quinta-feira, 28 de julho de 2022

Memorabilia

Eu costumava ter muita vontade de evoluir como ser humano. Queria exceder. Queria não ser ordinária. Queria ser diferente, inovadora, aventureira e queria ter sucesso nisso tudo. Eu queria muito. Mas cria que todas essas coisas aconteceriam comigo pela força do destino, da vontade divina ou do amor dos outros. Demorei... ainda tenho esse costume... de esperar que tudo seja validado, que eu receba as coisas de bandeja. Queria evoluir confortavelmente, sem críticas, sendo levada ao bel prazer do tempo ao sucesso do... seja lá o que O Destino havia me preparado. Cria que a vida seria não apenas boa, como perfeita e que o que eu passava era a parte imperfeita - um tijolo numa base feita à minha imagem e semelhança. Personalizada. Um filme. 

Eu levei uns safanões da vida. Fui chacoalhada em diversos campos: acadêmico, amoroso, profissional, familiar, mental, religioso. Creio que o chacoalho no campo religioso me foi muito duro, mas me ajudou a pensar que eu poderia ser quem quisesse ser, com a parte negativa de que as coisas deveriam ocorrer voluntariamente. Eu deveria, voluntariamente, tomar conta do que quer que fosse. Tomar minhas decisões com base em preceitos que eu poderia compor. E eu poderia roubar as ideias e filosofias de qualquer campo das ciências humanas para trilhar um caminho para um objetivo. Eu faria meu objetivo! Coloquei em mente um objetivo: uma vida dedicada a ajudar a humanidade. 

Mas ajudar a humanidade é tão estressante... foi isso que descobri. A humanidade não quer nem se ajudar! A humanidade é uma unidade que até te aprecia nuns relapsos aleatórios. Te aprecia para em seguida devorar, mastigar e cuspir a apreciação repetidas vezes ao dia - repetidas vezes por hora! Então mudei de ideia e tentei ser uma pessoa virtuosa. 

Culta e virtuosa: um novo Eu. Virtudes das mais altas virtudes. Virtudes angelicais, baseadas na filosofia do amor ao próximo, na empatia. Queria ser extremamente preocupada com os próximos, ser extremamente honesta, extremamente dedicada a uma vida de ajuda, acolhimento e doação. Nota-se que não consegui manter essas virtudes. Descobri não ter força para contribuir efetivamente, só tinha a dar opiniões. E opiniões que repetia como um papagaio. Dei muito murro em ponta de faca. Eu notei num desses murros que não queria (e nem quero) mais sofrer pela humanidade ou pelas virtudes absolutamente frustrantes da humanidade. Uma vida de doação é uma vida de sofrimento pelo sofrimento. É uma vida de frustração. É uma alegria ínfima que não compensa a rotina estressante.

Entre lucros e dividendos, escolhi um novo objetivo: uma vida interessante. Escolhi viver uma vida de experiências estimulante no máximo de estímulo que pudesse obter. Muito de muito e de tudo um pouco e do pouco o muito. Era eletrizante. Eletrizante. ELETRIZANTE! Muitos amigos, muitas festas, muitas bebidas, muitas danças, muitos dramas causados pelas bebidas nas festas dançantes com os muitos amigos. Dores nas costas, ansiedades e as conversas altas entre os sons graves de músicas que faziam o peito estourar. Eu ficava cansada, tão exausta no meio das eletrizantes "aventuras", que notei que não queria viver uma vida com objetivo de ter histórias para contar. Isso só não bastava. Eu queria ter uma história de evolução! De olhar para trás e notar que o que estivesse a frente seria muito melhor. 

Então passei a viver uma vida direcionada a ser adulta. Daquele tipo que faz planos, estratégias, traça rotas, organiza-se, checklist, checkpoint! Tornei-me apática. Afastada. Dedicada. Super-duper-hiper-mega ocupada. Sem tempo. Agora não. Depois. Fica para a próxima. Vou ver e te falo, ok? Imergi-me. Afoguei-me. E então me cansei pela solidão. Uma solidão extrema e triste. Uma solidão de não ter conexões reais com as pessoas. Uma falta saudosa da humanidade que me mastigava sem digerir, sabe? E retornei.

Agora as pessoas parecem tão eletrizantes! A humanidade à flor da pele, na adolescência. A humanidade que hiper estimula, hiper compara, hiper destrói, hiper compra, vende, lança, mostra, esconde, apaga, edita. Arrasta pra cima! É hipersensível, hiper hipnotizada e moldou-se a si num panóptico - que percebi fazer eu mesma parte. Sou o guarda, o construtor e o presidiário. Os olhos e o olhado.

E agora? Volto dois passos. Estou parada observando o panóptico que me observa e pensando: foda-se. Terei que pegar os estímulos elétricos do pouco e com eles formar uma rede. Afasto-me da solidão com boas doses de poucos e preciosos amigos. Mas vivo a solidão, ela é intrínseca à experiência humana, com todo sentimento de solidão e a tristeza que ela me provoca. Abraço a humanidade que me mastiga, doando amor quando me dá na telha. Amo quando amo e odeio quando odeio. E não interpreto as virtudes quando não me são úteis e só busco aquelas que mais me espelham. E não só faço coisas úteis, como inúteis. E me ocupo e desocupo, quando não há como deixar de me ocupar e quando não quero deixar de me ocupar. E ando entre as contradições como um equilibrista de circo - um daqueles iniciantes. E lá se vai o malabares...!


Aonde irei parar? O quê me importa?! Me importa o agora, olhando o que tenho, agradecendo o que tive, tendo saudade do que foi bom e aprendendo com o que foi ruim. Até porque o que resta caçar na ruindade é o aprendizado. Não insisto no que me foge do alcance. Controlo o que posso controlar - e quando posso, e quando quero. Produzo quando tenho que produzir e quando desejo produzir. E paro e relaxo quando desejo, quando posso. E isso me corta de muitas coisas da civilização. E esse é o preço que pago por não ligar para um teatro de vida e virtudes. E cá estou, catando o malabares do chão. Torcendo para ter encontrado o jeito correto de dançar no samba da existência, sabendo que não há jeito correto, enquanto brindo esse bom e velho e eterno paradoxo que é existir racionalmente.

Tim-tim.


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