sábado, 25 de dezembro de 2021

Desabafologia

 Há situações sem saída, em que o máximo que podem te oferecer é o paliativo do ouvir. Pares de ouvidos ali, que tanto me ouvem, que tanto sentem comigo, mas que nada podem fazer. Muitas vezes me encontro em situações em que se mostra difícil o exercício empatia. Canso os ouvidos, tentando me explicar, e canso de cansá-los. Não entendem! As palavras se esgotam, e os sons que emito perdem o sentido. Não tem culpa à conferir. Assim somos nós.

 Quando isso acontece, o que me resta é a arte. Não aquela em que me expresso, mas aquela que se expressa por mim. Busco nas telas o meu destino, nas cores tristes o ressoar das minhas sensações. As músicas chorosas choram por mim e junto comigo, e os desencantos fictícios e suas reviravoltas imprevisíveis, servem de encantos reais e de previsibilidade de possibilidades. A melancolia artística me impacta desse modo, e sinto que me abraça até mais fortemente que os abraços humanos. Ela me mostra aos olhos e conta pelos ouvidos que eu não estou só. 

  O que sofro é sofrível, o que me despedaça, despedaça. A arte melancólica não afoga, me resgata. Valida os sentimentos mais inenarráveis e faz companhia. Com ela, nunca estou só.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Poetria V

 Todos são melhores que eu

Alguns melhores que eu naquele dia

Eu

Melhor que eles

num só instante

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O Sonho

Engoliu-me O Sonho
Ah, foste tão aguardado! 
Focam estas vistas em tons esverdeados

Na relva, devaneios demorados
Sussurros e gracejos desgraçados
Entre bafejos, infantil descuidado...

Não acordo. Há perigo ao encalço!
Foges, tu, aterrorizado
Esqueceste tua ausência
No solo, ei-la forjado

Aguardo só, ao terror irado
Contento-me com as pistas do teu legado
Rastro para sempre marcado

Evaporou-se teu corpo alado
Consumido, deixou-me ilhado
Foi-se o presente, esqueceu-se o passado
E tamanha ausência me fez prostrado

Há um tanto de saudade...
Encheria um lago!
Daquela vida em terra firme
tão longe do imaginário.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Tempestades silenciosas

  Não costumava sentir lá muita coisa. Olhando aqui à distância, não... não percebia nada. Não percebo o que sinto até que algo grandioso me sacuda e me faça compreender, num salto, o quanto algo importa. É como se meus sentimentos fossem a caixa preta de uma avião e quando os reconheço, já é tarde demais. Ao invés de aterrissar, caí de amores. Uma queda livre, assustadora e embriagante. Sem paraquedas ou pensamentos de segurança. Estatelada no chão, ainda me sentia acomodada nas macias nuvens. Tão bom é amor! Agora, repetindo-se a história, sofrerei um novo impacto. Sei disso. E dos grandes! Como um raio solitário, que é acompanhado pelo estrondo, na distância de sua magnitude! Explico: Veio essa grande tempestade. Com ela, um show de raios iluminou o céu. Azul! Rosa! Branco! E então tanto vento! Foram todas as estruturas carregadas pelos ares, num turbilhão de mesas, cadeiras, janelas, metáforas e portas. No entanto, prossigo aqui, entrando na sala inexistente, apoiando os pés na acomodação inexistente, como se tudo prosseguisse no lugar. Quando o estrondo finalmente me acordar do devaneio apático, o que restará de mim? Tento muitas vezes adiantar o processo. Não adianta. Espremo os olhos com o fim de deles saírem água. Não saem. Então penso longamente sobre tudo. Os pensamentos são incessantes, porém desacompanhados do sentir. Os pensamentos são os raios? Os fatos são os raios? O sentir é o estrondo. Me é a única certeza de ser ele o estrondo. E por isso, tempestades silenciosas me assustam.



quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Poetria IV

Gota à gota
Desnuda-se o céu das nuvens
Finas facas, incontáveis

Delicadamente 
o grosseiro vento
se dissipa

Calmo silêncio

Aí resfria

Na pele,
o pelo arrepia

O grande estrondo:
- É tempestade!

Brilha a noite
E se pinta:
Azul, branco 
Lilás
e rosa

O revolto revolta
E molha

Se desfaz, 
refaz
E nunca cessa

Mas cessa.

O sol cresce e se espicha 
Perpassa as frestas 
Que alegria!

terça-feira, 9 de novembro de 2021

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Sinais

 Seus olhos são tão belos! Mas estão cegos. Quando olham em minha direção, me reparam com uma contida raiva. É contida, mas percebo pelas sobrancelhas, pela sua visão nebulosa, inanimada, que não olham para fora, mas para dentro, onde habita uma eu, talvez criada à sua imagem e semelhança. 

 E quando sua boca se abre para me responder, com relutância, os sons saem reprimidos. Os dentes cerrados importam numa acústica abafada. A escolha das palavras tendem às mais ríspidas. Há, entre seus lábios, um hálito particular, que cheira à ódio. 

 O silêncio não é menos pior. O silêncio é gélido, incômodo, como uma placa de alerta para que me afaste.

 Há em seu corpo, muitos sinais de perigo. Há em mim, o impulso de arriscar. 

 E me arrisco. 

 Sempre me arrisco.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Poetria II

Funestos versos

Sois assim,

meus... 

só meus os são.

Os antiversos

remorsos reversos

os reveses

 E a compunção.


terça-feira, 19 de outubro de 2021

domingo, 17 de outubro de 2021

H.H., erotismo e paradoxo

  Há muito tempo venho ensaiado publicar algo sobre esta senhora super cool e de nome gringo. Cá estou! 


  Hilda de Almeida Prado Hilst, conhecida como Hilda Hilst, era uma premiada poeta paulista, nascida em 1930. Formou-se em Direito na USP, mas dedicou sua vida à poesia, tendo escrito o seu primeiro livro no ano de 1950.

  Hilda também escreveu peças de teatro e ficções. Nos anos 90, adentrou na escrita pornográfica e, mais à frente, tornou-se cronista  para o Correio Popular em Campinas. Hilda faleceu no ano de 2004 - um ano em que eu estava ocupada demais, aprendendo a tabuada, para poder procurar conhecer essa mulher incrível.


  Meu primeiro contato com a poesia da Hilda foi através das redes sociais, em pequenos trechos desconexos, assinados pelas iniciais do nome: H.H. Apesar de tantas premiações dadas a uma poeta brasileira, seu nome nunca me foi mencionado durante a escola, daí que achei que ela era gringa - como ignoraram ela?! Dos poemas que li, achei-os bem eróticos, e essa interpretação foi confirmada quando uma amiga me emprestou o livro "júbilo, memória, noviciado da paixão", lançado em 1974 ((daí o motivo de não ter sido mencionada nas aulas de literatura)).


  Vou colar aqui alguns dos poemas da Hilda, que me inspiraram a explorar mais o erotismo, no poema "A tensão!", de minha autoria (link clicando aqui):


1. Aflição de ser eu e não ser outra.
     Aflição de não ser, amor, aquela
     Que muitas filhas te deu, casou donzela
     E à noite se prepara e se adivinha
     Objeto de amor, atenta e bela.
     Que te retém e não te desespera.
     (A noite como fera se avizinha)
     E ter a face conturbada e móvel.
     E a um só tempo múltipla e imóvel
     Aflição de te amar, se te comove.
     E sendo água, amor, querer ser terra.
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2.  
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento
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3.
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

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  Retomando, sobre o livro "júbilo, memória, noviciado da paixão", os primeiros poemas não são endereçados à alguém, mas com o passar das folhas, após o poema IX, ela direciona diversos escritos a um tal de Túlio, que são cheios de paixão, e depois de um certo rancor por ele

IX
Debruça-te sobre a tua casa e a tua mulher
E pergunta no mais fundo de ti, no teu abismo,
Se é maior teu espaço de amor, ou maiores
Que o céu esses rigores, a ti te proibindo
Tua amiga incorporada ao teu próprio destino.
Do máximo e do mínimo e a meu favor
(Não me louvando a mim o raciocínio)
Ressurgiria um conceito didático, exemplar:
De que não cabe medida se se trata
Dessa coisa incontida que é o amor.
O coração amante se dilata. O preconceito?
Um punhado de sal num mar de águas.
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III
Túlio: aceita a graça que te concede
A padroeira, a mãe do meu Senhor, 
De me tomar a alma e o corpo, e atrair
Para o teu próprio gozo, essa que anda
A te louvar, essa primeira
A te cantar no verso, tua amiga, eu mesma,
Incendiada, coroada de espinhos, e apesar
Sempre viva
(...)

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VI
Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E degustando o Êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio, faz-se um Tempo

[...]

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  Em seguida, um capítulo todo (ode descontínua e remota para flauta e oboé. de ariana para dionísio), escrito por uma persona chamada Ariana, é direcionado a um tal de Dionísio. E esse Dionísio trata-se de alguém que fez a Ariana sofrer, bastante. Depois desse capítulo, alguns poemas bastante tristes, que remontaram-me a ideia de suicídio, Túlio torna a ser mencionado. Pelo que me parece, os homens tratam-se de amantes do(s) eu(s) lírico(s).



IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem 
Quando veem a petúnia
Ou a chuva de granizo
[...]
Porque te amo, Dionísio,
É que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E por isso talvez
Te aborreças de mim.

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V

Quando Beatriz e Caiana ter perguntarem, Dionísio,
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
Ser nada à tua volta, sobra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor.

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  E o que entendo ter acontecido com Dionísio, aparece uns capítulos depois "Esquivança, amigo./É o que se faz em ti./Frígido, esquivo/Da benquerança de mim". 

  E quanto à Túlio? Um tanto mais a frente, ele é questionado pelo eu lírico "Tu ainda me amas?/ Eu te pergunto lívida/ (...) E te levantas, me olhas/ E te fazes cansado/ De perguntas antigas", umas folhas adiante ela lhe diz "Tem sido o teu reinado, inconsistência./ Ou te transformas, rei de fogo e justo,/ E, a quem merece, dás amor e alento/ Ou se refaz em ira a minha luxúria/ Me desfaço de ti, muito a contento".

 Instigada pela leitura desses amantes todos, acabei por encontrar um álbum do Zeca Baleiro, chamado "ode descontínua e remota para flauta e oboé. de ariana para dionísio", lançado em 2005, e um romance chamado "De Dionísio para Ariana", além de teses de doutorado e um tantão de artigos, e concluí que não fui a única instigada. Definitivamente.

  Durante as leituras post-júbilo, retirei mais algumas conclusões sobre essa série de poemas, como sendo a descrição da formação do amor da mulher para com o homem, cheio das antíteses que se juntam nesse sentimento calmo e agitado: o correto e o incorreto, corpo e a alma, o sagrado e o profano, o grego e o cristão, o céu e a terra, a terra e a água (e até entre a do mar e a do rio). 

  Antíteses, dilemas, dualismos, paradoxos ambulantes... E tentamos nós, cinicamente afastar a existência de nossas incoerências, vivendo uma constante punição por não sermos unidimensionais. Aí que vem o amor, o erotismo, a paixão, nos destrambelha a todos, e depois a poesia, que termina de desorganizar (ou de expressar essa desorganização?).

 Concluindo, uma provocação de Hilda para que você questione seus próprio paradoxos: "Se o teu, o meu, o nosso do tigre/ Se fizesse livre, como seria?" (...) "Te farias mais garra?/ Mais crueza? Ou nasceria/ Em ti uma outra criatura/ Límpida, solar, ígnea?".


terça-feira, 5 de outubro de 2021

A gota d'água

  Algumas solitárias gotas frias insistiam em cair pesadamente no asfalto. Aproveitou a deixa e acendeu o último cigarro, enquanto se escorava. Olhou para baixo e pensou na solidão, enquanto balançava o calçado, tão gigante, pisando naquela rua pequenininha, escurecida pela umidade da chuva. Ninguém lhe conhecia, assentiu com o trago. Sim... sim, sabiam seu nome. Poucos se alongaram ao sobrenome, e menos ainda permaneceram até o apelido, e mesmo estes não lhe conheciam. Sim... já passaram os olhos em seu sorriso e viram suas lágrimas, mas nada além das feições de seu rosto. Ouviram o tom da sua voz, mas nunca suas razões e o tamanho de suas feridas. Surgiram e sumiram (e incontáveis tantos) sem que lhe fizessem real companhia. Ser a si era seu segredo máximo, a que a ninguém interessaria contar. Era só, sim... era só. Acabou-se o cigarro em seus dedos. À distância somos chuva. Mais longe, ainda, estações. Aproximou o queixo à mão, afunilando o olhar. A gota ainda é uma gota enquanto cai, somente em seu fim se une inominada às poças que evaporam. A boca formou, então, um inaugural sorriso genuíno, e a lonjura entre a ponte e o solo já não lhe pareceu mais tão interessante, assim.  

terça-feira, 28 de setembro de 2021

De 1 a 10, o quanto dói?

   Todo aquele que sorri está alegre, quem chora está triste, quem franze o cenho está nervoso. Tão simples. Quando são os outros, tudo é simples, e dessa forma simples fomos ensinados a compreendê-los e assim, simples, tornaram-se em nossas perspectivas. Usamos esse conhecimento como máscaras, e reconhecemos nos outros essas máscaras como sendo suas reais facetas... mas é tão fácil manipular nossas máscaras no cotidiano, e parece tão fácil que os outros a manipulem, também! 

  Nunca se saberá, com certeza, mesmo que se observando com todo cuidado, se o sorriso esconde uma tristeza, se a tristeza esconde uma raiva ou mesmo se há um misto vultuoso de sensações ocorrendo por detrás de um olhar indiferente. 

  Mesmo que se acerte o sentir, ainda assim não se saberá a real proporção daquele sentir no outro, e de modo contrário, o outro não saberá a real proporção do sentir em quem o observa. Não há coisa mais íntima que o sentir, portanto. O sentir tem uma restrição ao mundo exterior, é algo que ninguém além do próprio ser pode conhecer. Pode-se encontrar as justificativas para as gamas de emoções, mas nunca será possível tocá-las.

  Por óbvio, conseguimos comunicar aos outros que estamos felizes, tristes ou doloridos, mas somente nós sentimos a felicidade, a tristeza e a dor. Os outros as dosarão às suas maneiras. Ainda, note que as palavras estão limitadas às regras externas, a um certo padrão universal de como funcionam os sentimentos. O machucado dói, o beijo dá prazer, despedir-se também dói, e amar também gera prazer. O ralar de um joelho é tão distinto de uma despedida, e o beijo é tão distinto do amor - e ainda assim a primeira distinção se trata de dor, enquanto a segunda se trata de prazer. Todas sensações são complexas e distintas em seus âmagos, ao passo que se coincidem nas palavras e consequentemente na nossa percepção com relação ao outro. Curioso é o âmago pessoal de cada palavra que expressa um sentir.

 Talvez a felicidade machuque o outro, e pode-se encontrar justificativas para uma sensação tão dicotômica quanto essa, mas o quanto ela alegra e o quanto ela fere, é algo que é sentido apenas e tão somente por quem se alegra e se machuca, ao mesmo tempo.

  Há raros momentos em que se sente uma conexão com o outro, de modo que as emoções parecem fluir entre si, como se fosse o existir indivisível. Chamam de empatia, e sente-se a empatia. Envolvem-se dois em uma só gargalhada ou um só choro, num momento em que humores aparentemente se tornam uníssonos em sentimento e proporção. Mas a empatia nada mais é que uma sensação, nada mais é que um sentir individual. Cada qual sente o que é de si e nunca o que é do outro. 

  As sensações íntimas são uma linguagem que não tem real tradução. E é isso que nos faz únicos, e é isso que nos faz tão solitários. Sempre sozinhos, dentro de si.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Remói

Felizes memórias

acabadas histórias

Cruel fantasia,

é tão alto teu custo!

E ingênua rega o que te asfixia


Imerge no líquido embriagante

Vai! Rememora!

Mergulha fundo

e afunda

Bem longe... distante do agora

E ainda mais adiante,

sem que nunca lhe baste 

a triste alegria


Imerja na sola história! 

Ensope de felicidade genuína

Submerja em sorrisos que cessaram

e em esperas ansiosas

que não te esperam mais

E rindo,

se afoga


Alto o preço da memória!

Se remóis,

te estorva

Se aconchega, 

te devora

E ainda, teimosa, afliges a água fria.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Apatia

Onde meu corpo descansa

não resta uma só gota de sangue

A madeira - úmida - me ama

e acolhe com temperança


Ouço-lhes abafado, e lamento

Fétido unguento!

Todos tão vivos e sorridentes,

e o meus dentes se desprendem

e minha pele se consome.


Sentem o sol, a tristeza e o agora

Enquanto mal sinto a terra -

essa, impaciente

me devora.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Embrionário hinário

 Quando se ama, o outro se torna o epicentro dos sentimentos, e portanto o nosso mundo, a nossa casa, a terra em que (re)nascemos e ali formamos a nossa nova vida. O outro torna-se, de uma só vez, nosso lar e criador, e dele retiramos a validação da nossa própria existência como suas criaturas. Afinal, o que somos nós sem as leis físicas e as reações químicas do cosmos que nos forma? E no momento em que o outro ganha tamanha proporção em nosso coração, quando o outro é, de repente, o universo, a sensação é a de que alcançamos o nirvana, que somos um com o outro e unos, um, "tudo está bem, tão bem!". Meditamos nisso, nos encontramos nele, e nele nos acolhemos "esse é o incrível Cosmos". Observamos o céu em seus olhos, e é tudo tão belo nesse mundo! "Belo Cosmos!". Vai-se o sol, que esquenta e cai a noite, que aquieta e nos acolhe, vem o frio, que ameniza e então chove, molha-se o solo e nascem as flores e suspiramos "assim é o belo Cosmos!". 

 Tanto admiramos "Belo Cosmos!". Admiremos O Cosmos, "Belo Cosmos!" onde as brilhantes estrelas colidem, "belo Cosmos!", e então gloriosamente implodem "belo cosmos!", transformam-se em buracos negros que a tudo sugam "cosmos!" e em que os planetas se formam e as galáxias se misturam, e o tempo se confunde entre gravidades diversas, e novas formas de vida surgem e ressurgem aos montes, algumas florescem e então morrem, e outras sequer desabrocham "se ninguém as viu, foram sequer vida?". Assim é O Cosmos, assim distante, assim indecifrável, assim imprevisível, assim caótico, assim indiferente "cosmos?!".

  "Indiferente cosmos!". Fantasias e delírios narcísicos à parte, o cosmos é o que é, ele existe e é tão menos sentimental e humanizável! O cosmos não se revela tido que nada tem a esconder. O cosmos não dá ou retira ou retribui, não cria ou destrói "indiferente cosmos!".

 Reconheçamos! No cosmos há tudo que há "e todos aqui habitamos!". É o tecido leve, onde está costurado meu lar "nosso lar!". Nele em que existimos tantos anos antes, em que até então não deixamos de existir e em que existiremos (e hei de existir!) tantos anos além, até nossos dias acabarem. Nesse cosmos em que de fato existimos, em que somos a criatura indesejada de um criador sem desejos, onde nasceu a terra em que apoiamos nossos pés, esse cosmos findará em si, também, num dia qualquer, seja noite fria ou no alto sol do verão.

 E nessa, exatamente nessa realidade, em que apoiamos os pés e formamos pensamentos, é onde nos validamos como seres da existência, "aqui!" nesse cosmos "nesse cosmos!"... que é tão diferente de mim, e com tanto em comum à você.

 

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Vagueza

 O momento passa, e nenhum que o segue se assemelha ao anterior, e assim por diante. Quantas vezes já falei sobre isso? Muitíssimas. Falo muito do óbvio. 

                                          Repito. 

Volto. 

                     Reanaliso. 

  Aqueles pedaços da história, antes tão vívidos, foram se misturando e se esvaindo e se distanciando do tempo em que estou agora. Tudo que me lembro, aqui, embaçou-se. E como há de embaçar!

 Vejo nossos dias como vejo meu reflexo no espelho do banheiro úmido: encobertos por um tipo de vapor. As cores ficaram em tons azulados. Aquela camisa... não teria sido ela marrom? Bordô? É injustiça que minha memória tenha escondido os detalhes, mas por outro lado, as sensações, essas ao menos conseguiu preservar. 

 Quando me reconto pela décima vez sobre aquele dia quente, esboço um sorriso, e quando me reconto sobre o dia chuvoso, esboço o choro. Como eram tristes os dias chuvosos, como eram felizes os dias de sol, e como foi agridoce aquele dia quente e chuvoso... E assim, a depender da memória que se fixa, meu dia é conduzido pelo sentimento lembrado. E todo dia sinto algo antigo misturado ao novo, é uma alquimia! Todo instante sinto. Ainda sinto sentimentos que deveriam ter se embaçado junto com o reflexo do espelho. Em mim ainda habita um incômodo sentir que não se transformou em memória. Para que isso aconteça, resta mais esperar.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Amizade

 Não lembro da primeira vez que tive um amigo, mas me recordo precisamente em como fazia do desconhecido a amizade. Era simples e tão orgânico! Subia numa árvore com outro ser humaninho, sequer sabia seu nome, mas bastava uma risada e ali eu mesma punha o laço da relação: amigo. A mãe chamava pra casa e eu já reclamava que queria brincar mais "brincar mais com meu amigo, mãe!". A amizade é o espaço que dou para alguém ocupar no meu coração e quem ali entra chamo amigo. Quem pisa nesse lugar, reside pra sempre. Todo canto do meu peito tem um amigo. É uma infestação! Similar a uma colmeia, onde me encontro acolhida. Se o amigo se foi, não há espaço vago, pois fica a memória do amigo. Ali está o amigo que me ensinou queda de braço, ao lado o amigo que me ensinou o primeiro beijo, mais a frente o amigo que acendeu meu primeiro baseado e está ocupado o lugar até do amigo que me ensinou o que não era ser amigo. Esse último, muito importante. O amigo que não é amigo me deixou mais criteriosa. Se terei o coração ocupado, que seja bem ocupado. Os espaços cedidos estão consumidos, e hoje, com os novos, tenho mais cuidado, tanto mais cuidado! Sintam-se em casa, amigos. Enquanto tiver um coração que pulsa, não sofrerão com as intempéries, em mim terão abrigo.

Justiça

 A justiça é um conceito difícil, e assim como o conceito da liberdade, é algo que todo mundo sente que sabe, mas que se enrola ao definir. E como se enrolam... Se pudesse humanizar a palavra, seria alguém de peito estufado e sorriso no rosto, dizendo orgulhoso que fez o que é certo. Justiça! Justiça! Justiça? Justiça?! O que é isso? Justiça é notavelmente fazer o certo, e o certo é que o certo é ainda mais abstrato. A Justiça é, portanto, de uma conceituação abstrata, e de forma irônica choca-se com frequência histórica cada vez mais intensa na Liberdade. Note: Quando se cresce a conceituação da Justiça, numa tentativa de limitar sua aplicabilidade, cresce o número de colisões com sua irmã abstrata, a Liberdade - que é mais velha e mais frágil e tão mais vaga, e como todo velho, tão facilmente abandonada! Mas isso deixo para outra hora. Por ora, A Justiça parece um agir contra o errado, e o justo é que O Certo prevaleça. É o certo, portanto, a raiz da Justiça. O certo é a rocha de gelatina em que se funda a Justiça e todos seus desdobramentos. Para os hadza o certo é um, para um ocidental vegano o certo é outro, mesmo que ambos tenham por certo a preservação da vida. O certo é definido pelos conceitos de grupo, pelo ambiente, pelos acidentes ideológicos, pelas guerras vencidas, pelos poderosos, pelos antes fracos que tomaram o poder, pelos tons cinzentos e falhas argumentativas, pela vantagem: pelo pensamento que prevalece. Um estatístico se debruçará em linhas múltiplas de raciocínio que tanto se desdobraram na história, a fim de encontrar de onde saiu que aquele certo é justo e que aquele injusto é errado. Seja lá o que seja certo e seja lá o que seja justo, isso é o certo (por agora) e ponto final.

Mudança

 Mudança tem algo de indissociável com o tempo. Demos nome de tempo pra essa coisa que nunca para de mudar, que acontece incessantemente. Eu sempre tento agarrar o tempo quando a mudança que estou vivendo é boa demais para o que virá em seguida. Pare, mudança! Já está perfeito por aqui! Tentei segurar, sempre tento, na verdade, e não consigo... então tento decorar aquilo tudo pra me deliciar depois. A maravilha que é ter um cérebro dotado de reviver memórias é poder simular tantas vezes quanto possível aquele momento de mudança estática. Mas a mudança afeta até a memória. Muda o momento simples para uma grandiosa ópera, muda os móveis de lugar. As mãos nunca ficaram tão próximas, aquela não era a cor do meu cabelo, aquela música sequer havia sido lançada, então não era a que tocava na pista de dança. Nunca se revisita uma memória da mesma forma. Tudo e absolutamente tudo muda. E que bom é mudar, porque a ausência de mudanças é a inexistência, enquanto mudar é a exploração da vida. Não sou a pessoa que fui, e pouco me importa. Não penso da forma como pensava, e pouco me importa. Mudei ao ponto de aproveitar as mudanças. Mudar é uma constante possibilidade de amar mais, de sorrir mais, de melhorar, de sentir o sangue nas veias, correndo e correndo até não correr mais.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Tanto

Afeto há tanto encoberto

Revelo-o e desnudo:

Ao primeiro sinal,

amor

Amar hei.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Necessidade

Não precisa ser perfeito

só precisa ser

E nem disso precisa


Porque o que se precisa

é que não se precisa de

coisa alguma


Muito menos

de algo.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

A tensão!

Como Hemingway aconselhou,
escoarei as dores na escrita
Palavra à palavra e
ditar claramente
diretamente
sobre o que ressoa 
e o que grita

O que assola é a sentença 
a da morte 
Morrerei de desejo num instante
A tensão é tão forte!

Atenção
A tensão
É animalesca e direta
Um risco

O desejo é do sexo, 
mas mais do que isso e
tão mais!
Tão mais que isso!

Mais que tudo que já quis 
é ultrapassar a membrana
O som à contraposta 
e o calor que do corpo emana 
e que envolve
Incivilidade! Selvageria!
Quero a luta entre os lençóis da cama

Quero o rosto contorcido 
As mãos levadas aos cabelos
polegares pressionando as têmporas
A voz subindo e subindo 
calando o silêncio com grunhidos 

A ausência do palavreado
As mãos pendendo os lábios,
friccionando os dedos no contorno da boca
Sorriso irracionalizado 
e o sangue do tortuoso caminho de veias
vagaroso e deslizado

O prazer do desejo sendo satisfeito
E nunca do satisfazer!
As pernas cruzando-se, embaralhando-se 
em d 'estratégico emaranhado

Não se juntam os átomos pelo constituir da física
Mas a arte do prazer, 
inverte as leis
juntam-se todas as partículas

O olhar vago,
míope
só alcança o outro

A tensão!

Para quê a visão? O porquê do enxergar? 
O toque vê, o toque olha, o toque admira
acalma, e traz o extasiar
A distância dos olhos é preenchida pela fantasia

O desejo caloroso é inebriar toda a razão
criando o paradoxo dos sentimentos
a embaçar os olhos de suor
do provocar incontrolável, 
retira do pensamento o próprio pensamento

Morrerei com desejo
a falta do sabor

O desejo de ter,
amor 
(Nunca por inteiro)

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Justificando

 Acho muito difícil pedir desculpas. Então não vou pedir, porque não quero qualquer coisa em troca, vou apenas e tão somente entregá-las e à você cabe aceitá-las ou não.  Talvez você sequer seja a pessoa a quem esse texto de desculpas se enquadra, e tudo bem, em algum momento ele lhe servirá. Quem eu quero que leia isso, não o lerá, e a culpa é toda minha. Novidade.


 Não cometi qualquer crime, qualquer coisa que tenha uma sanção expressa - mas nem por isso deixo de te dever minhas sinceras desculpas. Machuquei de forma invisível, porque lhe parti as emoções ao meio, de modo irresponsável, a fim de encontrar nelas algo que queria. 


  Desculpa por tentar te vasculhar, sem parar para refletir se invadia sua privacidade, se algum assunto era delicado, se te doeria. Sou curiosa, mas não muito empática. Por tantas vezes me senti psicopata ou mesmo narcisista... ou ambos os transtornos ao mesmo tempo! Sei que não sou, porque me importo. E muito dramaticamente me importo, apesar de não conseguir trazer qualquer parte disso à superfície.


 Sinto muito ter jogado tantas palavras em você, porque ali pensei apenas em mim. Não em nós. Não em você. Mas apenas em mim. É difícil pensar no coletivo ou no contexto, quando sinto de maneira tão egocêntrica. Quero para mim, sem divisões, a atenção toda. Falo por falar, argumento por argumentar... Em algum momento sentiu que poderia sequer estar ali que eu continuaria falando? Penso que sim.


 Sinto muito ter ocupado seus ouvidos com milhares de ideias e nunca ter-lhe emprestado os meus para exercer a função de ouvir. Toda conversa irá girar em torno do meu umbigo, das minhas opiniões, da minha visão de mundo, da minha perspectiva, e por isso sempre me pego sendo insensível. Foi sem querer, é costume meu pensar para fora, e não internamente, antes de dizer o que é dito. Por isso tudo, já mudei a configuração das minhas convivências por tantas vezes. Busco melhorar, mas algumas pessoas são tão raras, que me despertam o pior - a intimidade! Ninguém tolera algo assim, e está tudo bem, está tudo certo. 


 Acredito que preciso de um tempo de mim, para tomar uma certa distância de quem sou e ficar em silêncio, trabalhando no meu jeito, sem que isso envolva outras vítimas. Não posso mais apenas justificar, se quero que fiquem próximas a mim. Quero que fiquem perto, que fiquem à vontade, que fiquem felizes, e não que apenas fiquem por um constrangimento. 


 Não sei mais o que escrever. Perdão. Sinto infinitamente mais do que demonstro. Desculpa.




 



quinta-feira, 20 de maio de 2021

Gradagem

Como sinto? Primeiro, o pequeno impacto que danifica a pele. Em questão de segundos, esse dano acessa meus nervos, é transmitido ao cérebro e uma reação é produzida: dor. A dor não é sentida à toa, é uma forma orgânica de te alertar que existe um problema ali e que ele deve ser contido para não se tornar algo maior. Se seu sistema orgânico de autopreservação estiver saudável, a dor acontece quando é tida como contornável ou quando a causa é passível de ser contida. É problemático quando a ferida não causa dor alguma, ela cresce e se instala e muitas vezes mata, por ter tido todo esse tempo, agindo furtivamente.

Quando sinto a dor, ando até a caixinha de remédios, limpo a ferida e colo um curativo para proteger meu corpo até que meu sistema imunológico atue para fechá-la totalmente. E quando a cura se inicia, já não choro, apesar de continuar tratando aquela ferida, que agora se mostra uma área sensível ao toque. A sensibilidade vai reduzindo ao passo que ela some. Talvez deixe uma cicatriz, mas se bem cuidada, não deixará sequer uma memória.


Um fato interessante: Às vezes antecipamos a dor, sentindo-a antes mesmo que ela aconteça. É uma dor mental, que dói na mesma intensidade, mas só cessa quando a dor real, física, advém. O corte efetivo, corta a dor da mente. Troca-se uma dor que não sangra, que não tem curativo, para uma dor totalmente contornável. É libertador. Dolorido, mas libertador.


E quando a dor é mental, e sem previsão de se concretizar fisicamente? Aquela dor que não advém da ansiedade que é ver que uma agulha te perfurará em alguns segundos. Aquela dor que não se alcança, que fica parecendo pior, por não ter solução, aquela que não se alivia através das lágrimas.

A libertação vem da dor física e curável, a gente aprende isso quando rala os joelhos pela primeira vez, depois de saber, com certeza, que aquela manobra de patins iria te espatifar no chão. Será que é assim que pensam as pessoas que se auto lesionam? Trocam uma dor por outra, porque a outra é prática e simples de contornar? Uma dor distrai a outra? É, talvez pensem assim. Trocam, para reduzir o tempo do sentimento angustiante. Trocam e trocam e trocam. Me parece bastante tentador esse mecanismo. Parece eficaz transformar algo inalcançável em alcançável. Se não fosse eficaz, ninguém o utilizaria. 


Mas é eficaz por quanto tempo? Quando se foge das dores da mente, quando não se exploram as suas raízes, evidentemente, fica-se lesionando como forma de cuidado, a fim de conter apenas e tão somente os ramos. Que semente potente essa que cria a dor da mente! Principalmente quando encontra solo fértil. O mundo, tal como é, grada qualquer mente. 


Se se pensa um tantinho que for sobre essa vida, que passa correndo diante dos olhos, e nesse mundo, que suga suas forças e que não as renova, cujas belezas não compensam as angústias; nas pessoas, que nunca estão dispostas a pensarem em algo a não ser em si mesmas; que ninguém teria paciência para te ouvir ou compreender, porque amar o próximo não é útil o suficiente no final das contas; ou porque o problema não está nos demais, mas em si mesmo, que não se responsabiliza pelos próprios atos, que é frágil demais pra existência, que sofre por pouco ou quase nada, que não se encoraja, que suga o sorriso dos outros, feito o mundo que te devora...


Ai! Ai! Ai! 


A semente brotou em mim.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Catarse

A vida parece muitas vezes intolerável. E de fato é. Muitos dos nossos sofrimentos são tão amargos, que simplesmente pensar que eles cessarão nos soa patético. Me parece que prolongamos o sofrimento porque queremos sofrê-lo em toda sua importância. Se sofremos pouco ou o esquecemos, é como se a dor fosse ínfima demais para ser sentida, como uma criança que se esgoela por um corte na folha sulfite - olhamos essa cena com um sorriso professoral e pensamos "ela não sabe o que é dor, ainda". Não, não, não... nosso sofrimento é tão maior! Tão mais relevante! Nosso sofrimento é tão único e tão importante, que ninguém entenderia as suas razões. Apaguem-se as razões! Não é um corte de sulfite, é uma gloriosa tragédia . É uma tragédia que se passa repetidamente dentro do crânio e tão somente ali: boletos, trabalho, casa, casamento, divórcio, amizades, impostos, crianças. 


Sofra, mas não conte - é a lição que todo adulto aprende desde a adolescência. Na adolescência, todo adulto sabe de cor a sua linha de sofrimento, e te contam com aquele desdém irritante. E é tão mais irritante quando o sofrimento, de fato, segue aquela linha temporal!


Olá, puberdade! Sofrerá pela aparência física, sofrerá pela confiança, sofrerá por não conseguir se adequar aos grupos, sofrerá por não ter um ou cinco amores correspondidos, sofrerá porque verá no álcool uma saída e seus pais não te entenderão. E ouvirá uma música rebelde, porque aquela arte parece te compreender. E há tanta revolta! E há tanta alegria e tanta tristeza! E aquele desdém geriátrico sobre as dores, sobre quão patética e comum é a sua vida, só te farão aumentar o volume do rock, punk, metal, grunge, poprock, trap... até o próximo estilo musical. "MINHA DOR CONTA PORQUE MINHA DOR DÓI!".


Acho que essa lógica, a interligação de sentimentos e orgulho, é levada pela maioria para os outros aniversários e até o fim. A importância da dor vira uma importância do ego. A importância é maior porque as dores envolvem dinheiro. Ótima justificativa. Agora sofra em paz. Mas parece que isso não basta... É um show bizarro. Algumas pessoas simulam a tristeza e a levam ao ponto de não conseguirem mais diferenciar o que é a tragédia e o que é atuação. Na tentativa de fazer o sofrimento passageiro justificável, acabam por torná-lo permanente. E dali, mudam-se todas as configurações da própria existência.


Agora a infelicidade está completamente instalada nas suas funções, e ela te vira e desvira as entranhas cerebrais. As leis são novas e conflitantes: Sinta a tristeza! Mas apenas por dentro. Chore! Mas apenas à portas fechadas. Não quer ser conhecido como um doente ou leviano? Siga essas regras. Fique em silêncio. Não compartilhe. Aquiete-se. Que doa, e que não procure remédio. É normal doer, existe quem sinta mais e reclame menos. Trabalhe para não pensar. Beba para sorrir. Mas não sorria demais. Sorrir demais, não se sabe ao certo o porquê, é perigoso. 


Será que acolhemos essas tragédias como forma de nos sentirmos especiais e olhamos a felicidade com desgosto, porque ela de alguma forma diminui esse apelo dramático? Ou não nos entregamos à felicidade e a odiamos porque ela é uma amiga cruel, que te ama e te envolve e se esvai tão rapidamente quanto chega? Por que rejeitamos o sorriso quando ele é sentido por todos os nervos? Por que não deixar essa vida mais leve? Por que tantas cartas de suicídio e tão poucas frases verdadeiras de auto encorajamento? 


Encorajamento é tão brega, é tão ridículo - e é isso que suas novas funções te dizem, e é assim que se apaga qualquer chama de auto piedade. Afinal, piedade é fraqueza, mas autoflagelação é honra! Mas honra para quem? Honra para quê? Pra onde vai toda essa honra, quando ninguém sabe dos seus sofrimentos silenciosos? É uma guerra íntima de repressão da alegria, que se finda numa guerra íntima de repressão da dor. E como toda guerra, após um tempo, perde-se o sentido, não se sabe mais porque o Hezbollah atacou Israel, porque o antissemitismo tomou tamanha proporção, se os liberais são mais culpados que os conservadores. Não há sentido!


Esse inconsciente, agora antônimo da paz, permanece ali, guiando sua existência, através de suas escolhas, provocando maiores e mais explosivos conflitos e se retroalimentando do caos que criou para si e "Ai, minha dor é a maior do mundo e com honra, em silêncio, a sofrerei".


Corte na folha sulfite, joelho ralado, cinco amores não correspondidos, inadequação social, boletim escolar, meus pais não me entendem!, boletos, trabalho, casa, casamento, divórcio, amizades, meus parceiros não me entendem!, impostos, crianças, morte. Mesmo sabendo de cor a linha temporal de todas as dores, se pensar bem, não é ser adulto que dói, é ser que sempre doerá. Não é fácil, mas proporções da tristeza podem ser diminuídas, caso se escolha abandonar as armas e pôr fim à guerra sancta interna de autoflagelo e caos perturbador.


A paz interna é mais difícil que continuar a própria guerra. São muitos acordos e mudanças, são muitos planos e novas estratégias. É ter que lidar com os inimigos com diálogo, e abraçar sentimentos que sobreviveram à muitas tentativas de homicídio. É difícil, mas, por agora: HASTEIE A BANDEIRA BRANCA!

 


segunda-feira, 26 de abril de 2021

Sacramento da penitência

 Foi desvelado o mistério evidente! Desvelado pelos meus próprios lábios. Em palavras ditas em alto e bom som. Quase bom som, mas altas, e um tanto confusas, decerto... Mas claras como puderam ser! Coloquei tudo à mostra? Quase tudo... Mas apenas porque me esqueci. Me esqueci, porque naquelas longas horas de desabafo e confissões, me invadi de sentimentos e eles estavam tão amarrados em tantos cantos da mente, que inflamaram a minha memória. Lembrei de te dizer sobre os dias menos importantes e as razões mais mundanas. O que te importa? Dias de conversa ainda não desenrolariam esse gigantesco novelo. 

  Talvez se tivesse dito tudo corretamente, da maneira ajustada como achei que diria... se tivesse refinado o português e floreado as palavras todas... se houvesse um contexto melhor... a rejeição não teria ocorrido? Como mentimos para nós mesmos! Usando vagamente o cérebro, é certo que teria ocorrido de toda maneira.

 Que trágico é ter errado na intuição quanto a reciprocidade dos sentimentos e acertado quanto aos piores temores. Temores que envolviam a sua total ausência de conflito interno, e aquela conhecida repulsa apática dos objetos de afeto que não querem alimentar as esperanças dos apaixonados. Já senti tal repulsa quando um ou outro apaixonado se embrumou entre admiração e amor e declarou essa confusão toda pra mim. É difícil ouvir uma confissão assim. É difícil ser o objeto de afeto e ser quem o deseja. É difícil perder tudo, quando o que se tinha era quase nada. Queria o pão e agora sinto falta de quando me contentava com as migalhas.

 Às vezes me cabe a saudade de viver nos delírios apaixonados de antes, de acreditar que os finais seriam todos felizes, que seria recíproco se eu falasse, se eu apenas tivesse A Coragem e Falasse! Sinto falta desses prazeres pessoais, de viver dentro da minha própria mente, cheia de auto enganações. A imaginação te faz se sentir mais relevante do que é, faz bem pro ego, te dá motivos pra sorrir. A imaginação embriaga como o álcool, e eu precisava voltar à sobriedade. Quis mais que ilusões e consegui a realidade.

  Que coisa patética é essa a de viver e ainda mais de viver e amar, e ainda mais e mais a de viver e amar e não ter amor de volta. É patético ter vivido tantas grandes tragédias e emoções fortes, que flutuavam entre monumentais momentos de felicidade, magníficas conquistas e heroicas aventuras, e ter que abandonar as armas e as fantasias e acordar cedo, com o toque agudo do despertador, pegar a condução, sentindo o cheiro da fumaça do escapamento, bater o ponto e trabalhar.

 A fantasia acabou. Sei tudo o que preciso saber. A vida é assim, e reprimo o desejo de pensar que assim não é. Sonhar deve ocorrer à noite, com os olhos fechados e a consciência selvagem, juntando pedaços irracionais de memórias. De dia, viver.

terça-feira, 13 de abril de 2021

O seu papel no mundo

 No momento de sua queda, no ponto baixo da história que passava na televisão, o protagonista se preparava para um confronto aparentemente impossível, e por duvidar de si mesmo, perdia as forças para ultrapassar o obstáculo. Estava ali, prostrado, com lágrimas nos olhos, enquanto uma música triste trazia todo o drama de seu sofrimento. Ele perderia? Ele sucumbiria? Seu flagelo feito para tocar os sentimentos de empatia do espectador me provocavam certas dúvidas.


 Quando criança, eu assistia a esses filmes populares, e esses momentos em que o personagem principal se frustrava e pensava em desistir, não me desciam bem.  Como você não sabe, protagonista, que todos os olhos estão em você? Quantas vidas você mudou, que o cenário tem o espaço exato para que você passe, que a câmera está centralizada na sua figura? Como não sabe, protagonista, que você é o mais belo, que suas roupas são as que mais brilham e que o vilão é fraco, tanto mentalmente quanto fisicamente, quando comparado a você? Todos os sinais são tão óbvios, protagonista! 


 Ora, porque ele, justamente ele, o próprio protagonista da história, tão obviamente escrito para vencer, duvidava de si mesmo, de sua capacidade de ultrapassar aquilo tudo?! O roteiro já estava concluído, era ele o campeão, como era idiota da parte dele se prostrar!


 Prosseguia-se a história e todo seu drama, e então o protagonista recebia uns safanões de um personagem secundário, seja o treinador ou o melhor amigo, e ele era impulsionado a se reerguer com um discurso grandioso e sentimental. O protagonista, então motivado, tornava-se ciente de seus poderes, ali mesmo na beira do abismo, quando tudo parecia perdido, e vencia... Vencia! Surpreendendo sem surpreender o telespectador, que por ele torceu durante toda a película. 


 E ouvindo que a vida imitava a arte, achava que notaria, na minha própria história, quando seria a protagonista. Sim, eu saberia! Seria como se minha vitória tivesse sido escrita por roteiristas de filmes blockbuster. Sim, eu não me entregaria a tristeza fútil, porque não teria espectadores a quem incutir empatia, já que a história seria minha e o enredo do mundo seria eu, eu, EU! E explosões aconteceriam, e o romance! E a alegria incontestável de ser a personagem principal, de estar centralizada na câmera me embriagariam! Eu saberia, exatamente, ser a protagonista que sorri, com uma música emocionante, quando então os créditos começam a subir e a imagem começa a se apagar lentamente. A música de uma emocionante vitória. O sorriso de um final feliz. Uma vida com início, meio e fim.


  Como doeu perceber, com os anos, que a minha vida não seria aquele clichê todo, que nunca saberia se era a protagonista, a personagem secundária ou apenas a figurante que foi contratada pela produção para fazer volume na plateia, enquanto o verdadeiro personagem sorri durante a rolagem dos créditos. 


  Quem seria eu no mundo? Por qual razão pisaria naquele ringue para combater alguém, se não tinha certeza de sua relevância para o enredo da vida? Errei tantas vezes, tentando me adequar a uma narrativa, e tantas vezes percebi que ela não era sobre mim, e tanto me humilhei e machuquei por acreditar que aquela história teria minha participação de alguma forma! Quantas desculpas eu deveria pedir por ter atrapalhado? Assumi papéis de antagonista, sem querer... ou sequer o interpretei? Essas dúvidas me fizeram retroceder tantas e tantas vezes, que não protagonizo sequer meus pensamentos, eles estão cheios de outras histórias! 


  Nunca sabemos, nunca saberemos com certeza, se nosso caminho trata-se da trajetória do campeão. Não deveríamos desistir, acredito, devido a essas incertezas todas. De qualquer modo, precisamos ser e precisamos ter aquele que estapeia o rosto e motiva. Suba na porcaria do ringue, lute e se esquive, sem pensar se irá triunfar ou cair em uma cadeira esquecida ali no canto, tornando-o paraplégico. Você não tem um roteiro a seguir, temos um papel e uma caneta e uns rascunhos, e talvez nem precise disso tudo,  de qualquer modo. Sobem os créditos, talvez eu seja a "jogadora nº 2" ou nem esteja neles. E daí? 


  

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O amor sempre deixa indícios

 O amor sempre deixa indícios, e assim abriu-se a investigação. O objetivo? O objetivo seria o flagrante! A prisão! A justiça! Esse seria segundo flagrante, na verdade... Para melhor compreensão, é preciso contextualizar os fatos. O primeiro "flagrante", e aqui sinto constrangimento em dizer, deu-se quando o amor entrou em minha própria propriedade privada e foi se ocupando... ocupando, furtivamente, até que o encontrei por infestado em todas as frestas de todos os cantos. Até localiza-lo, fui vitimada por vermelhidões espontâneas, sentimentos desequilibrados e intensos, passava do riso ao choro em questão de segundos, sentia um enorme vazio que era preenchido repentinamente por você. Note, encontrei-o tarde demais, quando já não podia sair de mim. Que tipo de criminoso é esse que se alastra na vida e depois não sai de jeito nenhum? Seria isso algum tipo de doença? Pois bem, em depoimento, obtive o nome do invasor: amor. Seu crime: influenciar meu humor. Sua motivação: desconhecida. Ele alegou ter chegado através de uma arma branca, do tipo flecha, atirada de um arco, por uma metáfora relativa a lenda do "cupido". Claramente embriagado ou sob efeito de psicotrópicos, não logrei obter sua real motivação e origem, ao passo que desisti de realizar qualquer outra acareação. 

  Notavelmente sofri danos, e claramente precisava de uma reparação. E daí em diante, fui me questionando os por quês, decifrando seus motivos, que se desdobravam em outras diversas linhas investigativas, e tudo isso a fim de exilá-lo, mas não consegui. E é por isso (ou porque o amor já me controlava totalmente?), retomo, que dei início a inspeção. Foi uma investigação um tanto arriscada, de fato, que utilizou um método não convencional e que colocou minha própria felicidade em jogo. "Talvez" - pensava a essa altura - "encontrarei no outro a resposta para o que estou vivendo e me livre de vez de qualquer sentimento delituoso". Pensei bem e raciocinei "Talvez seja o outro o próprio mandante" e não muito depois, me surpreendi com a hipótese "Talvez o amor seja apenas a consequência e que outro seja o principal envolvido! Sim, o amor não possui culpa alguma. Isso tudo é a culpa do outro". Eureka.

   Bom... no começo pensei em ser direta "Ei, você me ama? Eu tenho um amor aqui, e não sei bem o que fazer com ele, não quer sair, preciso que se responsabilize também por isso!", mas através da observação do perímetro, e da possível ocorrência de reação violenta, constatei o óbvio "Qual criminoso se entregaria tão rapidamente?". Me deu uma certa frustração não poder confrontar de vez o investigado, um certo receio... então prossegui buscando mais provas antes de uma possível inquirição, afinal, não quero que ocorra uma fuga desnecessária ou um processo administrativo contra minha pessoa, por iniciar uma investigação infundada - seria trágico. TRÁGICO!

  Os primeiros questionamentos objetivavam identificar se o tal investigado possuía qualquer conduta típica prévia, se o investigado possuía o dolo específico de lesionar ou se sequer possuía ciência da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta. Foi realizado acompanhamento tático e, após, montada campana de monitoramento de seus comportamentos civis, no intuito de responder a questão: "Será que age de maneira diferente com relação a mim?", nada de anormal fora constatado, tendo em vista seu bom comportamento ter se demonstrado comum a todos.

  Para além disso, fez-se necessária a busca de outras provas, como a cooperação com testemunhas oculares, agentes infiltrados, consultores, psicólogos e toda baboseira contida em fóruns de páginas de internet. Ainda, disfarcei-me de diversas formas, a fim de obter a mais cândida versão do ocorrido e nada! NADA FOI OBTIDO!  

   A conclusão de que talvez não fosse culpa do investigado, que sua potencialidade lesiva era ínfima e que tal flecha atirada em minha direção, tenha sido acidental, me foi pessoalmente perturbadora. Até então, eu cria possuir a intuição policial, no entanto, o amor lastreado interferiu fortemente em minhas percepções: ora o via como autor, mesmo sem provas concretas, ora o via como um inocente, que estava no local errado, na hora errada, e ora me via como a principal culpada. Na verdade, de fato, talvez só existam inocentes... são tantas possibilidades! Daí que abandonei as investigações. Minhas percepções policiais estão avacalhadas, não há como considerar o anseio dos indícios e as provas corrompidas pelos desejos do amor. Fecho aqui o caderno investigativo sem crime ou autor. Um interrogatório poderia ser a única saída? Nunca. "Servir e proteger"? esse lema encontra-se evidentemente desatualizado.

  O amor sempre deixa indícios e se não os há... não o há...

 


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O que restará

 Quando isso tudo começou? Inconscientemente, naquele primeiro milésimo de segundo, ouvi um solo inteiro de guitarra. Iniciou-se, ali, o processo de ebulição do que hoje - e isso afirmo com toda certeza - tratou-se da maior explosão já explodida na história das bombas atômicas. E o que vejo, agora, é um cenário pós-apocalíptico. 

 E agora? Agora, nesse momento, só resta é chorar. Chorar e sentir, sentir até que se entedie dessa guerra interna e se logre a paz. É isso que tenho em mãos, lágrimas, milhares delas, como únicas armas para estar no front. Aqui não há escolha, ou se enfrenta seriamente todas as ameaças, bola-se estratégias para sobreviver ou se afugenta para uma vida mais triste ainda.

 Observem ali, que agora são cinzas, ali morava a saudade, logo adiante morava o amor, aqui abaixo dos meus pés residia a paz. Fundiu a matéria em migalhas e depois terei que reerguer tudo. Depois... depois... e depois? Não sei se adianta pensar nisso agora, mas meu pensamento sempre voa desenfreado pelo horizonte, principalmente em tempos ardilosos como estes. 

  É, talvez o depois me ajude a batalhar. Talvez o depois seja esperança! Sim... o depois será feito de reconstruir a mim mesma, assim, sem boa parte do que era, da mesma forma como as cidades se reconstroem no pós-guerra. É uma reconstrução triste e saudosa, essa de colocar tijolos novos onde haviam bases fortes construídas. Muito bem, bases! Não vou me engendrar em ódio, vocês resistiram enquanto puderam, aguentaram firmes os primeiros bombardeios, me serviram de abrigo até que de nós não restasse mais pedra sob pedra. Quanto ao depois, irei recriar tudo, com o privilégio de poder ajustar o meu mundo numa reorganização totalmente inusitada.

  Agora, nesse instante, o que me resta é que não me resta mais nada.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O subsolo

  Costumo olhar pro espelho para ver meu reflexo e costumo perguntar aos amigos sobre como me enxergam, pelo mesmo motivo. Gostaria de me conhecer por fora, quando sequer me conheço por dentro! De qualquer modo, especulo, e eis minhas conclusões:

  Eu, à primeira vista, pareço bastante séria, bastante calma, bastante dona de mim. Mais de perto, pareço ser cômica, pareço ser interessante e pareço ser inteligente. Mais de perto ainda, pareço nunca falar à sério, pareço encenada, pareço prepotente. Aproxime-se o suficiente, e pareço desesperada por atenção, narcisista, arrogante e estúpida. Mais um pouco, e é onde todos estacionam, pareço imatura, com pensamentos e reações infantis. Entre em meus pensamentos, onde nem mesma eu piso, e se deparará com o que sou de verdade: triste, obcecadamente triste.

  E por ser tão triste, acredito que acabo sugando as forças vitais dos outros, então é preferível que eu use de todos esses disfarces, a fim de que eu mantenha uma distância segura entre nós. Humana que sou,  quando se faz forçoso chorar, a lágrima não é a água que sai dos olhos, é a escrita que sai às pressas e compulsivamente. Assim que me alivio quando a pressão interna é demais.

  Externamente, choro em riso, que é mais legal.

Terminantemente

  Quando tudo está tão calmo e, repentinamente, algo te faz olhar aquela caixa de discos velhos, um cheiro antigo e conhecido se espalha no ar ou os olhos se lançam preguiçosos a uma fotografia recordada, nasce e morre, em um segundo, o estranho sentimento de que as coisas que acabaram, acabaram definitivamente, sem se ter como voltar atrás ou ir adiante. O cérebro remonta uma imagem que já se apagou no tempo e no coração, não existindo sequer saudade.

   A tristeza deu lugar à uma indiferença. Aquele tornado de sentimentos se finda e somente uma memória longínqua das lágrimas e dos sorrisos se fixa em um canto qualquer da mente. E rememorar a despedida dez vezes ao dia, como antes, é insistir em ouvir a um disco arranhado: irritante, e por isso desligou-se o som, quase que inconscientemente. Naturalmente, inunda-se o peito de um calmo silêncio. Foi-se a tanto tempo e tão terminantemente que as palavras da lápide, em meio a tantas outras lápides, de fato, se apagaram.

   É isso, e ponto final.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Sépia

  Li por aí que as experiências mentais equivalem às experiências reais para o nosso cérebro. Mas, ao meu ver, apenas equivalem, não são exatamente a mesma coisa, tanto é que conseguimos distinguir sonhos de ilusões de realidade - ou pelo menos deveríamos, uma mente saudável consegue.

 Eu vivo muito tempo dentro de mim e alimento conscientemente muitas ilusões de como a minha vida deveria seguir, vou escrevendo a história ao meu bel prazer, dispensando qualquer coerência ou senso de responsabilidade, logo, tudo que que imagino se torna perfeito. Na minha mente, nunca há chuva quando deve haver sol, todos os diálogos se seguem em perfeita consonância, ninguém realmente se machuca pelos meus atos e estou sempre de bom humor. Vou sonhando enquanto meu corpo vive no mundo real, idealizando as situações, sem realmente agir para que aconteçam, me contentando com a irrealidade.

 Mas existem esses momentos em que a realidade, que nunca deixa de fazer o seu papel, me acorda, e é horrendo ser acordada! Eu acordo sempre muito mal, querendo voltar a dormir, mas quando tento retomar o sono, já não existe cama, não existe qualquer contexto que deixe me confortável pra sonhar, e esse desconforto é duro de enfrentar. 

 Se eu vivesse mais tempo na realidade e menos tempo na imaginação, o contraste entre a perfeição dos meus sonhos e dureza fria dos fatos reais seria menos delineado, o acordar não seria tão espantoso assim, eu já estaria acostumada a me levantar e a tomar as decisões difíceis que devem ser feitas durante a vida adulta.

 Ao mesmo tempo, o acordar odioso, me traz a possibilidade de viver um dia ou dois, realmente. Quando fico acordada por tão longo período, penso que não é possível viver de sonhos. De fato, as coisas que se realizam ali não se equiparam ao que se vive fora deles. Sentir o toque, a presença e ouvir a voz, de verdade, nunca será trocado pela memória dos toques, pela presença fantasmagórica dos sonhos e o sons mudos que saem dessa boca. As cores da realidade são mais vívidas e a satisfação dos desejos reais é infinitamente mais prazerosa. Não há como sentir, realmente sentir, de olhos fechados, vendo só o que se tem pra dentro do crânio. Sim, o acordar é doloroso, mas é também magnifico. Eu me lembro que preciso, necessito e me vicio no toque real, na voz real, na presença real, de olhos reais me olhando de volta e de reações espontâneas, imprevisíveis ao meu inconsciente. Eu nunca poderia simular toda a graça que é a companhia verdadeira, utilizando apenas a parca memória de momentos que morreram. Eu quero presença física, não aguento mais pensar no que foi, no que poderia ter sido, quero agir, de corpo, mesmo.

 Mas ao primeiro sinal de tristeza, tudo fica escuro, e então lentamente e repentinamente, volto ao sono, tudo fica sépia, inconsciente e perfeitamente irreal.