quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Zero à esquerda

Sinédoque. Da parte se vê o todo.

Boca, mãos, olhos, rosto

Multiplica, una e repare!


É soma que se reparte

É cálculo que não calcula

Que disparate!


A conta nunca bate

Toda fração é imprecisa

Altera, divide, não simplifica


Exatidão inexata

Junção de vetores

Resultam em nada!





sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Covardes

Que as circunstâncias nos unisse

Que não cruzássemos a coragem!

Assim amamos feito loucos

num romance de covardes.

Puerpério

Há um secreto dentro de si. 
A nascente dos sentimentos íntimos demais. 
De cordão umbilical invertido. 
Acolhidos presos no útero do que não falais.


Frágeis como aço em temperatura crítica.
Disformes puxam as cordas detrás das cortinas
Creem-se, desde a concepção, gestados. 
Contraem-se ritmados. Prendem-se nas próprias cordas tecidas. 


Não sabem nascer. E nunca se dá à luz por completo. 
Nunca se os arranca da carne sem severa amputação. 
E o que se pare é muito pouco do que são. 


Da língua ao céu, da boca aos lábios. Exagerados de menos, interrompidos. 
Caluniam aos ouvidos. Nos expõe fracos, sem placenta na mão. 
Puerpério de nada, natimortos que são.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Poetria XIII

Nada. Coisa alguma. Tudo é vazio.

A porta bate, o chão range

Ninguém olha, ninguém riu.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Poetria XII

Teus braços em mim, no meu rosto, eu em teus braços,

nós em um nó, 

atando os nós desatados

domingo, 11 de dezembro de 2022

Poetria XI

Te amo sem ponto final

te amo sem vírgula

te amo sem traço

sem língua

sem regra

Te amo além da ortografia

da geografia

da geometria

te amo além do poema

- que termina.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Lápis-lazúli

Aos gregos brilhava o céu num rosado
Homero, ao pé d'água encostado:
É cor de vinho este mar!

Até então, olhos viam sem notar
Escondida à plena vista
Tão bela cor desabrochar

Mira! Atrás das nuvens!
Em diversos tons pra maravilhar
Atente teu enxergar:

Azul é o céu!
Azul é o mar!
Azul do menino da barriga a brotar

Azul da cor da Barba de um nobre violento
Da veste dos ricos nos reinos
Das divindades nos templos

Azul do ponto pálido no Universo a flutuar
Azul da calmaria: hipnotiza o descansar
Azul do amor, que veio visitar

Azul dos teus olhos a me olhar
Do cano alto do teu all star
Azul, o que senti ao me deixar.




 

domingo, 6 de novembro de 2022

No berço do abismo

 Certo dia despertei

despertei com outros olhos

o real é ilusório

agora, nada sei


Tudo é transitório

os instintos se revoltam


Da vida tive ódio

só a morte é real

Espetáculo fantasmagórico 

Sem aplausos ao final


Inicia com a sina

ao nascer já se termina

um suspiro fatal


Aqui jaz o material

da qual se fez meus olhos

Jaz meu peito de animal

a vida é sonho irreal


Imergi em loucura

as coisas finitas - a fissura

Mortas enquanto paridas

no grande esquema frugal


Circulei espectro entre os espectros, em carne

nada realmente dói, nada realmente arde

Eis que o medo me invade!


No pânico o pensar imerso

na mera poeira do Universo

O céu me assusta - não o impeço


As estrelas me ofendem em seu infinito

Me doem na pele, resta o grito

Encarando a morte

quase não a sobrevivo!


Cansei-me... cansei do perigo

Troquei minhas lentes e achei abrigo

O que sinto é real, apesar de finito


A carne que arde é onde me exprimo

Eu sou! Eu vivo! Ao choro e riso!

Há amor, há pranto e sigo

Embalando no berço do abismo.



quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Etimologia


Ninguém sabe bem 

de onde a saudade vem


Há quem diga que vem da solidão

Da negra bílis, uma melancolia

do sangue pisado de um coração


Que do latim vem a escrita

como a bíblia do cristão

Ou dos belos traços de estilo

de letras de alcorão


De soidade vem saudade

ou da saudade vem solidão?


Não se encontra na fonética

a fonte e explicação

da moléstia que se cura

com uma só conjectura:

A moléstia, em questão.


Pensa

Não pensa em mim...

Não pensa em mim?

Não pensa em mim.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Poetria X

Te quero? 
Te quero.

De corpo nu
e alma despida

De olhos abertos
e mente destrancada

Ouvir tua voz
não de fantasmas

De pés prontos
a mil lances de escada

Da tua própria versão
- detrás da fachada

Se não isto
Então, nada.


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Inundação

 Não consigo espremer uma só lágrima deste par de olhos. O sofrimento flui todo em mim, inundando as memórias com seu líquido agridoce. São águas tormentas nascidas na calma alegria. Não haveria aqui tamanho sofrimento sem antes uma grandiosa felicidade. Eis que a tristeza passou a gotejar e esta é a medida: uma chuva de felicidade para uma só gota de infelicidade. E talvez, só talvez, seja essa tempestade o que chamam de saudade.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

ÍTACA de Constantino Kavafis (1863-1933)

Quando partires em viagem para Ítaca

faz votos para que seja longo o caminho,

pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.

Os Lestrigões e os Ciclopes,

o feroz Poseidon, não os temas,

tais seres em teu caminho jamais encontrarás,

se teu pensamento é elevado, se rara

emoção aflora teu espírito e teu corpo.

Os Lestrigões e os Ciclopes,

o irascível Poseidon, não os encontrarás,

se não os levas em tua alma,

se tua alma não os ergue diante de ti.

Faz votos de que seja longo o caminho.

Que numerosas sejam as manhãs estivais,

nas quais, com que prazer, com que alegria,

entrarás em portos vistos pela primeira vez;

para em mercados fenícios

e adquire as belas mercadorias,

nácares e corais, âmbares e ébanos

e perfumes voluptuosos de toda espécie,

e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;

vai a numerosas cidades egípcias,

aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.

É teu destino aí chegar.

Mas não apresses absolutamente tua viagem.

É melhor que dure muitos anos

e que, já velho, ancores na ilha,

rico com tudo que ganhaste no caminho,

sem esperar que Ítaca te dê riqueza.

Ítaca deu-te a bela viagem.

Sem ela não te porias a caminho.

Nada mais tem a dar-te.

Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.

 Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,

 já deves ter compreendido o que significam as Ítacas



domingo, 25 de setembro de 2022

Sonho lúcido

Tão quieta 

e no silêncio

ouço, só, meu respirar lento


Luto contra o sono

sinto o corpo zonzo 


O devaneio solto

quando penso no teu rosto


Emulo tua voz

Te enquadro em minha visão


Na contramão do mundo

Quebro a hegemonia

Ponho-te ao meu lado

Num excesso de poesia


sábado, 24 de setembro de 2022

Errata

 Foi um erro com acerto

Sinto muito. Prometo!

Um erro que foi


De novo, cometo

"O mesmo erro?"

O que foi?


Tem conserto o terceto

Agora, prometo

O erro se foi!


Repito em terceto

"Neste quarteto?"

Mas o que cometo

É sempre à dois.





domingo, 4 de setembro de 2022

Bem te vi

Luzes piscavam

Sons tocavam

E tanta cantoria!


Contigo havia sonhado

Sim - naquele dia!

Mas agora era outra a hora:

Era hora de folia


Muitos corpos enroscavam

E o chão desarrumado

de muitos pés que dançavam

E a tudo embaralhavam


Enquanto sapatos sapateavam

fora da pista que só acolhia

seus calcanhares sem companhia


Como no sonho: De coincidência a realidade preenchia

Uma novíssima Euforia!

Um primata que assiste pirofagia


Foi tua a presença que calou a gritaria

Trocou-se música por arritmia

A cantoria, agora, era cardíaca


Assim que te vi

Aproveitei e revi

Teus pés! Teus que estavam ali!


E eram os únicos que importavam -

Os demais importunavam

minha viva fantasia


Tão logo ei-la vivido, 

bem te vi e a extasia!

O sonho é revolvido.


A Realidade subordina

E ela toda prevenida

evaporou-te na surdina.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Mananciais

Eu rio,

você lago


Desaguo,

Você transborda


Minha correnteza 

É sua lentidão


Feitos da mesma água

Não se reencontrarão.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Kénosis

Nasceu a carne!
Ao berro e choro
ao medo e pranto
do gás ao fogo

Colisão de estrelas:
Fez-se ouro
Carbono e olhos
e veja o estouro!

Incenso e mirra
Ornado aos louros
Tudo é novo

Tão novo!

E demovo!

O que fez ser si
e que te fez tesouro
Tenha fé! Removo

A ti, estrovo:

Carbono e olhos
o pranto e o choro
O gás concedo -
Mas não o fogo!

Dissenso e birra
retiro o louro
Da casca ao ovo

Ato linha ao anzol

Teu destino em meu farol
Forte luz
Cega fé - só a Mim em prol!

E tema
a ira suprema!
De um ódio chamado amor
Cante em louvor

Agora!
O mar te espera
Revigora

Curve-se
Não demora!
E rema
Rema!

Ao precipício 
do Meu poema.

sábado, 6 de agosto de 2022

Cadabra!


Desenho inspirado neste poem

Desde jovem, muito jovem

Aos montes me tolhem

Deixo. Que olhem!


Cresci feia - ora, pois, ris!

Nariz torto de chafariz

Verruga na ponta e adorno de cicatriz


E cresci com tudo

Trajei chapéu pontudo

Teci-me de preto - escudo


Deram-me vassoura "Para o chão!"

Ao cão!

Transformei-a em aviação

Sobrevoei seu espantado coração


Da fogueira a qual fui amarrada

E era quente feito vulcão

Escapei com esforço de nada

Colhi a madeira - lenha pro caldeirão


Do espanto e do ódio

Olho de sapo, lasca de ródio

E de cima do pódio, bebi com limão


Em minha cabana isolada

És doce, morada!

A escória da população


Importo-me? Pouco

Converso com corvos!

Têm melhor oração


E passeio entre a floresta

Aventuro-me em suas frestas

Leio meus feitiços

Meus amigos esquisitos


Marco as folhas com minhas unhas compridas

Afio nas cortinas!

Meus cabelos já brancos

E todos em bando:


Às crianças perdidas, ofereço doces

À bela jovem, um tear

E a maçã que envenenaram

Puseram-me a tudo culpar!


Afundo na floresta

"Nunca a vimos" - o povo em festa

Mas me veem nas frestas

De suas morais avessas


De suas culpas quietas

realizadas às pressas

Em oportunas surdinas

Afio minhas unhas em suas cortinas

sábado, 30 de julho de 2022

Distância

O Japão é tão longe! 

Três quilômetros, tão longe!

Dois metros, tão longe!

Um milímetro, mais distante ainda.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Memorabilia

Eu costumava ter muita vontade de evoluir como ser humano. Queria exceder. Queria não ser ordinária. Queria ser diferente, inovadora, aventureira e queria ter sucesso nisso tudo. Eu queria muito. Mas cria que todas essas coisas aconteceriam comigo pela força do destino, da vontade divina ou do amor dos outros. Demorei... ainda tenho esse costume... de esperar que tudo seja validado, que eu receba as coisas de bandeja. Queria evoluir confortavelmente, sem críticas, sendo levada ao bel prazer do tempo ao sucesso do... seja lá o que O Destino havia me preparado. Cria que a vida seria não apenas boa, como perfeita e que o que eu passava era a parte imperfeita - um tijolo numa base feita à minha imagem e semelhança. Personalizada. Um filme. 

Eu levei uns safanões da vida. Fui chacoalhada em diversos campos: acadêmico, amoroso, profissional, familiar, mental, religioso. Creio que o chacoalho no campo religioso me foi muito duro, mas me ajudou a pensar que eu poderia ser quem quisesse ser, com a parte negativa de que as coisas deveriam ocorrer voluntariamente. Eu deveria, voluntariamente, tomar conta do que quer que fosse. Tomar minhas decisões com base em preceitos que eu poderia compor. E eu poderia roubar as ideias e filosofias de qualquer campo das ciências humanas para trilhar um caminho para um objetivo. Eu faria meu objetivo! Coloquei em mente um objetivo: uma vida dedicada a ajudar a humanidade. 

Mas ajudar a humanidade é tão estressante... foi isso que descobri. A humanidade não quer nem se ajudar! A humanidade é uma unidade que até te aprecia nuns relapsos aleatórios. Te aprecia para em seguida devorar, mastigar e cuspir a apreciação repetidas vezes ao dia - repetidas vezes por hora! Então mudei de ideia e tentei ser uma pessoa virtuosa. 

Culta e virtuosa: um novo Eu. Virtudes das mais altas virtudes. Virtudes angelicais, baseadas na filosofia do amor ao próximo, na empatia. Queria ser extremamente preocupada com os próximos, ser extremamente honesta, extremamente dedicada a uma vida de ajuda, acolhimento e doação. Nota-se que não consegui manter essas virtudes. Descobri não ter força para contribuir efetivamente, só tinha a dar opiniões. E opiniões que repetia como um papagaio. Dei muito murro em ponta de faca. Eu notei num desses murros que não queria (e nem quero) mais sofrer pela humanidade ou pelas virtudes absolutamente frustrantes da humanidade. Uma vida de doação é uma vida de sofrimento pelo sofrimento. É uma vida de frustração. É uma alegria ínfima que não compensa a rotina estressante.

Entre lucros e dividendos, escolhi um novo objetivo: uma vida interessante. Escolhi viver uma vida de experiências estimulante no máximo de estímulo que pudesse obter. Muito de muito e de tudo um pouco e do pouco o muito. Era eletrizante. Eletrizante. ELETRIZANTE! Muitos amigos, muitas festas, muitas bebidas, muitas danças, muitos dramas causados pelas bebidas nas festas dançantes com os muitos amigos. Dores nas costas, ansiedades e as conversas altas entre os sons graves de músicas que faziam o peito estourar. Eu ficava cansada, tão exausta no meio das eletrizantes "aventuras", que notei que não queria viver uma vida com objetivo de ter histórias para contar. Isso só não bastava. Eu queria ter uma história de evolução! De olhar para trás e notar que o que estivesse a frente seria muito melhor. 

Então passei a viver uma vida direcionada a ser adulta. Daquele tipo que faz planos, estratégias, traça rotas, organiza-se, checklist, checkpoint! Tornei-me apática. Afastada. Dedicada. Super-duper-hiper-mega ocupada. Sem tempo. Agora não. Depois. Fica para a próxima. Vou ver e te falo, ok? Imergi-me. Afoguei-me. E então me cansei pela solidão. Uma solidão extrema e triste. Uma solidão de não ter conexões reais com as pessoas. Uma falta saudosa da humanidade que me mastigava sem digerir, sabe? E retornei.

Agora as pessoas parecem tão eletrizantes! A humanidade à flor da pele, na adolescência. A humanidade que hiper estimula, hiper compara, hiper destrói, hiper compra, vende, lança, mostra, esconde, apaga, edita. Arrasta pra cima! É hipersensível, hiper hipnotizada e moldou-se a si num panóptico - que percebi fazer eu mesma parte. Sou o guarda, o construtor e o presidiário. Os olhos e o olhado.

E agora? Volto dois passos. Estou parada observando o panóptico que me observa e pensando: foda-se. Terei que pegar os estímulos elétricos do pouco e com eles formar uma rede. Afasto-me da solidão com boas doses de poucos e preciosos amigos. Mas vivo a solidão, ela é intrínseca à experiência humana, com todo sentimento de solidão e a tristeza que ela me provoca. Abraço a humanidade que me mastiga, doando amor quando me dá na telha. Amo quando amo e odeio quando odeio. E não interpreto as virtudes quando não me são úteis e só busco aquelas que mais me espelham. E não só faço coisas úteis, como inúteis. E me ocupo e desocupo, quando não há como deixar de me ocupar e quando não quero deixar de me ocupar. E ando entre as contradições como um equilibrista de circo - um daqueles iniciantes. E lá se vai o malabares...!


Aonde irei parar? O quê me importa?! Me importa o agora, olhando o que tenho, agradecendo o que tive, tendo saudade do que foi bom e aprendendo com o que foi ruim. Até porque o que resta caçar na ruindade é o aprendizado. Não insisto no que me foge do alcance. Controlo o que posso controlar - e quando posso, e quando quero. Produzo quando tenho que produzir e quando desejo produzir. E paro e relaxo quando desejo, quando posso. E isso me corta de muitas coisas da civilização. E esse é o preço que pago por não ligar para um teatro de vida e virtudes. E cá estou, catando o malabares do chão. Torcendo para ter encontrado o jeito correto de dançar no samba da existência, sabendo que não há jeito correto, enquanto brindo esse bom e velho e eterno paradoxo que é existir racionalmente.

Tim-tim.


segunda-feira, 11 de julho de 2022

Poetria VIII

Achei que morreria de saudade

E não morri.

Até que voltas-te

E então vivi.

Cupido

Hei-me aqui, em novo encalço!

Que seja pouco, mesmo que um rastro

Ou quase nada

Mas não o nada... não, não o nada!


Contento-me, desarmada

Investigo-te a hora exata

Observo-te alarmada

"Mãos ao alto!"... Quase um flagra!

E anoto em ata


Ah, o hesitante passo antes da partida...

O titubeio na voz de despedida

A verdade, que na verdade, é mentira


Teu corpo todo em entrelinhas 

e os sentimentos no entrelaço

A saudade em teu percalço

E tu, fugindo em trilha!


Apanho-te, oportunista

Na sublime fresta de tuas pistas

Hei-me especialista

É descoberta! Serendipista!


Observo-te, de ponto e mira

Meu aço quente, tua pele fria

Nosso intento em sintonia

É o amor na pontaria.


 



Roda mundo

 Talvez eu tivesse ficado naquele ciclo de frivolidades para sempre se não acordasse à tempo. Talvez o tivesse engrandecido, giro a giro, em minhas entranhas. E não saberia mais dizer a diferença entre o que é sujo e o que é limpo. Mas, acaso não tivesse nele entrado, talvez deixaria de saber que há sujeiras limpas e limpezas sujas. Que não há pureza além do mundo das ideias, nem maldade pura, além dos nossos medos abstratos. Tudo é contaminado de uma coisa ou de outra, a depender do ponto de vista. Que no grande esquema das coisas, esses termos dão conta de misturar-se, sendo água e óleo. A realidade é tão mais além, é tão mais compostas de verdades menores! É um quebra cabeças que só se sabe a forma quando se está montado, mas ao mesmo tempo não se exclui de seu corpo as peças montadas e as peças faltante.

Também não teria aprendido que quebrar um ciclo, não significa libertar-se de cair em outros. 

 Existir é paradoxal. 


  Sinto pena dos que almejam a pureza. É um ciclo de autoflagelo, que na busca da paz e da perfeição, fere violentamente a carne e despedaça o espírito. 

  Cada giro, uma nova e mais profunda cicatriz. Em cada cicatriz, um novo ferimento. 


 É o ciclo que se torna tão autodestrutivo quanto ciclos objetivamente autodestrutivos.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Mais um trechinho daquele livro que nunca será finalizado

 Ele ama o mundo e seu propósito é melhorá-lo. Ele é educado com estranhos, e possui um grande amor pela humanidade. Nas relações interpessoais era controlado, calmo, sério. Ganhava o respeito e a admiração de qualquer um que ele escolhia encontrar. Todos estavam em seu radar, mas ele estava no radar de poucos. Sim, ele escolhia em qual radar entrar. Se ele não quisesse aparecer no mundo, se fazia de sombra entre as pessoas. E entre as pessoas, era sombra. Mas a partir do momento que decidia se apresentar, muitas vezes com o intuito de ajudar, outras vezes por ser pressionado pelas circunstâncias, as pessoas imediatamente se encantavam com ele. Ele era uma sombra atenta à luz e às pessoas, e ainda mais que isso, do tanto que as observava. Talvez por isso lhe era cansativo conhecê-las, as pessoas. Já as amava todas à distância, já prestava atenção em todos os detalhes possíveis de se conhecer sobre desconhecidos... seriam perturbadoras, para ele, as bifurcações sentimentais que sempre encontramos ao nos aproximarmos dos outros.

  Amar as pessoas é algo muito difícil. Isso eu sei. Amar envolve sentir coisas contraditórias. É sentir compaixão e desejar o melhor. É tomar preocupações que não nos atinem. É querer estar presente e disponível para ajudar, mesmo quando alertamos o problema, e quando as pessoas teimam e tornam o problema concreto. Talvez isso também o cansasse e lhe fizesse ser a sombra que busca ser.

  Puxo da memória aqui, um desses dias monótonos. Um desses dias dos meus olhares vagando por entre as massas, e encontrando o olhar dele entre a multidão por um mero acaso. E meus olhos pousaram naquela sombra que me olhava.  Acho que a surpreendi, um tanto. Observei aquela sombra, que observava seus objetos. Analisei aquela sombra com um interesse desinteressado. E ela caiu entre meus olhares com mais frequência, depois disso. Eram olhares inconscientes e vazios de sentimento. Apenas vagos, mas lembro dela de pé, com as mãos nos bolsos, alheia ao grupo de pessoas que a cercava. Observei aquela sombra, andando apressada pelos corredores. Mais uma vez, aquela sombra, em uma fotografia, entre outras pessoas, olhando para a câmera como se estivesse forçada. Não sorria, como as outras. Outra vez, a sombra, andando ao lado de um amigo que carregava um trompete. Havia ali um trompete! Um trompete! Como posso me lembrar de uma sombra andando ao lado direito de um trompete? É um objeto bastante incomum, bastante chamativo. Ele era só uma sombra escondida entre soslaios, que de algum modo ficou registrada pelo meu cérebro. Ele já habitava minhas sinapses, e isso já o fazia diferente da comum indiferença dos meus olhares vagantes dirigidos às massas. 

  Eu observo as massas, os humanos. Observo seus traços, trejeitos e suas interações. Observo como reagem ao ficarem tristes, como reagem ao ficarem alegres, o que os agrada e desagrada, a partir de suas feições. Observo suas roupas, o que acham adequado para cada ocasião, o que mais ou menos os interessa olhar, encarar, virar o pescoço. Observo a transformação de suas culturas, o que fazem para serem aceitos. Observo a contradição entre o que dizem e o que expressam no rosto. Observo, mas nunca consigo chegar mais... fundo. O que causa suas sensações? Não sei a razão da alegria toda, porque é tão grande ou tão pequena, só sei que estão alegres... muitas vezes com coisas que não me deixam alegres na mesma medida. Percebo muito desses contrastes. O que lhes causa pranto, me causa raiva. E o que me causa raiva, lhes causa... nada. E minha alegria é diferente em proporção e situação, e assim também minha tristeza. Mas não sei de seus sentimentos, essas coisas profundas e sensíveis que movem os seres.

  Ao contrário daquela sombra. Ela, muito mais alheia aos grupos e interações, enquanto eu, na maioria das vezes, em grandes círculos sociais. E ela sabe mais do que eu jamais saberei sobre o que comove as pessoas. E isso é uma parede que tenho dificuldade em quebrar, é a limitação que não extrapolo com frequência... e nem me importo tanto em extrapolar. Eu não amo a humanidade. Eu gosto dela, e só quando ela me faz bem. A sombra, não. Se faz de sombra por um grande amor... e tudo isso observei, observando a sombra. E só concluí, quando a sombra já não se fazia mais de sombra em minha vida. Isso concluí, quando ele já era nítido, sentou-se ao meu lado e aprendi seu nome.

  E benditas são as circunstâncias que forçaram o encontro entre a sombra dos meus soslaios e meus olhos, boca, ouvidos e nariz.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Poetria VII

Ferimento aberto

Cicatrizado

quando se cura, abro


Escuro tom desbotado

Escorre com ele memória


Jaz, nestas veias, história

Aqui se faz prova:

Estive viva, eis minha glória!


O pulso pulsava um vermelho corado 

líquido, não ressecado 


Fúnebre agora

Escorrias dentro, não fora


E viril percorria meus vasos

em sua própria força e ação

Fazia do coração bem mais coração


Era o vermelho, não mero vermelho

decorava de vida este artelho

A ti, memória, hoje basta o anseio


Do fluido que era arte

Tão rubra cor, essa escarlate

Fiz-te de baluarte


O corte liberta

a dor, a lembrança, a descoberta.

O que há de bom no mundo?

Esta ferida aberta.


















sábado, 4 de junho de 2022

sábado, 28 de maio de 2022

Viva o suficiente

   Dizem "Olhe lá a masmorra da bruxa", "sumiu na floresta" - e dizem com festa.

  Acalme-se, vilã. A mocinha é que te colocou nesse posto. Cruzou seu caminho e atrapalhou seus objetivos, com aquela pureza infantilizada, em corpo de mulher adulta. Eu te digo, vilã, odeio as mocinhas. "Ah, mas são tão boazinhas!". Poupe-me. Sem elas, você não seria vilã, sem vilã, elas também não seriam mocinhas. As vilãs são as que mais me apetecem. Para mim, as mocinhas são seres bidimensionais. Têm a personalidade de uma folha de papel em branco. Ganharam o protagonismo por causa do chororô, e não do mérito. 

  No mundo encantado de suas cabecinhas ocas, as mocinhas assoviam com os pássaros, como se todos lhes devessem bondade. Sempre com aqueles olhos de cachorro abandonado. Mas não são elas cachorros - muito menos dos abandonados. Afastam-se de todos se minimamente contrariadas! Não percebem as enrascadas em que se colocam. Não ouvem de qualquer um a razão! 

  Para elas, o mundo é rosa e tem gosto de caramelo. Aceitam a tudo, sem questionarem. Uma ou outra até carrega um livro, mas não se vê sair da boca delas a filosofia de uma só página. Carregam, por carregarem. É parte de seu papel não ligar para os problemas do mundo. Parecem sensíveis, mas não são. São narcisistas não assumidas. Se a alguém servem, é para manter seu papel. 

  Todo sofrimento, para as boazinhas, é suportável, porque acham que o sofrimento lhes trás algum tipo de dignidade. Porque acham que o sofrimento lhes dá complexidade de caráter. E ganham afeto e carinho com seus olhinhos úmidos de lágrimas. "Ah, lá vai a mocinha, suportando os males da vida! Como sofre, tadinha!". 

  Quando o sofrimento aparece, sei que, por dentro, abrem um largo sorriso. É quando sentem ganhar mais camadas na personalidade. É quando recebem a dó e a pena, que para elas soa como gloriosos aplausos. HORA DE PROTAGONIZAR ALGO (em suas vidas ordinárias)! 

 É o desejo íntimo de toda mocinha: uma boa vilã. É o desejo de toda mocinha, limpar a casa com panos velhos, aos chutes, aos berros, esperando a salvação. Participariam de uma narrativa, e se bem chorada, de um espetáculo! Como seria bom, para essa novela, se o príncipe encantado a visse sofrer entre os trapos. Da dó, brotaria um amor. Um amor-dó. Que dó. Quanta pena! E casam-se em dois minutos. Não encontraram o amor da vida, encontraram a reviravolta da história!

 E se o príncipe não tiver defeitos, e se não houver alguém para odiá-la, se ela se entediar do céu que vive. Se não houver vilãs à vista, se desespera! Busca o sofrimento, busca a pena, busca a dó. Deprime-se, grandemente sem seu alimento diário, que não é pão de ló. E então passam a ver pequenos dissabores como grandiosas tragédias. Isso porque não há nada abaixo da bondade da mocinha. É oca, coitada.

  E quando a vida é entediante por muito tempo seguido, e não há vilãs por perto, nada sobra das mocinhas. E quando perdem a mocidade, e enterram o príncipe velho, e se perdem dos netos, e do cantar dos pássaros (que agora as irritam, e são seus vilões), e se cansam da masmorra de ouro que elas próprias construíram? Amarguram-se, e aí, somente aí, formam camadas.

 E seu castelo vira masmorra, e os vilões tornam-se as pequenas coisas, e as grandes coisas, seus arqui-inimigos. E então se enclausuram, e veem os problemas do mundo. O ar podre que as conduziu à monarquia, e os anos de servidão inútil pagos com pena. Despe-se de seu papel, como um queimado se livra das chamas. Ojeriza seus dias inconscientes. Comove-se com a miséria de sua simplicidade e como é patética sua biografia. E arrisca-se a ler, realmente ler, uma ou duas páginas dos livros que antes lhe serviam de estética. E ali aprende um ou dois feitiços. E encontra motivos para querer viver a vida que não viveu. "Acorda, princesa, a vida não é um glacê"! Rebela-se! Formula os próprios planos para tornar-se a verdadeira protagonista. 

E aí aparece uma mocinha, para estragar seus objetivos.



quarta-feira, 25 de maio de 2022

Quem costura o destino das Moiras?

     Houve um acidente cósmico, em tempos em que não havia tempo algum. E foi um complexo estranho e único de elementos que nos formou humanos, que nos tirou do habitat natural da inexistência e nos possibilitou experienciar a vida. Depois de percorrermos várias e várias fases de adaptação ao nosso entorno, de sobrevivermos aos ambientes mais hostis, conseguimos obter um cérebro capaz de compreender quem somos, de questionar o ambiente, de nos fazer descer das árvores. 

 

Criamos a linguagem para a sobrevivência, nos tornamos tribos, vilas, feudos e cidades. Aumentamos nossos tempos em vida, através da ciência, e para lidarmos com mais tantos anos, passamos a apreciar mais as artes, nos envolvemos nos mistérios de nossa formação. Notamos a morte, durante esse processo, e passamos a perguntar sobre os significados das coisas - e os demos aos montes!

 

Fomos adoradores do fogo - aquele fenômeno incrível que possibilitou nossa sobrevivência -, do sol e da lua, dançamos para chuva! Humanizando esses eventos naturais, tornando-os mágicos, tornando-os deuses, por não conseguirmos compreendê-los ao tempo. 


O responsável pela nossa criação era Prometeus, e quem nos recolhia à morte era Hades, uns teriam sido criados por Deus, outros por uma variedade de outras entidades. Viemos do barro, da água ou do fogo. O nosso destino costurado pelas moiras e, depois, traçados por Deus. Essas questões nos assolaram e por elas nos enfrentamos em guerras, cuja finalidade era o estabelecimento do(s) verdadeiro(s) Criador(es)! Os que mais dizimaram, conseguindo seguidores coagidos, venceram. Por uma ironia, nos desumanizamos e então humanizamos os fenômenos da natureza, colocando-os acima de nós mesmos, daqueles que amamos, e do instinto de preservação, que tanto nos alçou.

 

Olhamos para o céu, para os confins da terra, para nós mesmos. Chegamos as conclusões mais inesperadas. Nos disseminamos e tudo se tornou comum. Hoje essa linha histórica, traçada à normalidade pelos poderosos, é o confortável status quo. Seguir esse caminho anestesiante, nos distancia da incrível oportunidade de existirmos plenamente, visto que não nos enfrentamos, fugimos do confronto podando os nossos impulsos, porque não vemos a oportunidade no existir, um mar aberto, mas no póstumo.

 

É um grande pesar a posição em que nos colocamos até agora, de tentarmos encantar o que por si só, sem mágica, já é encantado. Nossas existências são ínfimas em meio ao infinito, e por isso tão grandiosas para nós. Somos um curto suspiro, parte de tudo, formados extraordinariamente nessa forma, nesse tempo, nesse espaço, uma única vez. É uma aventura, a vida, e para aproveitá-la, precisamos despertar enquanto ela for capaz de durar.


É fato que a busca pelo significado do experienciar levou a humanidade à crença no divino. Com o desenvolvimento da racionalidade humana, o homem perdeu a anestesiante segurança de viver, irracionalmente, no ciclo animal de sobrevivência, reprodução e morte. Essa perda levou muitas das sociedades, instintivamente, à procura de proteção a esse novo mundo desvelado pelo raciocínio. Curiosamente, assim como o engrandecimento da democracia e a consequente diminuição do Estado, lançou os seres sociais na busca de apoio no Judiciário!

Cada região passou a criar, a seu tempo, divindades que as acolhessem em suas particularidades regionais, em consonância com as questões que os assolavam, moldando-as à sua imagem e semelhança.

O ateísmo é a simples descrença nesse(s) líder(res) como seres divinos e não meramente históricos. Não há segredo ou paradoxo, pelo contrário, uma pessoa é ateísta por motivos simples, quais sejam, (1) ignorância na existência daquela entidade divina (Ganesha, Hera, Hórus, Iansã, etc) ou (2) quando conhece a entidade e a nega como ser divino. Dessa forma, não há como chegar a outra conclusão, senão a de que todos os humanos são ateus, em maior ou menor porcentagem – sendo um exemplo disso um caso em que um cristão, monoteísta, conhecedor dos deuses gregos, hindus e indígenas, nega essas divindades tanto quanto um completo ateísta.

Um completo ateísta preenche as duas alternativas, ou seja, não crê por ignorância, vez que é impossível tomar ciência de todas as milhares de entidades existentes, assim como nega, por diversas razões, àquelas a que foi apresentado. O ateu assim é definido, por não ver coerência nas explicações dadas pela doutrina religiosa.

Em oposição ao transcendente e metafísico, um ateu completo é plenamente capaz de diminuir seu percentual de ateísmo, sendo que o peso da prova que leva a essa diminuição varia de descrente para descrente. Além disso, ele não só pode, como questiona seu raciocínio, sendo incabível ver nessa descrença uma forma de crença, visto que o conceito de ateísmo não se atém a um mero negacionismo que se desvela numa verdade inquestionável. Muito pelo contrário, tudo é passível de questionamento e mudança, o que afasta qualquer indício de que sua inconformidade com as explicações sagradas o torne indício do existir de qualquer razão superior ou espírito perfeito.


O descrente não descrê nas entidades de forma linear, ou melhor, sua descrença não é uma proposição concreta, não é um conjunto de ideias estático, críveis pelo que são, como se vê na crença, mas sim metódico (cujos métodos variam), científico, que pode mudar em suas composições de suas ideias, a depender do contexto histórico, científico, fático, psicológico, etc – o que não ocorre na crença, que é tradicionalista, rígida, imutável. 


O questionar do descrente apenas se assemelha ao do agnóstico, no que se refere a impossibilidade da comprovação do sagrado através do método científico, no entanto, difere em algo crucial: o ateu não crê naquilo que não se pode provar, é guiado pelos fatos, enquanto que o agnóstico é evasivo em chegar a conclusões, pois guiado por ideias, parte do pressuposto de que os seres divinos, impassíveis da comprovação através dos métodos humanos, tem todos a possibilidade de existirem, na mesma medida em que não tem possibilidade de existirem! É um crer/descrer, que só será desvelado, como numa caixa de Schrodinger, se houver Olimpo, Inferno, Submundo, Valhalla ou o Nada. 


Para ilustrar melhor, para essa vertente, a probabilidade da existência de Iansã é a mesma da de Zeus, do Deus cristão... ou mesmo do Uberman de Chocolate que eu acabei de inventar, considerando que todos esses seres não podem ser cientificamente comprovados! De fato, o ateu completo vê uma coerência na não-visão da coerência, visto que confere razão a razão, ao provável, ao científico, justamente para não se submeter a confusa filosofia agnóstica ou mesmo a práticas religiosas exaustivas - ressaltando que cada entidade possui sua escala de valores e rituais. 


O mais provável e coerente para o ateísta, é a hipótese de que a existência de tais entidades e religiosidades já tenha "completado o ciclo de conhecimento" através de uma possível "aparição"Tal aparição seria extraída da detida análise da história humana, no sentido de que os fenômenos naturais teriam sido humanizados e alçados ao sagrado. Essa hipótese, bastante forte, bastante provável, derruba genericamente todos os deuses - mesmo aqueles pelos quais somos ignorantes e que morreram com as sociedades ancestrais. Fora isso, não há como comprovar através do método científico de que exista qualquer deus, pois não há como vê-los, extrair qualquer parte de seus seres para análise, sendo preciso salientar que suas retratações são diversas, mutáveis de região para região, de doutrina para doutrina, dificultando, dessa forma, uma total comprovação de suas inexistências. 


No entanto, contra eles [deuses], pesam os pesados fatos e a reflexão acerca deles, que não leva a outro caminho senão o da descrença, como já dito anteriormente. 


Mas, se esses fatos se mostrassem leves, se o científico alçasse o divino, se se comprovasse que qualquer dessas entidades fosse a detentora da Criação, da Vida, qual alegria essa conclusão traria a humanidade? Nossa vida teria sido dada em vão, para o prazer de alguma dessas entidades, como se fôssemos animais em um pavoroso zoológico, criados com instintos que devem ser podados e punidos, com uma liberdade coagida pelo medo do inferno póstumo. Nossa carne negada para sermos aceitos em um pós vida infinito, como se fôssemos peões em um jogo sádico de algum desses deuses, aqui na terra, presos às suas insanidades. 


Se os deuses existissem, eles seriam temidos, visto que poderosos. 


Se existissem, com razão, os mais lúcidos de seus escravos 

os odiariam. 







sábado, 21 de maio de 2022

Vita brevis, ars longa

 Meus dias não costumam ser definidos por emoções. São definidos por estados com palavras terminadas em ditongos nasais terminados em "ão". Existem dias de criação, outros de absorção, uns de ação, e aqueles de interação.

  Nos dias de criação, que estão cada vez mais raros, por óbvio: crio. E a criação vem muito naturalmente. Veja-se: naturalmente, não facilmente. O que é natural não é necessariamente fácil. O simples é formado de muitos complexos!

  Nesses dias, os sentimentos me descem como enxurradas, entranhando-se nos meus órgãos, e tudo que é muito vão, de repente, inunda-se de significado. É tão profundo, que preciso retirar um tanto do excesso, senão me afogo. E como me afogo! Me afogo de águas velhas e novas, salgadas e doces. Dentro de mim há um estrondo! Períodos em que o rio e o mar dividem a mesma corrente. A água doce fazendo onda, e o mar, cachoeira. As águas cristalinas refletindo a luz, por baixo das profundas.
  
  Não sou eu que decido expelir tudo, são meus pulmões que exigem. Afinal, sua função intrínseca é respirar. Não sabem eles fazer outra coisa! É natural buscar o ar no afogamento. 
  
  E inconscientemente busco sobreviver - sempre com pouco sucesso. O que tenho é parco. Há dias de balde, de rodo ou de represa. Cada afogamento, um procedimento eficaz. Uma só ferramenta me é humanamente possível usar. O problema é que me aparecem todas no acesso da adrenalina. No desespero, o que escolher? Desenho, pinto, canto, componho, toco, escrevo, recito, manipulo, ensaio ou sapateio? E o que escoar será sério, como um drama, cômico ou trágico? Lógico ou subjetivo?
  
  Às vezes quero criar tudo de uma só vez! Sair das águas todas, tomar fôlego. Tão bom seria inspirar todo oxigênio disponível na atmosfera! Mas seria como retirar o oceano por um ralo... Santa impotência! Tenho duas mãos, um par de olhos estragados e um só cérebro que funciona sempre à meia-luz. Hipócrates, você estava certo, é tão curta a vida, e tão longa a arte! Há tanto a fazer! Tão pouco tempo quando há tanto! E na adrenalina do respirar, muitas vezes percebo ter me livrado de uma só gota. Um náufrago ainda afogado.

  Os de absorção, são dicotômicos. Fico aérea. É quando aprendo ou desaprendo. É quando assisto ou leio de forma alienada. É quando me entretenho de tudo que é fútil, mas também de tudo que é sagrado, de tudo que é profano, de tudo que é curioso, misterioso. Estou nos ares! Flutuo entre muitas áreas, sobrevoando todos os territórios. Longas revoadas, que nunca conseguem cobrir toda a extensão do conhecimento. 

  Absorvo por muito tempo, em silêncio. Pairando entre letras, suspensa ente as futilidades. Refletindo, balançando. Tanto a ver, tanto há para escutar! Inicia-se o voo e as correntes de vento me embalam. É prazeroso! E também frustrante. Uma corrente te leva a outra... quando se passa em ares rarefeitos, tremula-se até em ares condensados. Algumas altitudes são muito densas! Eu pulo em direção a grandes pressões , em outras ocasiões alço um voo ao chão. É gigantesca essa nossa atmosfera.

 Os dias de ação são ainda mais raros. É quando tudo sai do papel e se desentrelaça da mente. É chão firme. Terra dura. O problema é resolvido. Um passo de cada vez. A medida é tomada. O plano toma forma. O trabalho sujo é feito. Conheço esse solo! São dias muito adultos. Monta-se uma lista, inicia-se pelo difícil, por entre as pedras, finaliza-se pelo fácil, sentindo a firmeza do asfalto, quando a energia já quase se esgota. Apronta-se, arruma-se, ajeita-se. Um pé, e então outro pé. Cuidado... É tanto para aprontar, arrumar e ajeitar. Ao fim da trilha, sinto que termino tudo, sem conseguir terminar. Nunca tem ponto final, porque o horizonte nunca... nunca acaba. Perambulando pelo globo, há terra fértil, há terra seca, e é necessária grande experiência para saber onde compensa pisar. E nem sempre onde se pisa, se deve plantar. E nem sempre o que planta, compensa colher. É tempo de ter paciência às estações, e atenção à direção, pois não há como vagar ao mesmo tempo por toda rosa dos ventos.

  Os de interação são divertidos e também trágicos, isso à depender da companhia. Interajo. Discuto. Debato. Retruco. Rio, faço rir. Choro, me emociono. Me irrito, e acho que irrito um tanto, também. Me magoo, e acho que magoo também. Me traumatizo e traumatizo também. Faço o bem e faço o mal. E depende muito do ponto de vista. Sou fogueira e sou incêndio. E assim são todas as interações da vida. Não sei se me arrisquei entre labaredas, ou se iniciei alguma combustão. Se deveria seguir aquele facho, ou evitá-lo à todo custo. Devo manter esta chama acesa ou apagá-la de vez? Como me aquecer sem o fogo? Tomo um archote e levo as chamas comigo? Queimo-me até com isqueiros! Acendo velas que nunca assopro. E ardem em mim muitas chamas! Há interações que me causaram grande combustão, outras, uma fleuma. E algumas cultuo como a deuses, como faziam os antigos. Algumas queimei às cinzas, quando desejava aquecer. E... talvez, vice-versa. 

 O encontro de vogal e semivogal guiam meus dias. As letras que o antecede mudam a entonação, a palavra, seus significados. Muda-se tudo e ao mesmo tempo nada. É um ciclo que paradoxalmente não se repete, que rodopia no tempo, como a uma roda perdida. Ele vai girando e nunca sei muito bem pra qual rumo vai. Sua direção nem sempre é compreendida pelas leis físicas. Tem potência para subir uma colina ou para despencar de uma montanha.

Lá se vai minha roda da vida, e comigo dentro. Tonta, dentro do ciclo, da roda, da metáfora velha.

 
  

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Anedonia, céu laranja e catarse

  O sofrimento é necessário para o equilíbrio na produção de dopamina no nosso corpo. Muita dopamina, e os receptores dopaminérgicos se dessensibilizam. Com os receptores dessensibilizados, as dosagens de dopamina precisam ser maiores e maiores. Dosagens grandiosas, tão impossíveis, talvez, que nada que tenha essa escala nos acorde do sono da apatia. Veja só, muito prazer, prazer em excesso, o prazer em excesso continuamente e nos entediamos dele! Entramos, então, em estado de anedonia. 

  Anedonia é o estado em que não sentimos prazer nas atividades antes prazerosas, nos encontramos com uma apatia ao mundo. As maiores felicidades tornam-se pequenas. É necessário muito para nos alegrarmos. O muito torna-se pouco. 
O pouco torna-se nada. E nos causa dor, esse sofrimento. E essa dor pode ser causada para o bem - se permitir ser sentida. Pra mim, ela deve ser sentida. Caso contrário, a insatisfação nunca termina. E acabamos por prolongar o sofrimento com dolorosas conta-gotas.

 Adictos não amam as drogas, adictos sofrem, fisicamente e psicologicamente quando não as tem. E deixam de encontrar o gosto da felicidade no restante dos momentos sem drogas. Drogam-se, sentem um grandioso prazer, e nada a isso se compara. Não é felicidade, não é aquele segundo de êxtase e alegria. É o prazer. Puro e simples prazer. E a sociedade os observa com olhares julgadores, quando nos comportamos de forma a produzir mais adictos e maiores variedades de adicção. 

  Somos simples assim, bichos assim. Somos reações químicas tão insignificantes quanto aquelas moléculas que vimos mexerem, sem propósito, pelas lentes de um microscópio, na época da escola. Somos moléculas mais conscientes - algumas moléculas mais conscientes que outras. Mas moléculas, de todo modo. 

  Se não percebemos esse processo em que nos encontramos, vamos levando a vida assim - ou melhor, vamos sendo levados pela vida. Guiando nossas decisões por transtornos. E viramos mais moléculas. Uma morte humana, ainda em vida. E esse conhecimento, agora tão estudado pela neurociência, é explorado há milhares de séculos, pelos filósofos.

  Notaram antes da publicação em revistas científicas, que o excesso do prazer gera sofrimento. Aí está Epicuro, que não me contradiz! Note: antes, a catarse pelo flagelo, hoje, chama-se jejum de dopamina. E o flagelo para livrarmo-nos do excesso é tão maior atualmente, porque já nascemos com injeções contínuas de dopamina. Creio que sequer sabemos como é a realidade sem nossos prazeres. 

  Nasci na época da televisão, meu irmão do meio, na época dos videogames, meu terceiro irmão, na época dos computadores e blogs; e o quarto, na época dos celulares, smartwatches, reels, stories, alexas.  O quarto irmão, em alguns dias, não chega a ver a luz do dia. Não faz muito tempo, perguntei a ele qual era a cor do céu, a resposta: laranja. Laranja, como o céu do jogo, notei.  O quarto, tem menos tolerância a leitura de um livro, a prender a atenção a um desenho animado (!!). Ele joga em duas telas. Conversa com nicknames por um chat em um aparelho, e por áudio, em outro aparelho. Cansa-se da companhia física das outras crianças, mas nunca da online.

 Isso me fez refletir, lembrei do Bauman, claro. A demografia de pessoas que conseguem se concentrar em um filme inteiro, num texto longo ou em um amor que dure mais que dois dias está se reduzindo. Os filmes precisarão de menos delongas, os textos precisarão ser reduzidos à frases e o amor (re)categorizado: "Agora, Amor, és Plutão! Não mais planeta. És menos denso em sensação". E todas essas coisas não serão fontes suficientes de dopamina, para a nossa sociedade dessensibilizada.

  Talvez precisemos de cinemas sensíveis, como no livro Admirável Mundo Novo (Huxley), onde os sentimentos dos atores é repassado à audiência, pelos nervos! Talvez haverão pessoas procurando maiores flagelos, para equilibrar os maiores prazeres. E maiores prazeres para lidar com esses mesmos flagelos. Houve quem ateasse fogo em si mesmo, e isso na era das folhas de papel! O que será, agora?
  E a tendência é que o céu seja laranja para todos nós. E que a existência seja mais longa, enquanto o existir mais curto. Nós mesmos! Eu, você que lê. Nós, de gerações anteriores. Vivos. E ainda neste século! Será, ou melhor, está sendo, uma nova forma de existir. É uma existência de ultra estímulos. Uma nova forma de ingestão de dopamina. E o desafio, a quem tentar, será encontrar em si, uma nova forma de adaptar o prazer ao sofrimento. Inclusive, creio que novas formas de catarse se formarão. Talvez, a catarse seja desligar-se da tela, um ou dois minutos ao dia. Ou ler mais que vinte linhas seguidas, sobre um mesmo tópico. Veja só, acompanhe esse futuro comigo: A paciência tornando-se um novo tipo de poder, a resiliência, uma nova forma de força heroica. Autoestima será não usar filtro! (Já é).

 E o que farei nesse ínfimo meio tempo desta infindável escalada dopaminérgica mundial? Decidi. Sofrerei com estes  flagelos, sem jeitinho brasileiro, tentando afugentá-los com overdoses dopaminérgicas. Mesmo que me vejam como alguém triste. Até porque todos somos. Eu me assumo! E vou economizando nos prazeres, para que me satisfaça com o simples. Apurando os olhos para as minhas próprias armadilhas. E tentarei, através do sofrimento, ser mais feliz. Como pregavam os antigos e agora os neurocientistas. Aproveitando do velho e do novo. Do intuitivo e do racional duplo-cego randomizado. 
  Isso tudo para continuar a sorrir com a virada das páginas de livros, com a leitura de poesias, com a apreciação das artes, com meus próprios pensamentos. A me alegrar com as pessoas, a amar da forma como as amo, a sentir a falta delas como sinto, e a rir das comédias bobas do cotidiano, sozinha e acompanhada. E para isso, o preço é me entristecer com coisas tristes. É sentir raiva com as coisas odiosas. A sentir as sensações humanas, durante a vida, mesmo que pareçam bobas. A ser tida como melancólica, porque não me importa tanto a aparência do sentir, mas o sentir em si. Para sentir-me viva, quando esse outro estilo de existência levar (está levando) a população a estados depressivos e ansiosos, como se lê há muito, nos artigos dos jornais. Cansei-me das páginas do DSM-5! Não quero esses transtornos. Não quero aceitá-los sem um tanto de luta. Não quero ter um céu laranja, apenas. Quero um céu cinza de chuva, e depois cor-de-rosa. E ESCOLHER entre os céus, e o que sentir, e não ser INDUZIDA a pensar somente que o céu é laranja. Há uma janela, escolho olhar também para fora!

 E isso tudo, para ser uma molécula, despropositada, paradoxalmente consciente e feliz-triste até que o absurdo da morte me separe da vida.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Prato principal

  Em algum momento nos vemos obrigados a nos conformar. Talvez esteja conformada, talvez esteja distraída com outros problemas, com outras felicidades. Troquei de mesa, passei a me alimentar de outras histórias. 

  Eu já estava bebendo de uma jarra que não tinha líquido, saciando a sede com a memória da saciedade. Sentando-me solitária à mesa, acompanhada da sua ausência, que há muito havia se retirado. Eu fiquei. Eu permaneci. E duro foi o processo de me retirar, também, do assento. Contentei-me com cada vez menos migalhas, lembrando do sabor do prato principal. E como era saboroso! 

  O dia em que lemos o mesmo livro juntos, em que olhou nos meus olhos, o que se prendeu em meus lábios. Do dia em que ouvimos música, das noites abafadas de conversas atropeladas. Daquele dia de chuva, repleto de boas risadas. O dia em que você derrubou café, o dia em que vi seus pés desnudos. O dia em que mostramos os dentes um para o outro. Os dias em que importamos um para o outro, nas trivialidades, dos segundos passageiros de curiosidade. De nós nos descobrindo. Das suas mãos no beiral da porta, da cabeça recostada, perguntando a razão do tempo passar tão rápido, do cheiro da sua respiração, dos seus ombros, cabelos, da sua voz. Da sua voz dizendo meu nome: feliz, manhoso, irônico, cantado, irritado, cuidadoso. Dos nossos assovios, dos nossos desenhos. E então, em algum momento, a mesa foi se esvaziando. O que tem no cardápio? Lembranças.

  A primeira vez que você se afastou, saborosa era sua presença. Da primeira vez que você me criticou, saboroso era seu elogio. Dos muitos dias das ondulações de humor, saborosa era sua constância. Das discussões que davam em remorso, saborosas eram as intelectuais. De tentar te odiar, te amando. Da minha solidão, na mesa, contentando-me com o sabor de cada passo de sua saída.   

  Da minha saudade, quando saborosa era a história. E não a realidade. 

  A escrita não expressa o meu levantar da mesa. Os passos difíceis de empurrar a cadeira, levar os pratos, os talheres. Colocar as cadeiras no lugar. Ali, sequer haviam sobras. Essas coisas só se descrevem em mim mesma. Não têm nome e nem como nutrir.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Bateu à porta

 Bateu à porta, e eu abri. Senhoras e senhores, toquei a maçaneta e me surpreendi. Ora, ora, se não é a felicidade! "O que eu faria contigo em minha vida?", pensei, "não saberia onde acomodá-la". De todo modo, eu disse "entre, entre", e ela entrou. 

É tudo muito simples, nada demais. Por favor, não repare a bagunça. Por fora, a casa é bonita, não é? Pelo menos não é horrível. Vamos, ah... não precisa tirar os sapatos. Entre do jeito que está. Está perfeito! Bom, por dentro, se notar, estamos redecorando, por isso a bagunça. Veja, não tenho muito a oferecer agora, sua vinda pegou-me de surpresa. Mas é uma surpresa muito bem vinda. Bem vinda! Gostaria de fazer-lhe morada, de todo coração, mas esses cômodos... Olhe bem esses cômodos! 

Na verdade, acho melhor que repares, sim, a bagunça. As pilhas de roupas ali, os livros não lidos, um tanto de sujeira do passado. Repare, sim, para que não pense que não te quero por aqui e estou a arranjar desculpas esfarrapadas. Eu é quem sou esfarrapada, enquanto você é...a Felicidade. A felicidade em pessoa, pisando nesse muquifo. Já me arrependo de tê-la convidado a entrar. Ah, vieste para ficar? Veja, como poderia eu te deixar confortável por aqui? Dormiria de pé, tenho certeza disso! 

Não.. não, o problema nunca foi e nunca será você. O problema é esta sala aqui, mal arquitetada. É este piso irregular. São estas paredes descascadas e essa iluminação caótica. Tanto ocorreu por aqui, espero que entenda, tanto ocorreu por aqui!

Olha ali, repara bem, pretendo fazer dali uma varanda, e daquelas com sacada! Pretendo reformular a decoração e reestruturar as bases, mas o processo é bastante barulhento e constrangedor. Acho que, se houvesse a varanda, poderia te acomodar por todo o sempre. Como eu gostaria de já ter essa varanda, ou talvez uma boa janela. Uma boa janela e você ocuparia tudo por aqui. Juro, dar-te-ia o prédio inteiro! Mas, por agora, este lugar não é digno dos teus pés. Vamos, agora... te mostro a saída. Cuidado para não tropeçar, sinto muitíssimo, há um trauma ali, naquele degrau. Desculpe-me. Adeus. Adeus.

Ah, foi-se embora a felicidade. Ah, como gostaria que não fosse! E foi-se, para nunca mais voltar.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Remetente

Às cartas nunca entregues, relato

Meu luto e meu pesar

Santa a intempérie dos enamorados!


Destinatários perdidos...

Papéis extraviados

Confissões jamais lidas,

e segredos nunca revelados


No fundo dos armários

Lançadas ao vento

Desintegradas no mar

Aos quatro elementos!


A água a afogar

escritas de tanto alento

O fogo a inflamar

a frágil tinta dos sacramentos


A terra a enterrar

as letras dos amores lentos

No ar, a flutuar

o cessar dos sofrimentos


E o tempo, apressado em se esgotar

e a nunca te contar

o segredo do meu sentimento

quinta-feira, 14 de abril de 2022

O segundo em que tudo cresce

Na infância, o tempo é vagaroso
365 dias valem uma vida quase inteira!
Nada há nele de assombroso
Neles dançam os segundos em brincadeira

Sapateando, juntam-se os números, um à um
dos segundos às horas. Ora, nada incomum!
Do relógio ao calendário, o extraordinário
O momento tornou-se sumário!

No livro do crescer: Setecentos e trinta dias de sol
Mil e noventa e cinco dias da noite derradeira
Mil quatrocentos e sessenta e um dias de solo
Então germina no peito, o sentimento de cerejeira

O tempo é lento... 
Ao passo que rápido
Um estranho devagar
Brotou no peito um afeto que se funde com o amar

A semente vira planta
Em um segundo que nunca avança!
Em qual momento podemos precisar?
Como notar quando rompe a terra, a esperança?

Ouve, ouve bem dentro de ti o titubear
É o instante da primavera
É a semente que os céus quer laçar
Em tão pouco, o muito a raiar!

Da raiz ao broto, até o fruto que do galho se lança
Entre o sonambulismo e o acordar
A fração de morte e vida... E assim, repentina:
A fruta, ao pé balança.





sexta-feira, 25 de março de 2022

Eu estou escrevendo um livro chamado "Triz"

 Já o escrevi, reescrevi, reformulei, re-reformulei, desconstruí e reconstruí e construí do zero, depois subtraí, multipliquei por zero, apaguei tudo e então recomecei, e assim por diante, numa conta matemática que só faz sentido para quem é de humanas. Acho que ele nunca irá acabar. Acho que nunca darei conta de pôr um ponto final. Mas, cá está o primeiro capítulo:









domingo, 6 de março de 2022

No meio do caminho

 Ando sem saber o que escrever. O que dizer depois de tudo isso? Acho que nada. Vou colocando um pé na frente do outro. Não corro, não me apresso. Nada tenho a desejar. Observo o chão enquanto caminho. As pedras, a sujeira, o asfalto. Mas não sei aonde vou. Só sei até onde pisei. Todos os meus planos, que nem eram planos realmente, envolviam um sonho. Abstrato, irreal e impossível. E agora? Apatia. Tira-se os sonhos dos humanos e o que deles sobra de humano? Uma explosão à esquerda, um carnaval à direita, e eu caminhando sem rumo, tropeçando de um lado pro outro, como um embriagado qualquer, que sofre por um problema qualquer, nessa vida qualquer, que estapeia qualquer um que possui rosto. Rodopio os pés para olhar até onde caminhei, sem retornar. Não retorno porque desejo seguir em frente, mas porque é impossível voltar ao ponto de partida. O passado foi se apagando enquanto seguia meus passos. Quando olho para trás, o que vejo é um retrato, que vou colorindo, apagando e rearranjando ao bel prazer da memória e da saudade. Existir é um teatro, e meu passado é um cenário, o plano de fundo de uma trama que jamais desejei explorar. Me resta é caminhar, mesmo que arrastando os pés entre a folia e as tragédias. Caminharei melhor se me concentrar em só olhar para frente. Meus passos me bastam.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Algumas poesias por aí

Pra quê uso o facebook? Ultimamente, apenas para descobrir novos poetas (pelo menos, novos para moi). Abaixo, alguns poemas que encontrei naquela rede social e resolvi traduzir. De nada. ;)


eu posso
ser o
escritor

mas você
sempre
será as palavras

.
.
.
.
Desejo escrever da forma como penso
Obsessivamente 
Incessantemente
Com uma fome enlouquecedora 
Eu escreveria ao ponto de suforcar-me
Eu escreveria a mim mesmo em acessos nervosos
Manuscritos em espirais saindo como tentáculos no abismo do nada
E escreveria sobre você
muito além
do que eu deveria

- Benedict Smith
.
.
.
.

Existem quatro coisas nessa vida
que irão te mudar. Amor, música, arte 
e a perda. As primeiras três te manterão selvagem
e cheio de paixão. 
Que você permita que a última te 
torne corajoso.

.
.
.
.
Se você quer ser um guerreiro, 
prepare-se para se machucar,
se você quer ser um aventureiro,
prepare-se para se perder,
se você quer amar,
prepare-se para os dois.

.
.
.
.
O choro não é um indicativo 
de fraqueza. Desde o nascimento,
sempre foi sinal de que você está vivo.

- Charlotte Brönte

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

À Sara

Minha Sara, 

Belo o momento em que olhastes para trás!

Titubeou-se em pensamento de espírito voraz

Quanta ternura em noite clara


E retornaste, curiosa, em passos de carne

Quanta coragem!

Vi-te de lá. Vistes-me à margem

Mira aos céus, Sara! E alarme!


Em vão.


Te arrependerias? Resposta morosa...

Tornaram-te areia ao fitar-me em chamas

Em teu corpo granulado já não se refletia flamas

Nas tuas narinas de sal,  sentistes odor da polvorosa?


Esfarelaram-te sem misericórdia

Mas esculpida em tua face, inextinguível vitória

Qual o último do teu órgão, converteu-se em grão?

Creio, Sara, que o coração.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Excerto de Cartas a Hermengardo (Clarice Lispector)

"Senta-te. Estende tuas pernas. Fecha os olhos e os ouvidos. Eu nada te direi durante cinco minutos para que possas pensar na Quinta Sinfonia de Beethoven. Vê, e isso será mais perfeito ainda, se consegues não pensar por palavras, mas criar um estado de sentimento. Vê se podes parar todo o turbilhão e deixar uma clareira para a Quinta Sinfonia. É tão bela. 

Só assim a terás, por meio do silêncio. Compreendes! Se eu a executar para ti, ela se desvanecerá, nota após nota. Mal dada a primeira, ela não mais existirá. E depois da segunda, o segundo não mais ecoará. E o começo será o prelúdio do fim, como em todas as coisas. Se eu a executar ouvirás música e apenas isto. Enquanto que há um meio de detê-la parada e eterna, cada nota como uma estátua dentro de ti mesmo. Não a executes, é o que deves fazer. 

Não a escutes e a possuirás. Não ames e terá dentro de ti o amor. Não fumes o teu cigarro e terás um cigarro acesso dentro de ti. Não ouças a Quinta Sinfonia de Beethoven e ela nunca terminará para ti. "


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A conta não fecha

Não me arrependi e

Nunca vou me arrepender

de ter sentido tantas e tantas

coisas belas, por você


E mesmo que o preço seja alto (tal qual é)

E mesmo que nunca a pague por completo

Endividar-me-ei, sempre, com a tua presença


E dançarei os juros da tua ausência

Sem que a dívida cesse.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Hormônico

Engano bêbado

Encanto mágico

Simula o místico 

suaviza o sádico.


Desafino tático,

que aguda o trágico

e agrava impávido

Violento plácido!


Adoça o ácido

Reduz o fático

Consuma rápido,

que é céu sem pássaro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Olhando

O dizer do olhar

Diz muito da ocasião

Os nossos, ao entrecruzarem:

Primeiro encantamento, então paixão.


Passou-se o tempo, percebi,

que em teus olhos, pousou Razão

Então, tristeza, indiferença

Ao fim, gratidão.


E os meus?

Se ainda despertam atenção...

Nesta ordem: Encantamento, respeito

Amor e desolação.


Pois já que não me olham mais,

Aonde teus olhos, agora, repousarão?

Os meus, sei bem onde estão

No vazio deste vão.


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Incorrespondência

Antes de partir
deixou-me uma carta de ti

Li e reli 
e meus olhos fugiam de si

Pois li e, então, reli
as confusas letras em que nasci

"Teu coração descrito", dissestes
Preparava-me a sofrer uma dor que "a ti mesmo impusestes"

Confessou-se em correspondência
antagônica envolvência

Odiou-me como amei a ti 
Armou-se como desarmei-me a mim

E partiu,
tal qual permaneci.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Temporizador

Tal qual desaconselha-se atentar-se a hora

antes da sesta

Para evitar cronometrar o que nos resta

Desliguei o relógio.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Nãos-seis

Questiona-me! E questiona-me de novo
Uma só certeza tenho, com ela, a ti responderei:
"Não sei".

Deseja o impossível: que nunca errarei
Que será eterno, o reinado de um só rei
E, eu, como saberei?
A torpeza é estafante, o gracejo é que revigora

Prometo o Ontem. Mais ainda, o Agora.
A ti, soará ambígua, vaga e provisória!
Exitante estará, irás embora?
Ao Futuro não se artimanha.

A realidade é conceito que te estranha
Aprenda: o tempo entrega e logo apanha
Não aceita nossa insolente barganha
À desolação partirei. Ao gozo, regozijarei.

E essa franqueza anteporei 
às promessas do que desconheceis
Amanhã é só depois, não... não ansieis! 

Dobre-se à Coroa, e a ela conformeis
O instante seguinte
é Reinado de Nãos-Seis.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Premissa Maior

 Eu tô meio assim, sabe?

Meio que sei lá com não sei o quê, entende...?

É tanta tristeza, por tanto dia, que me destrambelhou.

Quando descobri que não existia um Deus, me senti frustrada. Como se tivesse sido enganada pelas pessoas. Minhas expectativas foram frustradas. Me veio um grande ódio. ENORME! ÓDIO das pessoas que me enganaram, da idiotice dos que crentes crendo em algo que não existe. Um ódio de ter tido as expectativas do pós vida frustradas. 

Enganada desde criança... Eu tava contando com  isso! Eu contava com a proteção!

Chutei o meio-fio, impotente, enquanto nisso eu pensava. No ódio que sentia da minha insignificância. 

As expectativas eram minhas, percebi. De mais ninguém. Quem crê, crê. Deus foi criado talvez por quem acreditasse, talvez não. A promessa é falsa, mas ter esperança sobre ela é algo que a gente resolve dentro de si.

E eu levei isso pra todas as áreas da minha vida, como uma premissa. A expectativa é nossa, a frustração é nossa. Somos um mundo que se regula a si. Não culpo o sistema solar por eu ser plutão.

Sou insignificante pro resto, mas pra mim, sou tudo que tenho.

O homem é indiferente, cruel, bom, caridoso. A humanidade é burra e incoerente. A humanidade tem, às vezes, grandes momentos de inteligência e coerência. Relógio quebrado acerta a hora duas vezes ao dia! É chocante como não nos explodimos, ainda!

E assim sou. Minhas expectativas são minhas. E deixo sentir raiva, tristeza e frustração. Mas evito que as terceirize às pessoas. A raiva, a tristeza e a frustração são de mim mesma.

Mas dói.

E quando dói, dói tanto que quase jogo tudo pro ar. Premissa maior, que se foda! Terceirizo, mesmo. Que se exploda! Dê conta dos meus sentimentos! Sinta culpa! Sinta dor, também. Role no chão, que te embrulhe o estômago, que queime em você o que arde em mim! 

E arde, caralho! 

E decidi há muito que deixarei sempre doer desse jeito, nessa mistura de raiva de amargor e de tristeza. E também decidi que enquanto vai doendo, vou separando a hipérbole da verdade, a emoção do seu impacto em mim.

E quem vê de fora, acha que é leve. E ousa me falar!

Aí que dói.

Vem sentir, então! Vem, porra! Vem pra briga!  Vem doer! Mas só sinto. Daí a triagem. Deixei sentir. Agora vou raciocinar. Ninguém tem que sentir nada por mim, ninguém tem que validar nada de alguém. Se dependesse da validação alheia eu estaria bem tranquila, sentindo é nada com coisa alguma. Eu dou conta de mim. Eu sei o que sou. Eu sei o meu dia, minha noite. Eu sei o que é choro e o que corrói, e o que foram as últimas cinco horas seguidas. E se, pelo caminho encontrar alguém, um só desses alguéns  que sinta algo comigo, que perca dois minutos do tempo se importando assim, vou deixar, que isso é caso raro. E sou grata por esse caso raro.

Humano, demasiadamente dualista. Incoerente desde o berço. E sou isso aí, também. Nascemos, choramos, rimos, depois acertamos em cheio e então a queda dói, e a gente rala, e depois se torna um vilão, depois um herói, um gênio e um palerma, um progressista e um ditador, então a gente caga, peida e morre. Puf!

A vida é um absurdo. Um absurdo! Que absurdo.

E, caralho, como dói!