sábado, 25 de novembro de 2023

Aristóteles, Babadook e o que o pior pode nos ensinar

 Criados para reprimirmos todo tipo de sentimento ruim em busca de uma casta e santificada moral, para sermos como anjos na terra dos demônios: esses somos nós, os humanos. Os mesmos humanos criaram seus extremos de amor e de ódio. O demônio que ruge é o mesmo Deus que chora. Reflita comigo sobre isso, o mal não nos parece tão maior que o Deus que nos protege? É como se o mal fosse mais inato que o bem! E a afirmação da maligna natureza humana encontra uma suposta justificativa nas emoções humanas, vis, sádicas, perturbadas, impudicas e carnais. Agimos, internamente, como se estivessemos numa guerra de lado certo: o bem e tudo que é positivo e alegre contra tudo que é ruim e negativo. 

 Nosso lado obscuro, muitas vezes, parece maior do que realmente é talvez porque não o conheçamos direito. É um teatro de sombras! A que distância a figura está da chama? Só se sabe se se olha para ela.

O cinema do terror utiliza uma técnica de assombramento: cria-se um monstro que não é apresentado ao espectador, isso se justifica porque a imaginação cria algo pior do que a realidade pode apresentar. E quando o monstro aparece, a grandiosa expectativa pode ser frustrada, a suspensão voluntária da descrença acaba, o espectador volta ao mundo real. Fim. 

 Assim como no filme, agimos com o que nos é desconhecido, seja ao não ver a figura de Babadook ou ao evitar o lado maligno que habita a humanidade. Vou me conhecendo com as circunstâncias - e com elas, percebendo que meu controle emocional é maior do que as obscuridades que tanto temo de possuir. 

 Quando se remói o pior, de uma forma racional, cria-se a possibilidade, que até então não existia, de que aquele ciclo não se deve repetir. Remoer pode despertar uma raiva sadia, uma tristeza alarmante, um temor sagaz.

  A raiva é o combustível das mudanças difíceis, nos dá a potência da ação frente às situações que parecem imutáveis. Ela devora o medo e a tristeza com seus dentes pontiagudos e sua fome voraz, impondo um agir, um rasgar da fantasia da vítima. Nela, conhece-se o herói, a chama que cada humano possui - e o quanto ela pode brilhar!

  O medo é o amor paternalista do corpo pela sobrevivência. É o sinal para parar, para se recolher, para saber onde pisa, reavaliar as condições, buscar abrigo até que se consiga outra saída. É tão importante saber dar passos para trás quanto os passos para frente.

  E o remorso! O remorso! É importante ter uma boa dose de remorso da companhia que te faz mal, do mal que por você foi causado a alguém, da conduta que não se deve repetir ou mesmo da conduta que não se deve permitir, do contexto que se deve fugir. O remorso bem utilizado não te deixa esquecer, o remorso não te deixa repetir.

  A tristeza, a qual tanto fugimos, é fundamental. Ela gera um período de reflexão e reorganização mental importantíssimo. É uma fase poética em que os olhos enxergam o outro lado do mundo, aquele que parece escondido à plena vista. É o momento que pode ser dirigido para o crescimento intelectual e moral. A tristeza pode trazer a sensibilidade para o conhecimento e o amadurecimento da empatia. Ela pode ser tão bela e envolvente que há quem se apaixone por ela.

  E são todas essas emoções que se misturam que formam as cores da vida. É um baita clichê dizer que não se conhece a alegria sem se conhecer a tristeza. Mas há um erro cometido por nós, seres de sensações e emoções, o qual é o de vivenciarmos algumas delas no lugar das outras, que é o de sorrirmos quando querermos chorar, de dizermos sim quando ansiamos o não, de tentarmos conduzir a vida sob escolhas que não quisemos fazer, movidos por esse ideal angelical, de fugir de tudo que circunda o mais negativo das emoções.

 Aristóteles ensinou seu filho sobre justiça, sobre amor, sobre tanta coisa! E algo de muito valioso, também: o de viver as emoções no momento em que elas devem ser vividas. Não sofrer nos momentos que nos dão alegria, não reprimir a tristeza no momento em que ela deve ser sentida, e assim por diante. 

  E deixando de seguir o que cada emoção nos orienta a sentir, temendo o estigma do demônio que acompanha os pecados da nossa humanidade, o medo, a raiva, a tristeza, o remorso, estes não cessam a sua existência. Jung disse que cada emoção reprimida deixa seu estigma no comportamento, mesmo que de forma sigilosa. 

  E nisso resulta, talvez, nas explosões sentimentais que se dão após nós mesmos implantarmos várias minas no decorrer da vida. Mesmo as explosões devem ser respeitadas e analisadas. As explosões também nos alertam que talvez haja mais algum fio desencapado que exige prudência. Não tema a si ao ponto de se negligenciar.

 Foi o profeta de Gibran quem olhou para Orphalese e disse que o nosso pior não é mais baixo do que o mais baixo das atitudes da humanidade. Perceba: uma torre não é mais funda que mais alta, nosso pior é previsível e limitado, o nosso melhor, não. Podemos agir da melhor maneira nos piores contextos, improvisando uma melhoria que estava, até então, fora do baralho das possibilidades.

Conheça-te a ti mesmo: é a frase que estava há milhares de anos inscrita nos portões de Delphos, e o "ti" a ser conhecido envolve as piores emoções e seus limitados espectros. É por meio desse conhecimento que Sócrates caminhou pela busca da verdade. É o caminho aberto e desbravado por cada um que o queira o conhecer.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Felicidade genuína, bacon, Voltaire e labuta

  As pessoas buscam livros de autoajuda, mas não querem, de fato, ajuda. E geralmente esses livros não têm nada de autoajuda, mas de autofingimento: seja foda, como fingir ser confiante, fingir ser bom de oratória, fingir ser influente, fingir ser feliz - tudo por R$ 39,99. Mas assim como é perceptível para o bom observador a temperatura de uma cor numa pintura, é simples, para os olhos atentos, perceber as pessoas que estão fingindo esses valores das que realmente vivem esses valores.


  Se você busca aparentar valores com sucesso para alcançá-los genuinamente, o requisito mínimo é que você seja excelente ator, tipo vencedor de múltiplos Oscars, sabe? Um ator tão bom que seja hábil para encenar, para si mesmo, uma mentira. No entanto, se não dominas a arte desse teatro inalcançável, busque ajuda para realmente ser o que almeja. Toda busca por ajuda real é uma autoajuda. 

  Não conseguimos ser nada além do que já habita em nós. E o humano possui dentro de si uma enorme capacidade de bondade ou de maldade, de ferir, de curar, de ser feliz, como de não ser. A nossa natureza é também bondosa, agradável, cuidadosa, comunitária, mas nos esquecemos disso após tanto ouvirmos sobre a famosa "aptidão inata da humanidade para a crueldade, egoísmo e indiferença".

Venha cá, se o mundo fosse formado por essa vil comunidade de lobos humanos, penso se estaríamos na world wide web, com possibilidade de acessá-lá por muitos anos, com essa expectativa de vida aumentada... Sim, temos pessoas boas, observe as que você ama e que te amam, e observe também as  que mudaram a realidade humana para melhor.

 

 Aí você se pergunta, será que eu consigo me ajudar a ser melhor? Menos ruim? Menos tímido? Menos estressado? Menos ignorante? Se reparar bem, a felicidade é a finalidade última de todos esses quesitos. É claro que conseguimos melhorar e alcançar a felicidade. A condição é possuir os aparatos necessários para tanto, como cérebro, consciência, compreensão das suas limitações e uma força de vontade real para mudanças (no plural) que pode envolver a aceitação racional de alguma pílula.

  Com as ferramentas em mãos, entra a ação - daquela ação que sobrevive às intempéries. Aquela ação que envolve uma execução resiliente da melhora. E a execução resiliente da melhora só se dá com a execução resiliente da melhora. Esta frase pode parecer repetida e óbvia, mas quem vive a experiência humana sabe bem que, na prática, não pensamos assim. Pensamos que a resiliência é leve como uma pluma, feita de arco-íris, uma ponte naturalmente mágica entre a execução e a finalidade! Desconsideramos a necessidade do esforço e do uso da razão para a manutenção desse esforço, e cultivamos uma expectativa irreal de que a melhora cairá do céu após o primeiro mísero passo para fora da zona de conforto. Essa expectativa esperançosa pode até ser um bom almoço, mas é um mau jantar, como diria Francis Bacon.

 Não ficar idealizando que você será melhor num piscar de olhos, como nos filmes em que o vilão encontra a redenção após uma súbita empatia com relação ao mocinho, já é um bom começo. Isso porque espasmos de boas reações todos temos. Constância que é difícil! É difícil trabalhar em tantos valores e, portanto, é difícil ser feliz. E se tem algo essencialmente humano e útil na formação do nosso ser, essa é a Razão. É a razão que terá que ser usada quando os ânimos estiverem baixos e a jornada estiver te fazendo querer desistir. A felicidade é um estado de manutenção racional.

 Eu costumava pensar, e não devo estar sozinha nisso, que se felicidade fosse uma escolha ela deixava de ser genuína e, portanto, deixava de ser felicidade. Isso porque na infância, minha felicidade era assim, repentina! 

  Quando eu era criança, eu temia me tornar aquele tipo de adulto endurecido pela vida e pensava que manteria sempre meu estado de ânimo nas alturas serotoninérgicas. E eu também não precisava passar por metade dos dilemas morais que passo hoje. E a cada ano que passa é mais trabalhoso ser flexível e feliz.

 Depois que saímos da infância, a felicidade vem pela razão e cada vez mais com o passar dos anos e o baquear dos traumas. Perdemos o luxo dela vir sozinha, brotando de um cérebro não completamente desenvolvido e de uma vida inexperiente e envolta em magia. Buscar a felicidade, com os anos, vira uma tarefa muito prazerosa, porém difícil. A felicidade é um desses paradoxos que só a vida nos proporciona.

 Imagine só deixar de labutar pelo próprio sorriso e ceder aos inevitáveis conflitos, pressões de sociedades indiferentes a mim, a uma estética ilusória, modal? Imagine só deixar de ser feliz para aparentar felicidade tão somente para atender as expectativas alheias por um sorriso? Como Voltaire decidiu, eu decido, escolho ser feliz porque faz muito bem para a minha saúde.