sábado, 21 de maio de 2022

Vita brevis, ars longa

 Meus dias não costumam ser definidos por emoções. São definidos por estados com palavras terminadas em ditongos nasais terminados em "ão". Existem dias de criação, outros de absorção, uns de ação, e aqueles de interação.

  Nos dias de criação, que estão cada vez mais raros, por óbvio: crio. E a criação vem muito naturalmente. Veja-se: naturalmente, não facilmente. O que é natural não é necessariamente fácil. O simples é formado de muitos complexos!

  Nesses dias, os sentimentos me descem como enxurradas, entranhando-se nos meus órgãos, e tudo que é muito vão, de repente, inunda-se de significado. É tão profundo, que preciso retirar um tanto do excesso, senão me afogo. E como me afogo! Me afogo de águas velhas e novas, salgadas e doces. Dentro de mim há um estrondo! Períodos em que o rio e o mar dividem a mesma corrente. A água doce fazendo onda, e o mar, cachoeira. As águas cristalinas refletindo a luz, por baixo das profundas.
  
  Não sou eu que decido expelir tudo, são meus pulmões que exigem. Afinal, sua função intrínseca é respirar. Não sabem eles fazer outra coisa! É natural buscar o ar no afogamento. 
  
  E inconscientemente busco sobreviver - sempre com pouco sucesso. O que tenho é parco. Há dias de balde, de rodo ou de represa. Cada afogamento, um procedimento eficaz. Uma só ferramenta me é humanamente possível usar. O problema é que me aparecem todas no acesso da adrenalina. No desespero, o que escolher? Desenho, pinto, canto, componho, toco, escrevo, recito, manipulo, ensaio ou sapateio? E o que escoar será sério, como um drama, cômico ou trágico? Lógico ou subjetivo?
  
  Às vezes quero criar tudo de uma só vez! Sair das águas todas, tomar fôlego. Tão bom seria inspirar todo oxigênio disponível na atmosfera! Mas seria como retirar o oceano por um ralo... Santa impotência! Tenho duas mãos, um par de olhos estragados e um só cérebro que funciona sempre à meia-luz. Hipócrates, você estava certo, é tão curta a vida, e tão longa a arte! Há tanto a fazer! Tão pouco tempo quando há tanto! E na adrenalina do respirar, muitas vezes percebo ter me livrado de uma só gota. Um náufrago ainda afogado.

  Os de absorção, são dicotômicos. Fico aérea. É quando aprendo ou desaprendo. É quando assisto ou leio de forma alienada. É quando me entretenho de tudo que é fútil, mas também de tudo que é sagrado, de tudo que é profano, de tudo que é curioso, misterioso. Estou nos ares! Flutuo entre muitas áreas, sobrevoando todos os territórios. Longas revoadas, que nunca conseguem cobrir toda a extensão do conhecimento. 

  Absorvo por muito tempo, em silêncio. Pairando entre letras, suspensa ente as futilidades. Refletindo, balançando. Tanto a ver, tanto há para escutar! Inicia-se o voo e as correntes de vento me embalam. É prazeroso! E também frustrante. Uma corrente te leva a outra... quando se passa em ares rarefeitos, tremula-se até em ares condensados. Algumas altitudes são muito densas! Eu pulo em direção a grandes pressões , em outras ocasiões alço um voo ao chão. É gigantesca essa nossa atmosfera.

 Os dias de ação são ainda mais raros. É quando tudo sai do papel e se desentrelaça da mente. É chão firme. Terra dura. O problema é resolvido. Um passo de cada vez. A medida é tomada. O plano toma forma. O trabalho sujo é feito. Conheço esse solo! São dias muito adultos. Monta-se uma lista, inicia-se pelo difícil, por entre as pedras, finaliza-se pelo fácil, sentindo a firmeza do asfalto, quando a energia já quase se esgota. Apronta-se, arruma-se, ajeita-se. Um pé, e então outro pé. Cuidado... É tanto para aprontar, arrumar e ajeitar. Ao fim da trilha, sinto que termino tudo, sem conseguir terminar. Nunca tem ponto final, porque o horizonte nunca... nunca acaba. Perambulando pelo globo, há terra fértil, há terra seca, e é necessária grande experiência para saber onde compensa pisar. E nem sempre onde se pisa, se deve plantar. E nem sempre o que planta, compensa colher. É tempo de ter paciência às estações, e atenção à direção, pois não há como vagar ao mesmo tempo por toda rosa dos ventos.

  Os de interação são divertidos e também trágicos, isso à depender da companhia. Interajo. Discuto. Debato. Retruco. Rio, faço rir. Choro, me emociono. Me irrito, e acho que irrito um tanto, também. Me magoo, e acho que magoo também. Me traumatizo e traumatizo também. Faço o bem e faço o mal. E depende muito do ponto de vista. Sou fogueira e sou incêndio. E assim são todas as interações da vida. Não sei se me arrisquei entre labaredas, ou se iniciei alguma combustão. Se deveria seguir aquele facho, ou evitá-lo à todo custo. Devo manter esta chama acesa ou apagá-la de vez? Como me aquecer sem o fogo? Tomo um archote e levo as chamas comigo? Queimo-me até com isqueiros! Acendo velas que nunca assopro. E ardem em mim muitas chamas! Há interações que me causaram grande combustão, outras, uma fleuma. E algumas cultuo como a deuses, como faziam os antigos. Algumas queimei às cinzas, quando desejava aquecer. E... talvez, vice-versa. 

 O encontro de vogal e semivogal guiam meus dias. As letras que o antecede mudam a entonação, a palavra, seus significados. Muda-se tudo e ao mesmo tempo nada. É um ciclo que paradoxalmente não se repete, que rodopia no tempo, como a uma roda perdida. Ele vai girando e nunca sei muito bem pra qual rumo vai. Sua direção nem sempre é compreendida pelas leis físicas. Tem potência para subir uma colina ou para despencar de uma montanha.

Lá se vai minha roda da vida, e comigo dentro. Tonta, dentro do ciclo, da roda, da metáfora velha.

 
  

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