"Caso Taman Shud, também conhecido como o "Mistério do Homem de Somerton", é um inquérito criminal não solucionado acerca de um homem não identificado encontrado morto às 06:30 da manhã de 1 de dezembro de 1948 na praia de Somerton em Adelaide, Austrália."
Durante o inquérito policial aberto para apurar a morte desse homem (que até hoje não foi identificado), encontraram um pedaço de papel onde constava as palavras "Taman Shud".
Depois disso, especialistas foram convocados para interpretarem o significado da frase, e eles concluíram que ela significa "fim" ou "terminado". Além disso, descobriram que o papel tinha sido arrancado do livro de poemas denominado "Os Rubaiyat", escrito pelo persa Omar Khayyam.
Omar Khayyam era poeta, matemático e astrônomo, que viveu entre 1040 e 1120 d.C, e escreveu livros importantes sobre álgebra e poesia. Ele era islâmico, mas tinha uma visão diferente sobre Deus - para ele, havia um ser superior, no entanto, ele acreditava que os fenômenos e acontecimentos não eram resultado de sua intervenção divina, mas das concretas leis da natureza.
Lendo tudo isso, me peguei mais curiosa por Omar Khayyam do que pelo "Caso Taman Shud", e fui atrás de ler o livro de poemas "Os Rubaiyat" (até porque eu não entenderia nada sobre o livro dele que aborda as ciências exatas).
Descobri que "Os Rubaiyat" é uma métrica de poemas, e que essa coletânea foi batizada assim por Edward Fitzgerald, responsável pela tradução e subsequente fama desses escritos.
Sou apaixonada por poemas, e temos a sorte de possuir o livro disponível gratuitamente, em português, nesse link aqui.
Li boa parte dos poemas traduzidos pelos escritores Fernando Pessoa e Alfredo Braga - este último criticou algumas das traduções feitas e argumentou que nenhuma delas é 100% fiel ao persa, considerando que elas sempre carregam as perspectivas pessoais de cada um dos autores.
Para Braga, é necessário analisar o autor, antes de traduzir a obra, e na introdução do livro, ele tentou decifrar quem é Omar Khayyam e como seria o estilo de escrita deste último, se falasse português:
"Um homem erudito e sofisticado, que sabe da assombrosa trajetória dos astros, da pureza da rigorosa geometria, e da elegante álgebra, que percebe a inconseqüente soberba dos homens sábios (e a dos outros) e caminha entre rosas, tulipas, lindas mulheres e finos vinhos, provavelmente não ia se entregar a tão imponente singeleza para falar do último gesto, daquele ato inelutável de um outro crepúsculo"
Khayyam teria uma escrita, portanto, "pontual, concisa e elegante", sem floreios, como muitas das traduções feitas.
99. Quando eu não mais viver, não haverá mais rosas,
nem lábios vermelhos, nem vinhos perfumados;
não haverá auroras, nem amores, nem penas:
o Universo terá acabado, pois ele é o meu
pensamento.
109. Homem ingênuo, pensas que és sábio
e estás sufocado entre os dois infinitos
do passado e do futuro. Não podes sair.
Bebe, e esquece a tua impotência.
Mas como dito anteriormente, apesar de muito questionar a religião, Khayyam ainda acreditava em Deus, no entanto, assim como interpretou Nietszche em "O anticristo", séculos mais tarde, essa existência não abarca a vida após a morte. Para ele, Deus criou a vida, mas não a vida eterna:
79. Não terás paz na terra, e é tolice acreditar
no repouso eterno. Depois da morte
teu sono será breve: renascerás na erva
que será pisada, ou na flor que murchará.
89. Somos os peões deste jogo do xadrez
que Deus trama. Ele nos move, lança-nos
uns contra os outros, nos desloca, e depois
nos recolhe, um a um, à Caixa do Nada.
Apesar de tanto questionar o universo, Khayyam não quis questionar a razão de sua existência, e fiquei na dúvida se foi por cansaço ou se foi por saber, de antemão, que não havia uma:
83. Não pedi para nascer. Recebo, sem espanto ou ira,
o que a vida me entrega. Um dia hei de partir;
não me importa saber qual o motivo
da minha misteriosa passagem pelo mundo.
Khayyam também escreveu sobre o amor e muito sobre o vinho. Pelo que percebi, o amor e a embriaguez (um dos poucos entretenimentos da época), seriam sua rota de fuga das suas crises existenciais.
91. O amor que não consome, não é amor;
a brasa tem o mesmo calor de uma fogueira?
Aquele que ama, pelas noites e dias,
vai se consumindo no prazer e na dor.
93. O vinho dá-te o calor que não tens;
suaviza o jugo do passado e te alivia
das brumas do futuro; inunda-te de luz
e te liberta desta prisão.
Para lidar com as frustrações, Khayyam, que escreveu os poemas quando já passava dos 70 anos de idade, deu um conselho que devemos seguir à risca: viver enquanto estivermos vivos:
78. Sente todos os perfumes, todas as cores,
todas as músicas; ama todas as mulheres.
Lembra-te que a vida é breve e que breve voltarás ao pó.
Lendo os poemas do livro, me tocou muito o fato de Khayyam, criado numa época com pouco acesso a informações, um homem das ciências exatas, de uma religião muito provavelmente limitadora, antagônica ao concreto, à filosofia e à ciência (como a grande maioria das religiões), contestar sua mortalidade... Um homem de novecentos anos atrás fez o que muitos se negam a fazer nessa era de informação - ele olhou para o céu, e contemplou as estrelas, e pensou na sua morte e na passagem do tempo, e se permitiu sentir fascínio e medo, sem recorrer às explicações floreadas, revestidas de uma confortável "verdade divina".
Quero morrer, como ele morreu, sabendo do meu inevitável fim e usando essa informação ao meu favor. Aproveitarei meus dias até que eles acabem - mas sem a exorbitante quantidade de vinho recomendada por Khayyam, até porque meu fígado não aguentaria mais 70 anos nesse ritmo.
Ces't la vie!
Taman shud.
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