sábado, 28 de maio de 2022

Viva o suficiente

   Dizem "Olhe lá a masmorra da bruxa", "sumiu na floresta" - e dizem com festa.

  Acalme-se, vilã. A mocinha é que te colocou nesse posto. Cruzou seu caminho e atrapalhou seus objetivos, com aquela pureza infantilizada, em corpo de mulher adulta. Eu te digo, vilã, odeio as mocinhas. "Ah, mas são tão boazinhas!". Poupe-me. Sem elas, você não seria vilã, sem vilã, elas também não seriam mocinhas. As vilãs são as que mais me apetecem. Para mim, as mocinhas são seres bidimensionais. Têm a personalidade de uma folha de papel em branco. Ganharam o protagonismo por causa do chororô, e não do mérito. 

  No mundo encantado de suas cabecinhas ocas, as mocinhas assoviam com os pássaros, como se todos lhes devessem bondade. Sempre com aqueles olhos de cachorro abandonado. Mas não são elas cachorros - muito menos dos abandonados. Afastam-se de todos se minimamente contrariadas! Não percebem as enrascadas em que se colocam. Não ouvem de qualquer um a razão! 

  Para elas, o mundo é rosa e tem gosto de caramelo. Aceitam a tudo, sem questionarem. Uma ou outra até carrega um livro, mas não se vê sair da boca delas a filosofia de uma só página. Carregam, por carregarem. É parte de seu papel não ligar para os problemas do mundo. Parecem sensíveis, mas não são. São narcisistas não assumidas. Se a alguém servem, é para manter seu papel. 

  Todo sofrimento, para as boazinhas, é suportável, porque acham que o sofrimento lhes trás algum tipo de dignidade. Porque acham que o sofrimento lhes dá complexidade de caráter. E ganham afeto e carinho com seus olhinhos úmidos de lágrimas. "Ah, lá vai a mocinha, suportando os males da vida! Como sofre, tadinha!". 

  Quando o sofrimento aparece, sei que, por dentro, abrem um largo sorriso. É quando sentem ganhar mais camadas na personalidade. É quando recebem a dó e a pena, que para elas soa como gloriosos aplausos. HORA DE PROTAGONIZAR ALGO (em suas vidas ordinárias)! 

 É o desejo íntimo de toda mocinha: uma boa vilã. É o desejo de toda mocinha, limpar a casa com panos velhos, aos chutes, aos berros, esperando a salvação. Participariam de uma narrativa, e se bem chorada, de um espetáculo! Como seria bom, para essa novela, se o príncipe encantado a visse sofrer entre os trapos. Da dó, brotaria um amor. Um amor-dó. Que dó. Quanta pena! E casam-se em dois minutos. Não encontraram o amor da vida, encontraram a reviravolta da história!

 E se o príncipe não tiver defeitos, e se não houver alguém para odiá-la, se ela se entediar do céu que vive. Se não houver vilãs à vista, se desespera! Busca o sofrimento, busca a pena, busca a dó. Deprime-se, grandemente sem seu alimento diário, que não é pão de ló. E então passam a ver pequenos dissabores como grandiosas tragédias. Isso porque não há nada abaixo da bondade da mocinha. É oca, coitada.

  E quando a vida é entediante por muito tempo seguido, e não há vilãs por perto, nada sobra das mocinhas. E quando perdem a mocidade, e enterram o príncipe velho, e se perdem dos netos, e do cantar dos pássaros (que agora as irritam, e são seus vilões), e se cansam da masmorra de ouro que elas próprias construíram? Amarguram-se, e aí, somente aí, formam camadas.

 E seu castelo vira masmorra, e os vilões tornam-se as pequenas coisas, e as grandes coisas, seus arqui-inimigos. E então se enclausuram, e veem os problemas do mundo. O ar podre que as conduziu à monarquia, e os anos de servidão inútil pagos com pena. Despe-se de seu papel, como um queimado se livra das chamas. Ojeriza seus dias inconscientes. Comove-se com a miséria de sua simplicidade e como é patética sua biografia. E arrisca-se a ler, realmente ler, uma ou duas páginas dos livros que antes lhe serviam de estética. E ali aprende um ou dois feitiços. E encontra motivos para querer viver a vida que não viveu. "Acorda, princesa, a vida não é um glacê"! Rebela-se! Formula os próprios planos para tornar-se a verdadeira protagonista. 

E aí aparece uma mocinha, para estragar seus objetivos.



quarta-feira, 25 de maio de 2022

Quem costura o destino das Moiras?

     Houve um acidente cósmico, em tempos em que não havia tempo algum. E foi um complexo estranho e único de elementos que nos formou humanos, que nos tirou do habitat natural da inexistência e nos possibilitou experienciar a vida. Depois de percorrermos várias e várias fases de adaptação ao nosso entorno, de sobrevivermos aos ambientes mais hostis, conseguimos obter um cérebro capaz de compreender quem somos, de questionar o ambiente, de nos fazer descer das árvores. 

 

Criamos a linguagem para a sobrevivência, nos tornamos tribos, vilas, feudos e cidades. Aumentamos nossos tempos em vida, através da ciência, e para lidarmos com mais tantos anos, passamos a apreciar mais as artes, nos envolvemos nos mistérios de nossa formação. Notamos a morte, durante esse processo, e passamos a perguntar sobre os significados das coisas - e os demos aos montes!

 

Fomos adoradores do fogo - aquele fenômeno incrível que possibilitou nossa sobrevivência -, do sol e da lua, dançamos para chuva! Humanizando esses eventos naturais, tornando-os mágicos, tornando-os deuses, por não conseguirmos compreendê-los ao tempo. 


O responsável pela nossa criação era Prometeus, e quem nos recolhia à morte era Hades, uns teriam sido criados por Deus, outros por uma variedade de outras entidades. Viemos do barro, da água ou do fogo. O nosso destino costurado pelas moiras e, depois, traçados por Deus. Essas questões nos assolaram e por elas nos enfrentamos em guerras, cuja finalidade era o estabelecimento do(s) verdadeiro(s) Criador(es)! Os que mais dizimaram, conseguindo seguidores coagidos, venceram. Por uma ironia, nos desumanizamos e então humanizamos os fenômenos da natureza, colocando-os acima de nós mesmos, daqueles que amamos, e do instinto de preservação, que tanto nos alçou.

 

Olhamos para o céu, para os confins da terra, para nós mesmos. Chegamos as conclusões mais inesperadas. Nos disseminamos e tudo se tornou comum. Hoje essa linha histórica, traçada à normalidade pelos poderosos, é o confortável status quo. Seguir esse caminho anestesiante, nos distancia da incrível oportunidade de existirmos plenamente, visto que não nos enfrentamos, fugimos do confronto podando os nossos impulsos, porque não vemos a oportunidade no existir, um mar aberto, mas no póstumo.

 

É um grande pesar a posição em que nos colocamos até agora, de tentarmos encantar o que por si só, sem mágica, já é encantado. Nossas existências são ínfimas em meio ao infinito, e por isso tão grandiosas para nós. Somos um curto suspiro, parte de tudo, formados extraordinariamente nessa forma, nesse tempo, nesse espaço, uma única vez. É uma aventura, a vida, e para aproveitá-la, precisamos despertar enquanto ela for capaz de durar.


É fato que a busca pelo significado do experienciar levou a humanidade à crença no divino. Com o desenvolvimento da racionalidade humana, o homem perdeu a anestesiante segurança de viver, irracionalmente, no ciclo animal de sobrevivência, reprodução e morte. Essa perda levou muitas das sociedades, instintivamente, à procura de proteção a esse novo mundo desvelado pelo raciocínio. Curiosamente, assim como o engrandecimento da democracia e a consequente diminuição do Estado, lançou os seres sociais na busca de apoio no Judiciário!

Cada região passou a criar, a seu tempo, divindades que as acolhessem em suas particularidades regionais, em consonância com as questões que os assolavam, moldando-as à sua imagem e semelhança.

O ateísmo é a simples descrença nesse(s) líder(res) como seres divinos e não meramente históricos. Não há segredo ou paradoxo, pelo contrário, uma pessoa é ateísta por motivos simples, quais sejam, (1) ignorância na existência daquela entidade divina (Ganesha, Hera, Hórus, Iansã, etc) ou (2) quando conhece a entidade e a nega como ser divino. Dessa forma, não há como chegar a outra conclusão, senão a de que todos os humanos são ateus, em maior ou menor porcentagem – sendo um exemplo disso um caso em que um cristão, monoteísta, conhecedor dos deuses gregos, hindus e indígenas, nega essas divindades tanto quanto um completo ateísta.

Um completo ateísta preenche as duas alternativas, ou seja, não crê por ignorância, vez que é impossível tomar ciência de todas as milhares de entidades existentes, assim como nega, por diversas razões, àquelas a que foi apresentado. O ateu assim é definido, por não ver coerência nas explicações dadas pela doutrina religiosa.

Em oposição ao transcendente e metafísico, um ateu completo é plenamente capaz de diminuir seu percentual de ateísmo, sendo que o peso da prova que leva a essa diminuição varia de descrente para descrente. Além disso, ele não só pode, como questiona seu raciocínio, sendo incabível ver nessa descrença uma forma de crença, visto que o conceito de ateísmo não se atém a um mero negacionismo que se desvela numa verdade inquestionável. Muito pelo contrário, tudo é passível de questionamento e mudança, o que afasta qualquer indício de que sua inconformidade com as explicações sagradas o torne indício do existir de qualquer razão superior ou espírito perfeito.


O descrente não descrê nas entidades de forma linear, ou melhor, sua descrença não é uma proposição concreta, não é um conjunto de ideias estático, críveis pelo que são, como se vê na crença, mas sim metódico (cujos métodos variam), científico, que pode mudar em suas composições de suas ideias, a depender do contexto histórico, científico, fático, psicológico, etc – o que não ocorre na crença, que é tradicionalista, rígida, imutável. 


O questionar do descrente apenas se assemelha ao do agnóstico, no que se refere a impossibilidade da comprovação do sagrado através do método científico, no entanto, difere em algo crucial: o ateu não crê naquilo que não se pode provar, é guiado pelos fatos, enquanto que o agnóstico é evasivo em chegar a conclusões, pois guiado por ideias, parte do pressuposto de que os seres divinos, impassíveis da comprovação através dos métodos humanos, tem todos a possibilidade de existirem, na mesma medida em que não tem possibilidade de existirem! É um crer/descrer, que só será desvelado, como numa caixa de Schrodinger, se houver Olimpo, Inferno, Submundo, Valhalla ou o Nada. 


Para ilustrar melhor, para essa vertente, a probabilidade da existência de Iansã é a mesma da de Zeus, do Deus cristão... ou mesmo do Uberman de Chocolate que eu acabei de inventar, considerando que todos esses seres não podem ser cientificamente comprovados! De fato, o ateu completo vê uma coerência na não-visão da coerência, visto que confere razão a razão, ao provável, ao científico, justamente para não se submeter a confusa filosofia agnóstica ou mesmo a práticas religiosas exaustivas - ressaltando que cada entidade possui sua escala de valores e rituais. 


O mais provável e coerente para o ateísta, é a hipótese de que a existência de tais entidades e religiosidades já tenha "completado o ciclo de conhecimento" através de uma possível "aparição"Tal aparição seria extraída da detida análise da história humana, no sentido de que os fenômenos naturais teriam sido humanizados e alçados ao sagrado. Essa hipótese, bastante forte, bastante provável, derruba genericamente todos os deuses - mesmo aqueles pelos quais somos ignorantes e que morreram com as sociedades ancestrais. Fora isso, não há como comprovar através do método científico de que exista qualquer deus, pois não há como vê-los, extrair qualquer parte de seus seres para análise, sendo preciso salientar que suas retratações são diversas, mutáveis de região para região, de doutrina para doutrina, dificultando, dessa forma, uma total comprovação de suas inexistências. 


No entanto, contra eles [deuses], pesam os pesados fatos e a reflexão acerca deles, que não leva a outro caminho senão o da descrença, como já dito anteriormente. 


Mas, se esses fatos se mostrassem leves, se o científico alçasse o divino, se se comprovasse que qualquer dessas entidades fosse a detentora da Criação, da Vida, qual alegria essa conclusão traria a humanidade? Nossa vida teria sido dada em vão, para o prazer de alguma dessas entidades, como se fôssemos animais em um pavoroso zoológico, criados com instintos que devem ser podados e punidos, com uma liberdade coagida pelo medo do inferno póstumo. Nossa carne negada para sermos aceitos em um pós vida infinito, como se fôssemos peões em um jogo sádico de algum desses deuses, aqui na terra, presos às suas insanidades. 


Se os deuses existissem, eles seriam temidos, visto que poderosos. 


Se existissem, com razão, os mais lúcidos de seus escravos 

os odiariam. 







sábado, 21 de maio de 2022

Vita brevis, ars longa

 Meus dias não costumam ser definidos por emoções. São definidos por estados com palavras terminadas em ditongos nasais terminados em "ão". Existem dias de criação, outros de absorção, uns de ação, e aqueles de interação.

  Nos dias de criação, que estão cada vez mais raros, por óbvio: crio. E a criação vem muito naturalmente. Veja-se: naturalmente, não facilmente. O que é natural não é necessariamente fácil. O simples é formado de muitos complexos!

  Nesses dias, os sentimentos me descem como enxurradas, entranhando-se nos meus órgãos, e tudo que é muito vão, de repente, inunda-se de significado. É tão profundo, que preciso retirar um tanto do excesso, senão me afogo. E como me afogo! Me afogo de águas velhas e novas, salgadas e doces. Dentro de mim há um estrondo! Períodos em que o rio e o mar dividem a mesma corrente. A água doce fazendo onda, e o mar, cachoeira. As águas cristalinas refletindo a luz, por baixo das profundas.
  
  Não sou eu que decido expelir tudo, são meus pulmões que exigem. Afinal, sua função intrínseca é respirar. Não sabem eles fazer outra coisa! É natural buscar o ar no afogamento. 
  
  E inconscientemente busco sobreviver - sempre com pouco sucesso. O que tenho é parco. Há dias de balde, de rodo ou de represa. Cada afogamento, um procedimento eficaz. Uma só ferramenta me é humanamente possível usar. O problema é que me aparecem todas no acesso da adrenalina. No desespero, o que escolher? Desenho, pinto, canto, componho, toco, escrevo, recito, manipulo, ensaio ou sapateio? E o que escoar será sério, como um drama, cômico ou trágico? Lógico ou subjetivo?
  
  Às vezes quero criar tudo de uma só vez! Sair das águas todas, tomar fôlego. Tão bom seria inspirar todo oxigênio disponível na atmosfera! Mas seria como retirar o oceano por um ralo... Santa impotência! Tenho duas mãos, um par de olhos estragados e um só cérebro que funciona sempre à meia-luz. Hipócrates, você estava certo, é tão curta a vida, e tão longa a arte! Há tanto a fazer! Tão pouco tempo quando há tanto! E na adrenalina do respirar, muitas vezes percebo ter me livrado de uma só gota. Um náufrago ainda afogado.

  Os de absorção, são dicotômicos. Fico aérea. É quando aprendo ou desaprendo. É quando assisto ou leio de forma alienada. É quando me entretenho de tudo que é fútil, mas também de tudo que é sagrado, de tudo que é profano, de tudo que é curioso, misterioso. Estou nos ares! Flutuo entre muitas áreas, sobrevoando todos os territórios. Longas revoadas, que nunca conseguem cobrir toda a extensão do conhecimento. 

  Absorvo por muito tempo, em silêncio. Pairando entre letras, suspensa ente as futilidades. Refletindo, balançando. Tanto a ver, tanto há para escutar! Inicia-se o voo e as correntes de vento me embalam. É prazeroso! E também frustrante. Uma corrente te leva a outra... quando se passa em ares rarefeitos, tremula-se até em ares condensados. Algumas altitudes são muito densas! Eu pulo em direção a grandes pressões , em outras ocasiões alço um voo ao chão. É gigantesca essa nossa atmosfera.

 Os dias de ação são ainda mais raros. É quando tudo sai do papel e se desentrelaça da mente. É chão firme. Terra dura. O problema é resolvido. Um passo de cada vez. A medida é tomada. O plano toma forma. O trabalho sujo é feito. Conheço esse solo! São dias muito adultos. Monta-se uma lista, inicia-se pelo difícil, por entre as pedras, finaliza-se pelo fácil, sentindo a firmeza do asfalto, quando a energia já quase se esgota. Apronta-se, arruma-se, ajeita-se. Um pé, e então outro pé. Cuidado... É tanto para aprontar, arrumar e ajeitar. Ao fim da trilha, sinto que termino tudo, sem conseguir terminar. Nunca tem ponto final, porque o horizonte nunca... nunca acaba. Perambulando pelo globo, há terra fértil, há terra seca, e é necessária grande experiência para saber onde compensa pisar. E nem sempre onde se pisa, se deve plantar. E nem sempre o que planta, compensa colher. É tempo de ter paciência às estações, e atenção à direção, pois não há como vagar ao mesmo tempo por toda rosa dos ventos.

  Os de interação são divertidos e também trágicos, isso à depender da companhia. Interajo. Discuto. Debato. Retruco. Rio, faço rir. Choro, me emociono. Me irrito, e acho que irrito um tanto, também. Me magoo, e acho que magoo também. Me traumatizo e traumatizo também. Faço o bem e faço o mal. E depende muito do ponto de vista. Sou fogueira e sou incêndio. E assim são todas as interações da vida. Não sei se me arrisquei entre labaredas, ou se iniciei alguma combustão. Se deveria seguir aquele facho, ou evitá-lo à todo custo. Devo manter esta chama acesa ou apagá-la de vez? Como me aquecer sem o fogo? Tomo um archote e levo as chamas comigo? Queimo-me até com isqueiros! Acendo velas que nunca assopro. E ardem em mim muitas chamas! Há interações que me causaram grande combustão, outras, uma fleuma. E algumas cultuo como a deuses, como faziam os antigos. Algumas queimei às cinzas, quando desejava aquecer. E... talvez, vice-versa. 

 O encontro de vogal e semivogal guiam meus dias. As letras que o antecede mudam a entonação, a palavra, seus significados. Muda-se tudo e ao mesmo tempo nada. É um ciclo que paradoxalmente não se repete, que rodopia no tempo, como a uma roda perdida. Ele vai girando e nunca sei muito bem pra qual rumo vai. Sua direção nem sempre é compreendida pelas leis físicas. Tem potência para subir uma colina ou para despencar de uma montanha.

Lá se vai minha roda da vida, e comigo dentro. Tonta, dentro do ciclo, da roda, da metáfora velha.