O sofrimento é necessário para o equilíbrio na produção de dopamina no nosso corpo. Muita dopamina, e os receptores dopaminérgicos se dessensibilizam. Com os receptores dessensibilizados, as dosagens de dopamina precisam ser maiores e maiores. Dosagens grandiosas, tão impossíveis, talvez, que nada que tenha essa escala nos acorde do sono da apatia. Veja só, muito prazer, prazer em excesso, o prazer em excesso continuamente e nos entediamos dele! Entramos, então, em estado de anedonia.
Anedonia é o estado em que não sentimos prazer nas atividades antes prazerosas, nos encontramos com uma apatia ao mundo. As maiores felicidades tornam-se pequenas. É necessário muito para nos alegrarmos. O muito torna-se pouco.
O pouco torna-se nada. E nos causa dor, esse sofrimento. E essa dor pode ser causada para o bem - se permitir ser sentida. Pra mim, ela deve ser sentida. Caso contrário, a insatisfação nunca termina. E acabamos por prolongar o sofrimento com dolorosas conta-gotas.
Adictos não amam as drogas, adictos sofrem, fisicamente e psicologicamente quando não as tem. E deixam de encontrar o gosto da felicidade no restante dos momentos sem drogas. Drogam-se, sentem um grandioso prazer, e nada a isso se compara. Não é felicidade, não é aquele segundo de êxtase e alegria. É o prazer. Puro e simples prazer. E a sociedade os observa com olhares julgadores, quando nos comportamos de forma a produzir mais adictos e maiores variedades de adicção.
Somos simples assim, bichos assim. Somos reações químicas tão insignificantes quanto aquelas moléculas que vimos mexerem, sem propósito, pelas lentes de um microscópio, na época da escola. Somos moléculas mais conscientes - algumas moléculas mais conscientes que outras. Mas moléculas, de todo modo.
Se não percebemos esse processo em que nos encontramos, vamos levando a vida assim - ou melhor, vamos sendo levados pela vida. Guiando nossas decisões por transtornos. E viramos mais moléculas. Uma morte humana, ainda em vida. E esse conhecimento, agora tão estudado pela neurociência, é explorado há milhares de séculos, pelos filósofos.
Notaram antes da publicação em revistas científicas, que o excesso do prazer gera sofrimento. Aí está Epicuro, que não me contradiz! Note: antes, a catarse pelo flagelo, hoje, chama-se jejum de dopamina. E o flagelo para livrarmo-nos do excesso é tão maior atualmente, porque já nascemos com injeções contínuas de dopamina. Creio que sequer sabemos como é a realidade sem nossos prazeres.
Nasci na época da televisão, meu irmão do meio, na época dos videogames, meu terceiro irmão, na época dos computadores e blogs; e o quarto, na época dos celulares, smartwatches, reels, stories, alexas. O quarto irmão, em alguns dias, não chega a ver a luz do dia. Não faz muito tempo, perguntei a ele qual era a cor do céu, a resposta: laranja. Laranja, como o céu do jogo, notei. O quarto, tem menos tolerância a leitura de um livro, a prender a atenção a um desenho animado (!!). Ele joga em duas telas. Conversa com nicknames por um chat em um aparelho, e por áudio, em outro aparelho. Cansa-se da companhia física das outras crianças, mas nunca da online.
Isso me fez refletir, lembrei do Bauman, claro. A demografia de pessoas que conseguem se concentrar em um filme inteiro, num texto longo ou em um amor que dure mais que dois dias está se reduzindo. Os filmes precisarão de menos delongas, os textos precisarão ser reduzidos à frases e o amor (re)categorizado: "Agora, Amor, és Plutão! Não mais planeta. És menos denso em sensação". E todas essas coisas não serão fontes suficientes de dopamina, para a nossa sociedade dessensibilizada.
Talvez precisemos de cinemas sensíveis, como no livro Admirável Mundo Novo (Huxley), onde os sentimentos dos atores é repassado à audiência, pelos nervos! Talvez haverão pessoas procurando maiores flagelos, para equilibrar os maiores prazeres. E maiores prazeres para lidar com esses mesmos flagelos. Houve quem ateasse fogo em si mesmo, e isso na era das folhas de papel! O que será, agora?
E a tendência é que o céu seja laranja para todos nós. E que a existência seja mais longa, enquanto o existir mais curto. Nós mesmos! Eu, você que lê. Nós, de gerações anteriores. Vivos. E ainda neste século! Será, ou melhor, está sendo, uma nova forma de existir. É uma existência de ultra estímulos. Uma nova forma de ingestão de dopamina. E o desafio, a quem tentar, será encontrar em si, uma nova forma de adaptar o prazer ao sofrimento. Inclusive, creio que novas formas de catarse se formarão. Talvez, a catarse seja desligar-se da tela, um ou dois minutos ao dia. Ou ler mais que vinte linhas seguidas, sobre um mesmo tópico. Veja só, acompanhe esse futuro comigo: A paciência tornando-se um novo tipo de poder, a resiliência, uma nova forma de força heroica. Autoestima será não usar filtro! (Já é).
E o que farei nesse ínfimo meio tempo desta infindável escalada dopaminérgica mundial? Decidi. Sofrerei com estes flagelos, sem jeitinho brasileiro, tentando afugentá-los com overdoses dopaminérgicas. Mesmo que me vejam como alguém triste. Até porque todos somos. Eu me assumo! E vou economizando nos prazeres, para que me satisfaça com o simples. Apurando os olhos para as minhas próprias armadilhas. E tentarei, através do sofrimento, ser mais feliz. Como pregavam os antigos e agora os neurocientistas. Aproveitando do velho e do novo. Do intuitivo e do racional duplo-cego randomizado.
Isso tudo para continuar a sorrir com a virada das páginas de livros, com a leitura de poesias, com a apreciação das artes, com meus próprios pensamentos. A me alegrar com as pessoas, a amar da forma como as amo, a sentir a falta delas como sinto, e a rir das comédias bobas do cotidiano, sozinha e acompanhada. E para isso, o preço é me entristecer com coisas tristes. É sentir raiva com as coisas odiosas. A sentir as sensações humanas, durante a vida, mesmo que pareçam bobas. A ser tida como melancólica, porque não me importa tanto a aparência do sentir, mas o sentir em si. Para sentir-me viva, quando esse outro estilo de existência levar (está levando) a população a estados depressivos e ansiosos, como se lê há muito, nos artigos dos jornais. Cansei-me das páginas do DSM-5! Não quero esses transtornos. Não quero aceitá-los sem um tanto de luta. Não quero ter um céu laranja, apenas. Quero um céu cinza de chuva, e depois cor-de-rosa. E ESCOLHER entre os céus, e o que sentir, e não ser INDUZIDA a pensar somente que o céu é laranja. Há uma janela, escolho olhar também para fora!
E isso tudo, para ser uma molécula, despropositada, paradoxalmente consciente e feliz-triste até que o absurdo da morte me separe da vida.
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