigadas chamadas de ouvidos, com orifícios estranhos, fios que saem do corpo. Suspiro. Reticências.

Num desses dias de ojeriza, 6h30min, numa segunda-feira, cansada, experimentei pela primeira vez uma pequena xícara de café com muito açúcar e pensei que o gosto amargo não era justificável. Dali trinta minutos senti como se minha alma estivesse reocupando meu corpo e tive aquela sensação de eureka!

De lá pra cá, deixei as xícaras de lado, e passei a consumir o café em canecas, o amargor virou amor, e não adoço a bebida nem mesmo com uma brisa doce. Quente e forte. É assim que tomo meus baldes de café.

Sempre após tomar meu delicioso café a minha extroversão é aumentada em 1000%. No início lembro das pessoas que eu conheço, meus amigos, e crio seus fantasmas e conversamos mentalmente sobre aquele meu relatório no meu escritório de advocacia. Rio com esses fantasmas pensando como alguém que chama Uialá teve coragem de processar o banco porque seu nome no cartão veio escrito como Óialá.

Outra caneca, por volta de 200ml, aquele líquido delicioso, o cheiro da manhã! Olho as pessoas pela janela da sala, pessoas que sequer conheço, e penso comigo sobre o extraordinário da vida, como elas são belas, inteligentes, como são criativas, simpáticas, únicas, vivas, poéticas, profundas, e que mesmo as cruéis são personagens essenciais deste mundo, e eu as amo todas.

Mais uma caneca, e passo a desejar a imortalidade. Sabe, eu queria ter tempo de conversar com cada uma dessas pessoas e conhecer toda a vida delas, inteira, e seus segredos todos para sempre. " É mesmo, senhor pedreiro? Você está com essa mochila rosa com glitter para trabalhar, não porque era de sua filha, mas porque você realmente é fã de O Clube das Winxs? Eu também sou fã, a minha favorita era a Bloom, e a sua deve ter sido a Flora, heim"... 

Poxa, é uma pena que morrerei sem ter interagido com esses 8 bilhões de humanos. Como é triste a mortalidade! Ela me tira a chance de poder conhecer quem nascerá... e como eu queria conversar realmente com aqueles que já se foram! Particularmente com o Montaigne, acho que seríamos melhores amigos, mesmo que ele não visse lá as mulheres como seres muito capazes de se darem bem com a razão. O ensaio dele sobre como a filosofia nos ensina a morrer é supimpa!

Mais uma caneca e já quero saber o processo criativo do Shakespeare e a quem ele direcionava aqueles belos e raros sonetos: para seu preceptor ou para alguma mulher a quem amava? Marco Aurélio roncava? A cor favorita da Cleópatra, qual seria? 

Última caneca, o coração já em chamas. Hoje em dia tento parar o consumo às 14h para não atrapalhar o bom sono. Às 14h15min entro em debate com algum conselho intergalático e penso como seria interessante um podcast com uma vida alienígena: afinal, como é respirar dióxido de carbono e liberar oxigênio ao invés de respirar oxigênio e expirar dióxido de carbono e como isso afeta a formação dos  narizes? Os terráqueos os tem no centro do rosto, os uluplazukuafhaus os possui dentro das orelhas.

Às 18h, olhos semicerrados, sequer miro o meu próprio reflexo no espelho, que eu mesma já sou gente demais para conversar.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Poetria XXXVI

Para a dor não há atalho de cimento.

Eis meu mais curto sofrimento:

Olho o abismo em que a vista alcança

Dói-me, corrói-me, e se cansa

Devoro cru, com sangue quente, sofro agora 

não no leito da morte, na dor da memória.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Tomar decisões com o dedo machucado

  A gente nasce e logo nos catalogam, encaixam-nos num lugar, dão-nos de comer e beber e engatinhamos. O início da vida é uma exploração guiada pelos adultos, uma aventura indicada para aquela faixa etária em que os erros não são tão fatais se não nos arrancam o topo do dedão do pé. 

  Alguns, ao perderem o topo do dedão do pé não querem que a dor se repita, temem a trágica visão de sangue, e na crença de evitarem a repetição da dor voltam os olhos para a experiência do outro.

  O "outro" é um sujeito meio indefinido que nunca teve o topo do dedão do pé arrancado numa partida de futebol de rua e ainda faz gol de bicicleta. O outro sabe da vida, e sabe tanto, que diz o que se deve saber. Os princípios do outro são mais elevados, o temperamento é mais calmo, a inteligência é mais aguçada... o outro é belíssimo! O outro não vai jogar futebol descalço. O outro não rala o joelho. O outro possui desses feitos que nos causa inspiração e uma certa inveja... Mas o outro é o outro, ele é o ideal, e tantas vezes nós o plagiamos para evitarmos os erros deste eu errático, ensanguentado, exausto e sem o tampão do dedo.

  O outro nunca perderia o tampão do dedo, se porventura o perdesse, não teria esgoelado e chorado tanto como este eu. Causa-nos medo sentir a dor, causa-nos medo esgoelar de novo, errar dói e isso é um primitivo-intuitivo pavor.

  O medo dos erros nos leva a fazer coisas esquisitas, como por exemplo, praticar erros mais elaborados. O medo de ser rejeitada já me levou a dizer sim para tudo. E apesar de ser uma pessoa que adora explorar as possibilidades da existência na terra, muitas delas eu explorei por puro medo de errar. Porque mesmo diante das possibilidades, escolhi me submeter a outro ideal. Dos tipos de erro que se comete na vida, no entanto, aceitar explorar as possibilidades não é tão ruim assim, há mais chance, estatisticamente falando, de se deparar consigo mesmo em alguma parte do caminho para tomar as decisões próprias da maturidade. Por outro lado, o erro de só se explorar uma única possibilidade de regras de vida me soa mais... fatal.

  Ao leitor (ninguém lê esse blog) nada tenho contra regras! Elas são praticamente inescapáveis. Quem vive uma vida regrada, quando cria as próprias regras, é mais feliz do que quem se submete as regras alheias. Compreendo muitíssimo que as regras alheias nos dão um lugar seguro, que são o abraço do útero, como se houvesse uma mãe nos alimentando pelo cordão umbilical. Mas um cordão umbilical nos alimenta de nutrientes, não de sabores. Só a vida nos dá sabores, esse pré-nascimento, proto-vida, não. 

  O erro de trilhar um caminho alheio é magistral, é aquele erro que faz o moribundo na cama de hospital se contorcer. No cansaço da morte nos lembramos da vida, mas se se viveu um protótipo de vida, nada ali há para se rever que seja pessoal, é um filme composto de colagens, um documentário de uma vida estranha. 

  O moribundo descobre só saber o próprio nome e talvez se apegue àquele dia quente de verão, jogando futebol descalço, e sorria com a bola na trave e a dor do tampão do dedo.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Times New Roman 12

  O intelectual é aquele ali: o otimista adulto demais para ser otimista, o que está encoberto de uma atmosfera lúgubre e vive em seu refúgio natural: o cérebro. O intelectual é distinto, sua intelectualidade não se confunde, é o sarcasmo, é não rir além dos dentes, é estar constantemente insatisfeito com o que é bom. Ele já nasce com a maldição de ver tudo o que não se conquistou, o que se deixou de fazer, os buracos da trama e o futuro brilhante apagado pelo imutável passado. 

 Trata-se de condição de sua espécie compreender que só se é verdadeiramente intelectual aquele que é triste. É assim que se reconhece como parte do grupo. Essa tristeza sem lágrimas é tida como a marca do verdadeiro amadurecimento. Observe que a infância é o deslumbre, a esperança e o sorriso de um córtex pré-frontal não completamente formado. Logo que há o reconhecimento das incoerências do mundo, nasce-lhe a raiva, por conclusão lógica. A melancolia é consequência direta do apaziguamento da revolta juvenil. É com a tristeza, talvez um par de óculos e uma pele pálida que se o reconhece.

  O intelectual, por rotina, se senta em sua mesa de estudos, injuria o mundo, maltrata a esperança e desumaniza a felicidade. Ele digita que tudo está fora de controle e que o azar é uma construção há tantos anos que se perdeu de seus rastros. Em sua conclusão: desista, e referencia a si mesmo. Ele sabe tudo que se há para saber, mas não é o que responde quando lhe perguntam.

 O cruel mundo gira, o sol que explodirá acorda pela manhã em contagem regressiva, o leite da geladeira coalhou, e lá vai o intelectual forçado ao mundo, buscar o café da manhã. No trajeto à padaria, vê quem sorri com ironia, pensa-se seguro, acima daquela ignorância toda. Caminha pomposo por entre as gentes, tem dó dos empobrecidos tristes - seu objeto de estudo para mais tarde. O intelectual não se sente muito a vontade em conversar com o objeto de estudo, no entanto, arranja o seu jeito: fala em tom de condescendência, e isto, sim, funciona muito bem. Retorna o intelectual com o leite e um olhar orgulhoso para seu refúgio.

 O refúgio do intelectual é bastante distinto, tido que lhe abriga com uma segurança mui peculiar: apaga-lhe o sorriso e a felicidade, sintomas da indesejável imaturidade. No refúgio, só os maduros! No refúgio ele percebe que não disse ao moribundo, olhando nos olhos, sobre seu destino fatal, sente-se covarde por um momento, mas como escreverá sobre, com nota de rodapé, sentiu-se bem logo em seguida. O intelectual é o herói que preserva a verdade das mentes pequenas e as expande em times new roman 12, em Qualis A1. O que importa não é o pouco, é o muito, é a larga escala, é o grande esquema das coisas. 

Eis o que é verdadeiramente grande: é a justiça, pensa ao encostar a cabeça no travesseiro, é importante apesar de não ter logrado a conceituar muito bem naquela introdução. Remói por hábito, mas agora lhe chama atenção a estranheza de sua guerra em prol da justiça num mundo tão condenado.

Não há nada o que se dizer de original, sonolência, as mãos atadas a referências, o leite coalha, Comic Sans... Dorme o intelectual.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Curiosidade hedônica

 Estou num período de intenso preparo físico. Tive muitas versões de mim mesma, as primeiras versões não se impressionariam com a disciplina de hoje, já as intermediárias ficariam impactadas, perplexas e até frustradas. Em alguns momentos minha febre pela disciplina sumiu completamente ao ponto de me causar desprezo. Mas essa ojeriza só aconteceu porque eu olhava ao redor e via pessoas que conseguiam existir sem pensarem tanto sobre o que estavam fazendo. Essas pessoas pareciam tão alienígenas! Foi incrível a descoberta de que há vida fora do planeta! E minha curiosidade me levou a buscar o conhecimento prático da coisa, com um foguete. Pensar demais, refleti à época, atrapalhava a experimentação completa da vida. 

 Para conhecer os céus, quis bisbilhotar os infernos. E tive uma vista... interessante.

 De quantos copos, taças e canecos já bebi? E estes dedos seguraram quantos cigarros de seda, de palha, de papel? Acho que me dediquei demais aos meus objetos de estudo por causa dessa tal curiosidade. Não é preciso tanta dedicação prática quando se pode fazer uma busca mais bibliográfica, não é mesmo? Olha, não é como se eu estivesse num confessionário, aqui, não me arrependo de uma só gota, nem de qualquer um dos tragos! Pelo contrário, acho que experimentei muito da vida, mas descobri que era do todo uma só parte. Os psicodélicos, psicotrópicos, psicoativos de toda natureza que passaram pela minha garganta, língua e nariz me deram lições interessantes sobre partes de mim que descobri que conseguia expandir ou retrair. E os ambientes esquisitos e futilidades me deram desgostos como também me deram prazeres. Abracei e estapeei mais dilemas morais do que posso contar.

  Das drogas mais pesadas, a minha curiosidade foi a maior, como se pode ver, foi ela a porta de entrada para todas as outras. Depois dela que me corrompi, e depois dela que percebi que corrupção não é aquilo que consta do dicionário, depois risquei e pensei que talvez corrupção seja o que significa no dicionário, depois coloquei aspas e troquei os sinônimos. Foi pela curiosidade que eu quis me tornar uma adicta, mas por uma ironia da vida, meu corpo não me deu esse gene (ufa!). Quis me tornar isto ou aquilo e de fato busquei a experiência. Pela curiosidade quis machucar o corpo para acalmar a mente. Depois inverti e quis salvar o corpo de perturbar a mente. Pela curiosidade descobri que mente e corpo são uma coisa só, que meu cérebro é matéria, que sou eu, tanto quanto meus dedos, olhos, nariz e boca. E que não se cuida de um fígado como se cuida das unhas na manicure!

 Não há vida apenas fora do planeta, aqui no meu também há: sou eu, oras! Este planeta estranho, feito de quebra-cabeça, com peças pequenas, talvez algumas perdidas por aí, outras inexistentes, outras em outro quebra-cabeça - e que saudade de algumas delas!

Provisoriamente penso que sou eu que ordeno as peças que tenho, até mesmo o espaço vazio. Sou eu que escolho a lição que tiro das experiências quando um trauma não a escolhe por mim. E mesmo quando há um trauma, e que a culpa não seja necessariamente minha, a responsabilidade é - e disso não tem como fugir (digo porque tentei). Mas é provisório o pensamento. A curiosidade sobre o livre-arbítrio perpassa por entre minhas sinapses dançando tango com outros mil assuntos correlacionados enquanto assuntos aleatórios pulam carnaval.

E agora, ao final, não sei quem escreveu este texto, se eu ou ela. 

Talvez nenhuma de nós.

Talvez o sono.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Poetria XXXV

Quem não sabe, presume

E presume com o que se sabe

Quando o saber, a nada, se resume!

Se se presume o saber por costume

Se sabe ainda menos do que se sabe.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Cor-de-rosa ainda tem hífen!

 Sabe-se-lá por que, de todos os aniversários, o próximo é o mais esquisito de todos. Ver tão logo à frente trinta anos de minha vida chegando é uma mistura de frustração de expectativas e de felicidade por ter sobrevivido dietas malucas e bebidas suspeitas. Mas também pavor. Como toda boa millenial não me enxergo com essa idade que chega aí, não era para eu ser já uma velha sábia?

 Me é bem-quisto que os mais jovens estão reavivando os anos 2000, fico já toda nostálgica quando me deparo com as cinturas baixas e sobrancelhas finas. Os anos 2000 foram os anos dos flip phones raiz, da trema na língüa portuguesa, dos "Beijos, Blues e Poesia", quando eu ouvia músicas românticas imaginando como seria amar pela primeira vez. E mais: os hífens se acomodavam em lugares diferentes entre as palavras... o cor-de-rosa, no entanto, permanecem os dois nos mesmíssimos cômodos.

Eu amava todas as cores do arco-íris, mas o rosa <3... No início deste século (apesar de parecer que já se foram dez) eu tinha uma caixa de sapatos cor-de-rosa, que me era muito querida por ter tantos tons da minha cor favorita. Ali eu guardava muitas cartas de mim para mim mesma e alguns diários super-secretos contando as histórias de primeiras paixões e intermináveis tragédias infantis: não dava para voar, mesmo que eu pulasse realmente muito alto do sofá de casa. Algumas folhas foram escritas em estado de êxtase porque eu estudaria com as mesmas amigas da 4ª série do ensino fundamental, outras foram escritas mais tarde na vida, em estado de embriaguez, chorando as pitangas por não estar tão bem socialmente encaixada como eu gostaria.

Nesse meio-tempo, a caixa se despedaçou, troquei por uma caixa de madeira com cores mais radicais. Eu não queria mais gostar de cor-de-rosa, eu gostava é de vermelho. Gostava tanto que comprei uma caixa de tinta e coloquei aquela cor de sangue nas minhas longas madeixas. A cor e a minha intensidade combinavam. O pigmento rebelde era também a cor da minha aura. A pimentinha estressada, intensa, rebelde, que pegou R$ 50,00 furtivamente da própria mãe para colocar na nuca um símbolo de sua intensidade adolescente: um raio. O dinheiro acabou no contorno da tatuagem e a rebeldia para surrupiar mais dinheiro para a colorir no tom intenso cessou por ali também: pensei na minha ética. Não é o vermelho um tom mais pigmentado do cor-de-rosa?

Ex-presidenta Mundial, muito prazer! Eu tinha outras expectativas de quem eu seria naquela época, quanto mais hoje em dia! Nas memórias mais distantes eu achava que o mundo não deveria possuir fronteiras e que uma presidente mundial de coração grande e sem ganância deveria ocupar esse cargo. Mas ali pelos 9 anos percebi que a humanidade dividida era melhor administrada... Talvez eu devesse ser como o Marcos Pontes, cursar física, trajar as vestes de astronauta e ver minha casa lá da lua! Pensei depois em ser mais do que eu, em usar minha imaginação vestindo a carcaça de outras personagens, e me brotou a idéia (com acento) de ser atriz de Hollywood. O último sonho da primeira metade dos anos 2000 foi revolucionar o ordinário como a estilista do punk Vivienne Westwood, e tentar a carreira no Estados Unidos da América.

Até que "fodam-se os estado unidenses!". Sobre os anos 2010, já não havia como fugir das trocas dos hifens, o dinheiro para se ir à lua era inútil, eu buscava a distribuição da renda; a revolução fashion deveria ser mesmo é social, o cabelo saiu de vermelho para laranja, que contrastava com o cinza da fumaça de muitos cigarros que foram acessos, e tudo era política. Inclusive a franjinha nova e minha ânsia por não ser eu um alguém individual, mas uma engrenagem de um coletivo.

Vim envelhecendo a conta-gotas, mas me altercando como num maremoto. Os pigmentos do cabelo saíram, permanecem na cor do meu batom nas ocasiões especiais. Mais de uma década depois: me tornei mesmo é advogada e professora de um sistema que eu própria queria derrubar para estabelecer aquele governo pacífico e mundial sem fronteiras. Ir à lua importa. A revolução começa por mim, quando olho fundo para aquela caixa cor-de-rosa.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Parafraseando a realidade enquanto ouço um sabiá com certidão de idade

Ontem sonhei que eu era uma pessoa mais simples, a nada questionei. Como foi incrível olhar aquele éter lúdico de sonhos com olhos tão humildes. Não sei se caminhava ou se estava parada, se eu caía ou voava, nem mesmo se eu era eu mesma: humana, viva, mulher. 

Os sonhos talvez sejam quebra-cabeças feitos em desordem, que remontam o dia, a rotina, os anos e os desejos em uma estranha linguagem intuitiva e familiar. Existe quem pense ser possível extrair dos sonhos previsões do futuro ou códigos da alma. No Japão, está em desenvolvimento uma máquina que busca representar os sonhos integralmente. Mas fato é que o mundo dos sonhos só se entende, realmente, sonhando. Gasto as palavras tentando decifrar o que me acontece por lá todas as noites. É como se suas razões peculiares precisassem de palavras que não existem, de cores não descobertas, de sons que nunca ecoaram fora da imaginação arbitrária.

Platão entendia que se algo existia no mundo das ideias, poderia existir no mundo real. Talvez não sejam vãs as minhas tentativas de dar palavras, cores e sons para os meus sonhos... talvez esteja tudo aí ao acesso do possível.

O que consigo dizer é que sonhei que eu era mais simples do que sou aqui, agora, digitando, e o que  resta para os meus neurônios é parafrasear a realidade.

Nos ocorre ver a vida com esses olhos simplificados em certas ocasiões... Nessas raras ocasiões em que focamos os olhos para entendermos uma imagem que se forma à medida que a compreendemos. Começamos pelo som, cor, e pela forma: é humana ou um objeto? O estranhamento é um relapso meditativo, é a concentração intensa no que nos acontece de imediato - nem sentimentos são formados, porque sua formação dependeria de uma conclusão observacional. No puro estranhamento nos faltam estímulos suficientes para a formação de qualquer convicção. Ele dura tão poucos milésimos de segundos! São tão rápidas as sinapses que formam o medo ou a alegria, ou a tristeza que o engole.

Os sonhos são os portais para um mundo de estranhamento contemplativo. Nos permite segurar a atenção no caos sem que o reconheçamos como tal. E por isso, talvez, seja um exercício tão complexo traduzir seus hieróglifos. Mas no que podemos descrevê-los, como humanidade, descrevemos. Nesse texto me inspiro nos grandes tradutores que tentaram.

E venho eu aqui, as 01h07min de uma quarta-feira ocupada, respirando o mesmo ar de Salvador Dalí, Picasso, Marta Minujín, só que mais poluído... no mesmo mundo que ecoou o albúm Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, a discografia dos Pixies, com os olhos de quem assistiu aquele filme "Comet", falando a mesma língua de Murilo Mendes e tantos outros bons poetas, descrever que ser simples é estar em estranhamento.

Ai quem me dera eu pudesse traduzir de verdade!

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Loop temporal

 Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama em que sempre se deita. Tentou ligar a máquina de café em cápsulas, mas lembrou-se de que havia se esquecido de comprá-las. Fez uma nota mental: comprar cápsulas.

Sentou-se à mesa com uma bolacha e um copo de leite quase coalhado com café solúvel quase vencido e adicionou à lista mental: leite e pão. Enquanto mastigava, pegou o aparelho celular e passou pelas notícias do dia, viu as conquistas dos amigos na rede social e leu sobre a nova invenção. 

Tirou uma selfie após o banho matinal e saiu para o seu dia. No trajeto, usou os fones de ouvido para ouvir o hit do verão lançado naquele mesmo dia. Cantarolou o hit, riu dos vídeos mostrados pelo algoritmo, trabalhou em silêncio, odiando o aniversário que estava sendo comemorado na copa: local de trabalho não deveria ter festa. Seu serviço é relevante e a promoção está próxima. Fim do expediente.

Estressou-se com os dançarinos na rua, fugiu o olhar do mendigo, e agora uma selfie tomando um café caro. Outro hit do verão tocando nos ouvidos. Ao retornar para casa, lembrou de ter esquecido do pão e das cápsulas, pediu o jantar no aplicativo, pediu ao entregador que subisse ao seu andar. Recolheu o seu pedido sem checar. Comeu sem notar o erro da encomenda: o acréscimo do bacon foi esquecido. Tragou a fumaça de seu pod, enquanto aspirava a fuligem da sacada. Resolveu por beber aquela garrafa de cerveja enquanto esperava o celular carregar. 

Mais quatro horas deslizando os dedos numa tela quente, o celular preso ao cabo, o cabo preso ao carregador, o carregador preso à parede. Na tela: as conquistas dos amigos, o novo hit do verão, a promoção, as plásticas, os efeitos, os defeitos, a prática física, a auto aceitação. Comprou dez camisetas de ginástica e uma cinta modeladora de alta compressão. No aplicativo de namoro, marcou um encontro para o final de semana. Caiu no sono já na madrugada.

Ela acordou com o despertador às 06h15min, sonolenta. Levantou-se como sempre se levanta, despiu-se do pijama, sem notar que esta é a 23ª quarta-feira seguida de um loop temporal.

domingo, 15 de setembro de 2024

O amor não é para amadores

  Não se ama lá muito bem de primeira… as tentativas talvez sejam o que chamamos de paixões. É a paixão a tentativa de comprimir o amor da vida inteira numa só pequena pílula. A paixão é aquela coisa corrida e perigosa que se abre num domingo e leva Romeu e Julieta para os braços da morte numa quarta-feira. 

 A paixão é uma cópia mal sucedida porque amputa o amor de muitas formas e, sem piedade, não o faz com anestesia! Amputa-lhe o apuramento, o processo delicado da mesmice, da rotina, do tédio, da calmaria, do envelhecer, de seus sutis altos e baixos, comprime-o a um tamanho ínfimo de sua mais elevada e mais baixa parte. Tão ínfimo… mas tão intenso e viciante, que muitos de seus sobreviventes são como os drogados que perambulam nas ruas, capazes de se comprometerem à vilania, só para satisfazerem o desejo de receberem da paixão mais um bocado. 

 E perambulam, até mesmo quando cientes de que uma paixão bem sucedida tem consequências tais como a dose mais letal do mais letal dos venenos. Ao final da paixão, sobra-lhes o trauma, o ódio e o ressentimento.

 O amor, por outro lado, guarda em si tudo que é belo e trágico da poesia. É mais que um breve sentido, o amor é um reconhecimento do carinho e do afeto. É ele singelo e simples, como o caminhar tranquilo do idoso, é o leme pacífico em meio às ondas agitadas e o racionar da água em meio ao deserto. 

O amor nunca é bem-sucedido, porque nunca será ele mal sucedido. Assim é que se o reconhece. É o material entregue à maestria de um experiente artesão, que mesmo no que lhe parece defeituoso, encontra ali uma saída criativa. Apara suas arestas, limpa e contorna o intrincado trabalho, usa suas peças como elas estão, entalha ali o que se cabe entalhar.

Cada amor é único e especial, e mesmo que dure pouco, que não consagre a união de suas partes, que seja só, o artesão que o recebe faz dele aquilo que dura no peito eternamente com a dignidade finita da nostalgia. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Em 2004

 A vida tinha cheiro de plástico e tutti-frutti e os carros eram naves espaciais que me levavam de um planeta para outro. Era tudo pop music, glitter e tons de rosa. O mundo era mais encantado com meu discman lotado de adesivos de caderno Tilibra. Eu me imaginava como equilibrista entre os fios elétricos e escorregava nos grandiosos tapetes de grama do Mato Grosso do Sul. Mergulhava profundo no Rio Paraná. No caminho para Minas Gerais, via as montanhas e cumes surgirem ao longe. Eu imaginava gigantes adormecidos em cobertas de rocha e a história de uma grande civilização mágica, adormecida por encantamentos. E o enjoo da viagem era ludibriado pelo encantador mundo da imaginação da janela do carro.

O mundo era muito maior e mais cheio de possibilidades e as pessoas muito mais distintas. Os dias quentes eram calorosos abraços de mãe e os dias frios cheios de mistério e canecas de chocolate quente. As gotas de chuva não significam resfriado, mas poças de lama em que eu podia pular. Eu queria muito mais janelas de carro, janelas de ônibus e janelas de avião. Mas logo findavam as férias... e era hora de contar as travessuras aos colegas da classe: antigos ou novos.

A energia ao acordar era potente. Eu estava pronta para explorar o grandioso universo, descobrir o quanto mais rápido poderia correr, pular, ler, e subir ainda mais alto na árvore da casa da minha avó Marlene. Quando eu subia nos muros dos vizinhos, ali era o topo do mundo. Mas eu queria mesmo é ir mais e mais alto na estante de livros. O mais difícil de alcançar era o mais curioso de se ler! Ao abrir um livro, cada página era um mistério que eu estava disposta a descobrir, enquanto comia granulado e intercalava entre segurar os doces e a lanterna para prosseguir na aventura.

Os cristais e incensos na casa da minha vó Iolanda me faziam sentir os ventos do mundo indiano; o retrato do Taj Mahal não era um mausoléu, mas uma bela história de amor num castelo... mas o que eu queria mesmo era apostar corrida naquela longa piscina até os portões do palácio dos reis apaixonados.

O mundo da criança é muito particular. Mesmo quando esse cristal era rachado pela violência dos adultos, ele logo era decorado com flores e rosas feitas com giz de cera. Cada segundo da infância foi vivido intensamente, mente e corpo totalmente presentes, então o momento ruim era sobreposto pelo momento bom com muito mais graciosidade que os dias adultos. Mesmo assim, eu resguardava alguns desses momentos para contemplar o futuro.

Eu sabia que cresceria... além de já ter notado que as pernas ficavam mais longas e rápidas e ágeis a cada ano, já haviam me alertado que não eram só os joelhos que mudavam de lugar. Sim, eu já sabia que a maior dificuldade da vida não seria a tabuada ou as dores chatas do crescimento, eu já me escrevia cartas para o futuro, e nelas, já anotava rascunhos do meu testamento. Eu sabia que 2004 morreria, e com ele, quem eu era naqueles dias de massinha de modelar e lápis faber-castell. 

Sigo até hoje os desejos que deixei testamentados, apesar dos joelhos estarem mais longe do chão: dançar bastante, amar os cachorros, ser mais forte que os meninos e nunca, promessa de dedo, deixar de brincar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Quem fica no chão não sobe nos ares

   A máxima expressão da poesia de seu cotidiano era acenar um sutil adeus pelo reflexo do espelho, sentindo o gosto de pasta dental.

  Sonolento, caminhando pela estação, refletiu sobre as longas horas de viagem que o aguardavam, sobre os sete dias da semana, sobre os trinta dias do mês e o ano bissexto. E este era o máximo de imaginação para aquele habitante do momento presente.

  Mais uma manhã de segunda-feira a caminho do trabalho. Mais um passo seguido de outro passo. Mais um chiclete colado no chão. Mais um som de tosse, o agudo daquele mesmo assovio de sempre e um crescente odor de poluição - o máximo de sua percepção.

  Muitas pernas, braços, gritos, empurrões, muitos perdões rápidos e frouxos pelos empurrões, o ritmo dos passos se aceleram, freiam, cessam, disparam - o máximo da desordem.

  Um suicida atrapalha o tráfego, uma nova bomba no jornal, mais uma criança desaparecida - o máximo da novidade. Agora, o bilhete é eletrônico. O auge da tecnologia!

  Entrou no vagão, abraçou sua maleta, protegeu seus bens, no máximo do afeto. E olhou para frente, buscando seu lugar, com o mesmo vazio, com a mesma prudência, com o máximo de sua filosofia.

 Mas. No entanto. Todavia. Eis que os sentidos o alertam para um raríssimo advérbio de contraste!

 Uma névoa conhecida tocou suas narinas, fazendo com que se recordasse dos tempos do cigarro de canela, e guiaram seus enferrujados olhos até ela. Reconheceu uma figura nostálgica e esguia dançando por entre as figuras do vagão lotado. Era aquela garota que cruzava o corredor da escola com pressa, todas as manhãs, para esconder o maço de cigarros em um reboco da parede do urinol. Que atrapalhava seu mijo, que contava histórias de terror e noites reviradas enquanto fumava, escondida, na podridão do banheiro masculino. A garota que atraia amigos até sua casa, desde que virara sua vizinha. Que te pedia açúcar pelo muro, que o fazia dividir o refrigerante no intervalo das aulas. Que o provocava pela janela da sala de aula, que desenhava corações num caderno e lhe mostrava. A garota que usava camisetas estampadas e coturnos frouxos. A garota que passava muitas noites de sexta bebendo de garrafas em frente à sua casa, cantando com os mais variados conjuntos de tribos. A olhava e sentia um sorriso. Gargalhou quando ela o acordou, naquela única vez, de madrugada para lhe ceder abrigo, o mesmo dia em que ouviu os gritos dos pais enquanto a tomou num rápido e choroso abraço. Sentiu com a ponta dos dedos a carne macia e os ossos. Mas logo foi ela, pulando a janela e voltando para casa...

Era a garota que usava saias curtas, mas se esquecia de cruzar as pernas, quando se sentava na varanda lendo livros, ou quando tentava e tentava aprender os acordes de uma guitarra azul e desafinada. A garota que desapareceu da casa da frente, tão misteriosamente quanto chegou, antes que ele pudesse definir com precisão o tom de seus olhos. No dia da mudança, ela o encarou por um instante, pareciam castanhos.

Aquela garota, uma década depois, entra no vagão do trem e senta-se naquele mesmo banco em que ele se acostumou a sentar nos últimos anos. Ela mirou os olhos em sua direção, olhos definitivamente castanhos, e sorriu.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Poetria XXXIV

Fantasio devorar a vida toda, teu renome, num só instante

Grandiosa fome! É meu pecado, é a gula de querê-la toda viver

É esta ânsia de saboreá-la ainda nos dentes, num só rompante

Mas de ingrediente indecente, esgota-se antes que eu a possa comer.


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Teste de personalidade e suicídio

 Adoro testes de personalidade. Nunca soube bem responder o porquê disso, mas recentemente refleti sobre a questão... Notei que gosto de saber como sou, seja para saber se minhas características positivas são realmente benéficas para as pessoas a minha volta, seja para que eu possa me corrigir no que prejudica a mim mesma ou as pessoas a minha volta. 

Os testes de personalidade não são tudo, eles desembocam para a neurociência, psicologia e filosofia com bastante frequência, nos meus raciocínios. Tenho uma curiosidade imensa pelo meu existir nesse mundo, como também uma vontade maior de viver nele.

Não faço esses testes e simplesmente abraço o resultado, realmente paro para pensar sobre a vida, e não me conformo em constatar, simplesmente, se estou apta a uma aceitação social. É além disso, é saber se estou de fato aprimorando quem eu sou ou mesmo de descobrir quem quero ser. Melhorar quem quero ser é uma dessas motivações escondidas no reino do meu subconsciente e, com os anos, vim a alçando para a superfície, para o campo do meu saber, para a luz da razão. 

O Carl Jung disse certa vez que se a gente não torna o inconsciente em consciente, o inconsciente dirige nossa vida de tal modo que o denominamos de destino. E acrescento: o caos da mente humana e dos contextos da vida, as nossas motivações internas variam descontroladamente. Uma dessas minhas motivações inconscientes é melhorar quem eu quero ser e ter uma boa vida, mas imagine só se eu não as conhecesse bem e fosse jogada para um contexto em que "melhorar o que quero ser" significasse uma cirurgia plástica e a "boa vida" significasse usufruir unicamente dos prazeres passageiros, talvez eu me encontrasse profundamente infeliz, mesmo indo em direção aos meus objetivos, como tantas vezes fiz.

Trazer as coisas inconscientes para a luz da razão, para mim, atualmente, significa conceitua-las, defini-las e então trilhar um caminho em direção ao que defini criteriosamente - mesmo que o caminho se dissolva diante dos meus olhos, (re)traço a rota - não temo tanto assim o progresso.

Notei também que meu objetivo em melhorar a mim mesma não tem a ver com o dinheiro, necessariamente, mas busco desenvolver habilidades para ter uma boa vida (enquanto ela durar), e prolongá-la pelo tempo que der. Quando notei isso, refleti severamente se compensa buscar ser feliz num mundo injusto e cruel como é o nosso. Demorei para chegar a boas referências, mas cheguei: encontrei Sócrates, Epícuro, Cícero, a cidade de Platão, Marco Aurélio, Kant, Voltaire, Montaigne, Gibran, Camus, encontrei também tantas boas pesquisas e divulgadores científicos, como Pinker, Haidt, que convergem com pensadores antiguíssimos que, nunca, jamais, sonhariam com a existência do "Google".


Mas houve um intervalo de tempo entre meus questionamentos e o encontro dessas referências, porque olhei para o mim mesma e encontrei também o mundo. Sem bons guias, me encontrei num período longo de infelicidade e ansiedade, em que não vi sentido em fazer testes de personalidade ou de melhorar a mim mesma. Não vi sentido na minha vida, porque nenhuma vida humana tem sentido outro que não seja a morte.

É como se eu estivesse numa fila de abate gigante, como se eu já fosse um fantasma navegando entre fantasmas. Perdi tantas noites de sono, sucumbi ao pânico tantas vezes que achei que enlouqueceria, utilizei do álcool para me ajudar a esquecer que vida não tinha sentido algum, era o mais próximo de um medicamento que meu salário poderia alcançar. E eu pensava comigo que um terapeuta não entenderia que não se tratava de uma depressão: era só a minha constatação da realidade!

Por qual motivo me conhecer se vou morrer? Por qual razão lutar se toda batalha é, num contexto maior, perdida? Que inútil é dançar sozinha no meu quarto, pintar quadros ou experimentar a aquarela num mundo tomado por inteligências artificiais. Inútil! Escrever poesia quando o ChatGPT as faz em 3 segundos é uma piada. É ridículo ler  histórias de uma humanidade decadente, sentir por garranchos que meu cérebro traduz como letras, usar a empatia para me pôr no lugar de um outro qualquer que era também fantasma, chorar com as músicas produtos de um capitalismo voraz, comer algo industrializado para alimentar a carne podre que envolve os ossos, correr na rua dessa cidade degradada, pobre, de terceiro mundo, sentir o vento quente do calor interiorano do Mato Grosso do Sul numa pele em decomposição, rir genuinamente (que é produzir ruídos enquanto batia os dentes), buscar um emprego que, como todos, seria drenante escravocata, para sustentar nada que leva ao nada, estudar para a aliviar uma curiosidade de uma mente corroída, frugal, passageira - tudo me era um completo absurdo, então me compensava reduzir as expectativas, matar aquela curiosidade infantil, as alegrias, silenciar tudo dentro de mim (um fantasma), para que eu não permitisse que a morte me levasse nada (como se ela fosse ligar!). 

Yves de La Taille escreveu que Camus tem razão quando observou que o suicídio é o problema filosófico mais importante para a humanidade. Tal ato, pela negação, demonstra que o sentido da vida é o mais urgente dos temas humanos - sem um sentido, o homem não vive (quanto mais uma Aline!). Camus me ajudou na busca desse sentido quando escreveu, em seu Mito de Sísifo: "Será preciso morrer voluntariamente, ou pode-se ter esperança apesar de tudo?" (p. 20). 

O Camus compreendia que, após despertarmos para vida, para sua complexidade, sua falta de sentido, viria, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. E eu verifiquei que eu mesma estive nessa encruzilhada, só que meus passos estavam rumo ao caminho do suicídio. Apesar de não estar factualmente suicida, por ter um medo desesperador da morte, eu estava estimulando um futuro suicídio através do autoabandono... Pois é... foi uma época em que acolhi comportamentos autodestrutivos de propósito. 

Mas ainda assim, quando deitada na cama, o meu corpo liberava adrenalina, as palmas das mãos frias, os pés frios, o suor, a mandíbula rígida, a nuca quente: eu sentia um grande pavor. Entreguei à morte tudo, mas ela não me levou o medo!

Eu ouvi aquele medo, nele havia um sentido de esperança. A minha natureza tem o intento de viver, a minha natureza sou eu, e eu, meu medo, minha natureza, abri Cartas à Meneceu e Epícuro falou ao meu ouvido que eu não deveria temer a morte enquanto ela não acontecesse. E dele, li os antigos, eles me ensinaram o que pode ser vida boa, Aristóteles com sua matemática-lógica sacrificou dias de sua vida em prol de seu amor à vida e os repassou a seu filho, Marco Aurélio me inspirou coragem em suas confissões, Kant me inspirou a ética, e me reconheci como parte da humanidade, Gibran me inspirou a amar religiosamente o próximo, mesmo ante meu ceticismo, e Camus me demonstrou que a vida é absurda, que nada, de fato, faz sentido, como tudo, e que ser triste, de fato, é absurdo... então, por que não ser, ao invés disso, feliz?

E assim voltei aos meus testes de personalidade.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Sfumato

O grande pintor observou teu perfil
e tanto amor por tua musa sentiu
que buscou o espaço de contorno
em vão, do amor que lhe investiu.

Eras tu, pois, tudo ao vosso entorno!
Estudou-te, maravilhado!
O gradiente de teus cílios louros
evapora no cenário a ti ornado.

E és tu fundida a tudo de duradouro.
É bela a transição suave entre teu olho
à arte, à natureza, aos encantos e teus tesouros.

Fez a musa livrar o artista dos próprios antolhos.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

O exilado poeta

Sócrates a me reprimir
Disse, nas letras de Platão:
Que meus belos escritos
A ninguém fazem rir,
São teatro, enganação,
Que entorto as palavras retas,
Que inverto todas as setas,
Altero em tudo a direção.
Ah, coloco-o à indisposição,
Como é importante a verdade!
Mas a tenho por diversão.
Quereis ouvir com acuidade
Minha pomposa contestação?
Ora, pois preste-se à atenção:
Debaixo do chão que os enterra
A poesia buscarão em vão!
Desde a caverna, das mesas das tabernas
Aos impressos, ei-la viva, em vossa oposição.
E mesmo que se construam cidades à beça,
e farão frequente sua demolição,
Há sempre de morrer um poeta,
A Poesia não!

sábado, 15 de junho de 2024

Conversa terminal

 Aproximei-me da maca. Ela parecia tão doente ali... mesmo assim ela sorriu. Sentei-me ao seu lado e segurei sua mão fina e gelada, ouvi seu respirar tortuoso. "E ontem ela estava tão bem", pensei comigo.

- Para quem diz que não é possível fazer duas coisas ao mesmo tempo, como estar ocupado e aproveitando a vida - ela disse com a voz frágil - sou a contraprova. Antes de você chegar, finalizei meu testamento. 

Mostrou-me um papel escrito "tEsTaMeNtOoOo" e o desenho de uma caveira esquisita feita com giz de cera rosa.

- Me inclua nessa contraprova. - ri - Você acabou de me fazer sentir duas coisas ao mesmo tempo.

Ela enxugou meu rosto.

- No meu velório, quero que sirvam bolo de chocolate.

- Acrescentarei brigadeiros.

- Que toquem samba.

- E também heavy metal.

- Bom... você pode usar a lista que deixei anotada tocando bem alto. Pode incomodar os vizinhos.

Ela me entregou uma folha de papel.

- Acho que os vizinhos estarão todos lá.

- Eu não conseguirei impedi-los - disse em tom sarcástico.

Nós rimos.

- Nunca mais conseguirei ser feliz sem você.

- Conseguirá, sim. Eu é que não conseguirei... Por outro lado, não sentirei mais toda essa dor, o que é uma vantagem.

- Não quero que você parta. - ela apertou a mão enquanto afrouxei a minha.

- Eu sempre disse nos velórios que os mortos ficam vivos nos corações dos vivos, como é esquisito dizer isso de mim mesma para você. Mas faço questão desse clichê. Obrigada por ficar aqui todos esses dias, habitarei os próximos no seu peito e assim retribuirei a sua companhia... A vida é tão solitária sem boa companhia.

Uma enfermeira entediada entrou na sala, informou que a agulha doeria, injetou o líquido viscoso e saiu com o silêncio da dor.

- A companhia das enfermeiras inclusive nos dá mais solidão, não acha? Elas só aparecem com más notícias ultimamente.

- Não puna o mensageiro. Elas sempre foram mais honestas que os meus amigos... menos você. Você foi aprendendo sobre a honestidade.

- É que antes de ser honesta com você, tive de ter honestidade comigo.

- A honestidade é um remédio amargo... mas não tão amargo quanto os que estão circulando nas minhas veias.

Um médico aproximou-se da porta, em meio sorriso, e perguntou, indiferente, se estava tudo bem, partindo logo após um OK.

- É estranhamente libertador poder falar com você em panos tão limpos... Com você percebi o quanto do mundo é produto da falsidade da boa educação.

- A boa educação serve para nos poupar tempo dos conflitos... Só depois de muito tempo é que percebemos que ela ocupou nosso tempo inteiro... E a percepção vem pelo contraste, quando finalmente ficamos nus. 

- A vida só começa a acontecer quando voltamos a ser honestos, mas tem algumas honestidades que poderiam ficar escondidas.

- Podemos fazer tudo isso com muito amor, mas é preciso coragem para abrir o peito para o mundo.

- Como amarei depois de você? Fico refletindo... acho que amarei mais as pessoas que odeio. Você me fez aprender a dizer que amo e isso me fez amar a mim.

- Eu concluí que amor é um nó que está atado na garganta de todo mundo. E que bobagem de nó! Encarando a morte é que o desatei... e o que quero é você ame o mundo como eu amaria se pudesse ficar mais... e assim você será feliz duas vezes, por mim e por você.

- A minha felicidade é tão difícil...

- Quem acha a felicidade fácil é porque viveu pouco. Quem acha a felicidade impossível, também.


No dia seguinte, eu estava lá sendo a contraprova, novamente, ouvindo samba e depois heavy metal, comendo bolo e brigadeiros, rindo e chorando, honestamente, na companhia daqueles insuportáveis vizinhos.


domingo, 9 de junho de 2024

Poente

 Ando sentindo pouco ou quase nada. 

Descobri que vida é assim: parada. Sofri a angústia da descoberta, feito adolescente que da infância se desperta, até que envelheci. E como são melhores as águas calmas que as turbulências em que vivi! 

Quanto mais se sente, mais se sente, e a cada voo alçado em sua potencialidade, com menos se contenta o sentimento, pior se lida com a gravidade.

 Descobri que preferimos a dor ao tédio. Que queremos mais do ritmo da existência, mais de tudo o que há de anestésico, uma vida à la carte, sem percebermos que a placidez é sua maior parte.

 O tempo passa vagaroso quando se vive a vida, como um caminhar de um idoso e passa muito depressa quando dela se refugia, como a criança que desafia suas pernas recém-descobertas.

 A vida não se evapora mais rápido ao meu envelhecer, o sol sempre nasceu, depois vai se acomodando no horizonte, no conhecido poente do meu entardecer.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Poetria XXXIII

Esperei muito de ti, vida

Com esse teu silêncio vil!

Atentei tanto minha aurícula

Nenhum som tua voz emitiu.


Mas este meu ouvido te ouviu

Mesmo ante tua vacuidade

gestei uma tão grande vaidade!

E minha insanidade viu teu sorriso elastecendo


Mas vida, foste tu toda acontecendo

como é de teu costume acontecer

alheia a tudo, indiferente, sem a nada ver


E a viver, contemplei o engano, não persisti

não prometes, não choras e nunca sorri

vida, esperei muito de ti.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

O que minhas leituras me ensinaram sobre o amor

 Carl Sagan, cientista, investigador do cosmos e contemplador da finitude da vida, entendeu que para "pequenas criaturas como nós, a vastidão é suportável somente através do amor". Um poema belíssimo de Thompson conta que o medo não sabe fugir como o amor sabe perseguir. Parafraseando-o: se o amor não o encontrou, ele ainda o encontrará, mesmo que o desarrazoado medo de ser amado tente o afastar dele. O amor seria como um navio à deriva, pronto a ser atracado... E penso que o medo, talvez, não passe daquele frio que Aquiles deve ter sentido ao encontrar seu destino em sua vida curta e gloriosa.

O amor é natural como tantas outras emoções e ele te alcança, mesmo nas horas mais inoportunas, talvez por isso tenham tentado, a tanto custo, civilizá-lo. A humanidade tem essa relação de ioiô com o sentimento e, inoportunamente, ele sobreviveu muitas intempéries históricas, ao seco utilitarismo e às regras morais de ingênuos homens, ganhando um fôlego todo renovado no romantismo. 

 Mas deixe-me retroceder um tanto: antes das bibliotecas burguesas fartas de amores ou das pesadas Bíblias latinas que direcionavam os corações para o céu cristão, o amor já era fruto da curiosidade humana. Ele já era parte dos mitos fundadores da terra. Sim, ele já penetrava os corações de Eurídice e Orfeu. Antes do Éden, entrelaçou Enllil à Ninlil, que decoraram a noite com o fruto de seu amor: a prateada lua. O amor caminhava naqueles tempos em que os deuses pisavam na terra, com os homens, talvez antes do fogo e correntes de Prometeu.

Sócrates, conta Platão, num tal banquete, disse ter aprendido sobre o amor com Diotima. Tantos são os pecados ligados às mulheres nas histórias antigas, que achei belíssimo me deparar com os ensinamentos de Diotima sobre um assunto tão antagonista às atribuições femininas nos relatos históricos: o amor. Ela o ensina que o amor é como uma escada, os primeiros degraus são puramente materiais, como a beleza do corpo físico, mas seu mais alto degrau é a percepção da beleza em si própria. Qual não foram os olhos de Sócrates ao beber desse saber! Será que foram de amor à sua sabedoria e beleza? Quem sabe...

Quem sabe quando ou o quanto se ama? Como se diferencia as sinapses cerebrais, a química da dopamina e serotonina que representa o amor? De Sócrates, aos burgueses, para cá, o amor ganhou diversas interpretações. Rumi, ao dançar rodopiando sozinho, percebeu que assim como a Terra nunca gira no mesmo lugar, o poeta também ciranda uma estrela imaginária no reino da imaginação. E ali, no ponto mais alto da contemplação, admira o amor, o poeta.

O amor é fogo que arde sem se ver, a ferida que dói e não se sente, nos dizeres de Camões. Ele é intenso, sensual e instantâneo, dizem uns. Ele é o peso do mar que nos golpeia, como refletiu Garcilaso, ele nunca acaba, a tudo suporta, dizem outros. É visível nos olhos de Florbela, que nunca mentem. O amor habitaria o destino, estaria ali mesmo quando os amantes não passavam de palavras silenciosas sobre os lábios trêmulos da vida, como pensava Gibran.

O amor, parece, foi ficando mais rápido, mais fluído, mais livre, a ponto de confundi-lo com os dissabores do desejo. Quando o fascínio e a rendição de José Ortega y Gasset se acabam, caracteriza-o como a trivial paixão, e tenta-se de novo, de novo e novamente, como se a subir num carrossel para se tontear até a saída triunfal!

Vinícius de Moraes viveu seus dias de poeta nesse carrossel, à procura do amor, do romance, da alma gêmea, do ideal em que os poetas cirandam. Terá ele o encontrado passando pela praia de Ipanema e o anotado no papel ao invés de agarrá-lo? Talvez o poeta tenha encontrado o amor algumas vezes na vida, riu seu riso, derramou seu pranto, e descobriu na solidão, fim de quem ama, que o amor não é imortal, mas infinito enquanto dura.

 O amor pode ter mais de um semblante, e dividir o peito em vários pedaços, como os olhos de Alvarenga Peixoto iam de Jônia à Nise, mas se faz do peito um imenso braseiro que transforma em cinzas tudo que existe de ruim, como fez na alma de Gibran, trata-se do abençoado fogo do amor, ou de um bom poema?

 Bom... mesmo que amor tenha algumas faces na vida, como distinguí-lo do ardor da paixão fatal, geradora da loucura e do desejo de Alceu Wamosy? A que ponto estamos na escada de Diotima? Quem sabe a resposta esteja em Cícero, para quem o amor verdadeiro é aquele que o torna mais generoso, altruísta e mais atento aos problemas humanos. Mas se o que sente o torna mais egoísta e isolado, não amas. Nem ama ninguém que assim o faça!

domingo, 26 de maio de 2024

Lusco-fuscos

  Desde muito cedo entendemos que é preciso podar certas partes de nossos "eus" para sermos aceitos, amados ou ao menos não odiados por nossas famílias, amigos, sociedade. Nos escondemos por tantos anos que nos sentimos confusos no labirinto de espelhos de nossas próprias almas. Quem somos nós naquele reflexo?
  Por termos nossas personalidades moldadas a cada encontro humano, pensamos que nosso "verdadeiro lado" se refere tão somente aos nossos defeitos e que não há qualquer coisa que esteja guardada, que se possa identificar como qualidade. 
  Temos aquela crença traiçoeira que, se algo é escondido, logo é necessariamente ruim, porque bom é aquilo que pode ser exposto e apreciado. Mas o mar não é feito tão somente de sua superfície, a beleza das águas não jaz nos reflexos luminosos do sol sob suas ondas. O dia claro não é mais belo que a misteriosa escuridão da noite, ele só nos parece mais seguro. Um teatro é feito de roteiros escritos por trás do tablado, ele é aplaudido ao gosto da plateia. O que é evidente é somente uma parte de um todo.
  Sim, muitas vezes quando dançamos no baile da vida usando máscaras nos sentimos maus atores. Mas as máscaras são nossa escolha, elas sempre trazem consigo nossos mistérios, elas são a sombra do sol ao meio-dia. Toda sombra tem algo da treva. A máscara pode ser o disfarce do nosso medo, da nossa intolerância, da nossa tristeza, como também da nossa felicidade, do nosso amor, do carinho. As trevas são compostas, também, do que é bom e belo.
  Não somos só a ausência da luz, nem mesmo o profundo do oceano. Somos, também, aquilo que se está a vista.
  Nunca, em lugar nenhum, somos nós mesmos por completo: não há noite e dia, em suas totalidades, acontecendo ao mesmo tempo. Há um espectro de tons que se transpassa entre o entardecer e o anoitecer. O mar é a superfície que vai se misturando à profundidade. Sermos nós mesmos não é um ponto extremo, não é luz ou escuridão, está nos lugares em que mais partes nossas estão misturadas, como no lusco-fusco, quando as cores do céu estão entre laranja, rosa e cinza. E mesmo ali, sempre haverá um segredo.
  Só se vislumbra o todo na reflexão da solitude, quando se sabe o que o dia esconde da noite, o que as ondas significam para as fossas oceânicas. É ali que sabemos o quanto estamos sozinhos, o quanto somos nós, nós mesmos. E nós mesmos somos tudo, e nós mesmos somos, para nós, indivisíveis e únicos, mutáveis e irresignados. Nós mesmos somos duais e todo o degradê que compõe um extremo ao outro. Somos as águas que se encontram e se entrecruzam, somos nós os ventos quentes do verão que antes eram as ventanias frias do inverno. Nós somos os vilões que escondem o heroísmo e os heróis que escondem a vilania, aqueles que perdem o próprio controle para o amor, que perdem a máscara para o ódio.
  Quão complexos são nossos crepúsculos!

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Meu pensamento, privado de sua substância, retorna ao reino das sombras

Hoje eu pensei.... pensei uma coisa que já me esqueci.

Era sobre alguém? Não era... Pelo menos não exatamente.

Era sobre algo? Era. Existia? Teria nascido por mim?

Era uma cópia? 

O que era? Ou o que é?

Não perca tempo após gritar EUREKA!

Ideias fogem.

Quando o arco-íris pode ser capturado, ele deve ser capturado.

Deixar uma ideia pra depois é condená-la ao esquecimento.

Ela deve ser anotada. Ponto.

É a ideia o tipo de fruto que só amadurece depois de coletado.

Imediatamente, da forma em que vier, com letras tortas, rabiscos estranhos, nos cantos dos guardanapos.

Guarda-se a o fruto cru, como lecionou Schopenhauer.

Deve ser depois resgatado, preparado, temperado, cozido, decorado.

Depois é necessário deixá-lo descansar, sejam dias, meses, anos, até, para só então ser servido.

Não há ideia mais brilhante que a ideia crua! Não há trabalho mais formoso que o lapidar do fruto!

...

Mas, santo Deus, sobre o que é que eu pensava?!

sábado, 27 de abril de 2024

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Poetria XXX

Olho por entre as fendas das paredes

De angústia, rangem meus dentes

Cubro com força meus ouvidos...

mas nenhum ruído vem incomodar.


O silêncio e seu prenúncio:

Este mundo não vai desabar!

"Mas iria!" - e depois assumo:

 Não é por mim que irá se acabar


Desde que o mundo é mundo

um acaso inoportuno não o tira do lugar

Muito menos estes infortúnios da vida


Nada fugaz lhe agita, estou aqui só de ida

Mesmo assim, a toda tragédia ocorrida

Fico tola, a assombrar: o mundo irá se acabar!

terça-feira, 9 de abril de 2024

Efemeridades

  Nem tudo me é possível, mas expando o que me é provável. Assim venho me conhecendo: ao testar-me os gostos e desgostos. 

 Usei várias máscaras durante meu crescimento, queria me encaixar nos lugares que não me cabiam. E só soube que não me cabiam, através do rigor científico da experiência empírica.

  Descobri que não sou fria, muito menos misteriosa (como gostaria). Pelo contrário, gosto muito de conversar: não sobre o dia, mas sobre os dias. Também sou hipócrita, porque escrevendo percebo que gosto do que é fútil, pouco menos do que é filosófico. Danço sozinha no meu quarto e prefiro amar sem dizer que amo.

  Também notei que amo todas as pessoas, mesmo as cruéis, contanto que não sejam entediantes. Mas se me entediam, busco tirar delas algum proveito, e elas acabam por estimular meu ócio criativo. Gosto de despertar nos outros uma interrogação, sobre qualquer coisa, mesmo sobre o dia (que disse a pouco que desgosto, mas que gosto).

 Analiso os personagens da minha vida, os acontecimentos, tudo, como se sequer existissem fora da minha mente. Sempre estou mergulhada numa realidade fictícia, meio cá, meio lá, meio em nenhum lugar. Antes não pensava assim, mas hoje me acostumei com meus paradoxos.

 Gosto de bagunças interiores e espasmos de rebeldia. Gosto dos meus desenhos, principalmente aqueles feitos no ócio, com caneta BIC, nos cantos das folhas do caderno. Prefiro dormir tarde, o silêncio das madrugas é reconfortante, como nenhuma outra hora consegue ser.

 É de madrugada que passo batom por motivo nenhum e que escrevo poesia, em que as músicas fazem mais sentidos e em que as cores da aquarela estão mais vivas. É quando sinto a melhor companhia de todas "mins" que aqui habitam, e que se espalham nos meus multiversos metafísicos. E apesar de falar muito, disso não falo com ninguém. Só escrevo.

A vida adulta me furtou as madrugadas de solitude. Até agora, não sou tão avessa a esta fase, até porque flerto com o poder de escolher as ordens que seguirei, coisas que a adolescência nem a infância possuem. Mas sem as madrugadas livres, sem o ócio, fica difícil escrever tanto quanto preciso, então a minha escrita anda enferrujada. Para que não se enferruje de vez, precisava escrever algumas efemeridades, mesmo nesta madrugada. Estou descumprindo muitas regras e violando vários princípios enquanto estou aqui, digitando.

Boa noite.

terça-feira, 12 de março de 2024

O amor do místico na alma do cético

O amor exige do cético

o misticismo dos signos, 

a zetética da Ética

sem a qual é indigno


Exige da fé, da astrologia

o infinito da numerologia

do mito, da crença, da fantasia

da cegueira voluntária da ideologia


Exige sem aspiração imortal, só de ida

Amando, como tal, na própria vida

Esgotando amar no campo do possível


Com olhar clínico da expertise sensível

Aventura teórica que se inicia e finda

O amor é espírito que entre os átomos brinca.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Carnavalesco

Dança a baiana, o preto, o branquelo, a moderninha, o jacu e o pardo

Arrasta a sandália raspada, o tênis de marca, o pé pelado, o salto quebrado

Inspira o perfume lançado, a marola... Ih! grudou cerveja no solado!

Balança o cabelo vermelho, o grisalho, a careca branca, o encaracolado

Beija a boca bonita, a boca que era esquecida e o beiço do desdentado

Da Mônica, do Cebolinha, da Afrodite e do político cassado

Se enrosca nos abraços e afagos dos enamorados

Ah, espera o sol baixar, espera a lua, espera mais um bocado!

Encharca a boca d'água, volta melhor que ela seca no abadá rasgado.

E dança mais o gaúcho, o paulista e aquele Walter Mercado!

Dança você, feliz, do meu lado

Porque a festa nunca se acaba!... até o fim do feriado.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Prosaicologia I

Todo mundo ama igual, todo mundo sente o mesmo. É a mesma confusão em todo parte e em todo corpo. É a mesma ebulição em todos os nervos. 

Dura, cá ou lá, o mesmo tanto de tempo para que o peito entenda que aquela colisão de átomos não foi um mero curto-circuito. 

Quando se dá conta da explosão, já se houve explosão.

E há quem pense que foge, quando é um fugir sempre acorrentado.

E o coração de todo mundo bate na mesma arritmia. O sangue, do A+ ao O+ sobe e desce rápido em todas as veias. 

Todos os olhos apaixonados de todas as cabeças apaixonadas afiam a visão, e toda visão é de amor. 

Os sentidos troçam a intuição.

"É ele ali, cruzando a rua?"

Se já o vi há pouco em dez canais da televisão, se já o vi no alto da montanha, passeando com o cachorro, cuidando do jardim, se estava ao meu lado há um segundo atrás? Se já o vi em todo trajeto até aqui?

Mas é ele ali? É ele ali cruzando a rua?"

E os narizes se especializam na arte da osmologia. A nota do amor reside em cada perfume exposto da perfumaria, em cada flor do campo, flutua no éter, busca-o como a um fugitivo, quando ele nunca realmente descola das narinas.

Os ouvidos, deliriosos narcisistas ouvem em toda música o canto do amor, como se feita para si. 

Cada um de todos sente pelos poros que ali em seu coração bate um amor jamais visto, jamais sentido, jamais escrito. 

Mas o amor é um clichê sem contorno, esconde-se num enredo, parece ter bifurcações, mas é linha reta. 

Pode-se contá-lo dentro de um monastério, dentro de uma estação de trem, embaixo da ponte, em cima do castelo. 

Seja comedido, seja retribuído, proibido ou embriagado. 

Esteja a princesa no alto da torre ou a prostituta na zona boêmia. 

Dure ele o que durar. Dura-se um dia ou mesmo uma vida! Mesmo que essa vida dure um dia só. Ou que o amor se acabe ao raiar do sol.

Vira-se, revira-se, é ele, o mesmo autor de todas as histórias, das fábulas, das canções, das poesias, o maestro de todos os mesmos desfechos. 

Tamborila os pequenos dedos em suas flechas. Travesso, o amor é como criança inocente correndo feliz com uma tesoura. Sabe-se lá se vai doer! Sabe-se lá se cairá.