Talvez você retorne aqui e todos os textos tenham sumido ou note que as palavras foram trocadas e o sentido de um poema, de um texto, de uma frase, de um aforismo foi totalmente invertido. Aqui é RASCUNHOlogia, não Definitivologia.
sexta-feira, 29 de abril de 2022
Anedonia, céu laranja e catarse
segunda-feira, 25 de abril de 2022
Prato principal
Em algum momento nos vemos obrigados a nos conformar. Talvez esteja conformada, talvez esteja distraída com outros problemas, com outras felicidades. Troquei de mesa, passei a me alimentar de outras histórias.
Eu já estava bebendo de uma jarra que não tinha líquido, saciando a sede com a memória da saciedade. Sentando-me solitária à mesa, acompanhada da sua ausência, que há muito havia se retirado. Eu fiquei. Eu permaneci. E duro foi o processo de me retirar, também, do assento. Contentei-me com cada vez menos migalhas, lembrando do sabor do prato principal. E como era saboroso!
O dia em que lemos o mesmo livro juntos, em que olhou nos meus olhos, o que se prendeu em meus lábios. Do dia em que ouvimos música, das noites abafadas de conversas atropeladas. Daquele dia de chuva, repleto de boas risadas. O dia em que você derrubou café, o dia em que vi seus pés desnudos. O dia em que mostramos os dentes um para o outro. Os dias em que importamos um para o outro, nas trivialidades, dos segundos passageiros de curiosidade. De nós nos descobrindo. Das suas mãos no beiral da porta, da cabeça recostada, perguntando a razão do tempo passar tão rápido, do cheiro da sua respiração, dos seus ombros, cabelos, da sua voz. Da sua voz dizendo meu nome: feliz, manhoso, irônico, cantado, irritado, cuidadoso. Dos nossos assovios, dos nossos desenhos. E então, em algum momento, a mesa foi se esvaziando. O que tem no cardápio? Lembranças.
A primeira vez que você se afastou, saborosa era sua presença. Da primeira vez que você me criticou, saboroso era seu elogio. Dos muitos dias das ondulações de humor, saborosa era sua constância. Das discussões que davam em remorso, saborosas eram as intelectuais. De tentar te odiar, te amando. Da minha solidão, na mesa, contentando-me com o sabor de cada passo de sua saída.
Da minha saudade, quando saborosa era a história. E não a realidade.
A escrita não expressa o meu levantar da mesa. Os passos difíceis de empurrar a cadeira, levar os pratos, os talheres. Colocar as cadeiras no lugar. Ali, sequer haviam sobras. Essas coisas só se descrevem em mim mesma. Não têm nome e nem como nutrir.
sexta-feira, 22 de abril de 2022
Bateu à porta
Bateu à porta, e eu abri. Senhoras e senhores, toquei a maçaneta e me surpreendi. Ora, ora, se não é a felicidade! "O que eu faria contigo em minha vida?", pensei, "não saberia onde acomodá-la". De todo modo, eu disse "entre, entre", e ela entrou.
É tudo muito simples, nada demais. Por favor, não repare a bagunça. Por fora, a casa é bonita, não é? Pelo menos não é horrível. Vamos, ah... não precisa tirar os sapatos. Entre do jeito que está. Está perfeito! Bom, por dentro, se notar, estamos redecorando, por isso a bagunça. Veja, não tenho muito a oferecer agora, sua vinda pegou-me de surpresa. Mas é uma surpresa muito bem vinda. Bem vinda! Gostaria de fazer-lhe morada, de todo coração, mas esses cômodos... Olhe bem esses cômodos!
Na verdade, acho melhor que repares, sim, a bagunça. As pilhas de roupas ali, os livros não lidos, um tanto de sujeira do passado. Repare, sim, para que não pense que não te quero por aqui e estou a arranjar desculpas esfarrapadas. Eu é quem sou esfarrapada, enquanto você é...a Felicidade. A felicidade em pessoa, pisando nesse muquifo. Já me arrependo de tê-la convidado a entrar. Ah, vieste para ficar? Veja, como poderia eu te deixar confortável por aqui? Dormiria de pé, tenho certeza disso!
Não.. não, o problema nunca foi e nunca será você. O problema é esta sala aqui, mal arquitetada. É este piso irregular. São estas paredes descascadas e essa iluminação caótica. Tanto ocorreu por aqui, espero que entenda, tanto ocorreu por aqui!
Olha ali, repara bem, pretendo fazer dali uma varanda, e daquelas com sacada! Pretendo reformular a decoração e reestruturar as bases, mas o processo é bastante barulhento e constrangedor. Acho que, se houvesse a varanda, poderia te acomodar por todo o sempre. Como eu gostaria de já ter essa varanda, ou talvez uma boa janela. Uma boa janela e você ocuparia tudo por aqui. Juro, dar-te-ia o prédio inteiro! Mas, por agora, este lugar não é digno dos teus pés. Vamos, agora... te mostro a saída. Cuidado para não tropeçar, sinto muitíssimo, há um trauma ali, naquele degrau. Desculpe-me. Adeus. Adeus.
Ah, foi-se embora a felicidade. Ah, como gostaria que não fosse! E foi-se, para nunca mais voltar.
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Remetente
Às cartas nunca entregues, relato
Meu luto e meu pesar
Santa a intempérie dos enamorados!
Destinatários perdidos...
Papéis extraviados
Confissões jamais lidas,
e segredos nunca revelados
No fundo dos armários
Lançadas ao vento
Desintegradas no mar
Aos quatro elementos!
A água a afogar
escritas de tanto alento
O fogo a inflamar
a frágil tinta dos sacramentos
A terra a enterrar
as letras dos amores lentos
No ar, a flutuar
o cessar dos sofrimentos
E o tempo, apressado em se esgotar
e a nunca te contar
o segredo do meu sentimento