quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Lolita e Annabel

"Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta.” 

    Essa é a introdução do polêmico Lolita, do escritor Vladimir Nabokov, um dos livros que me deixaram mais crítica quanto a qualidade das minhas leituras e que marcou a minha transição literária das obras infanto-juvenis para outras mais complexas.

    É com pesar que venho percebendo que há muita gente tirando conclusões precipitadas sobre a mensagem que Nabokov queria passar com o livro: uns acreditam que ele incentivou e sexualizou crianças, enquanto outros leram a história.

   A obra conta a vida de um pedófilo (Humpert Humpert), de 46 anos, que se "apaixona" perdidamente por Dolores Haze (Lolita), de 12 anos de idade. 


  
  Nabokov escreveu o texto em primeira pessoa, e tem como narrador Humpert Humpert. Este personagem conta a história como se já houvesse se passado diversos anos de seu relacionamento com Lolita e, desde o começo da leitura, é notável a quantidade de problemas mentais que o mesmo carrega.

    Em que pese a leitura pesada que é a história não-censurada de um pedófilo, a forma como Nabokov escreve é digna de admiração. Ele consegue poetizar e arrastar o leitor para dentro da obra e o obriga a raciocinar e a agir como Humpert, o fazendo ser o personagem.

   Junto com Humpert, e contra a sua própria vontade, você sente vergonha e culpa por compreender as palavras charmosas e poéticas dele. Por ficar bravo ou magoado com as atitudes de pessoas que não o compreendem.

   Quando Dolores ainda não era Lolita ou de sequer aparecer na vida de Humpert Humpert, ele contextualiza a antecessora da mesma. Durante a sua infância, o personagem tem como primeiro amor, no início de sua adolescência, Annabel Leigh.

  Antes de Humpert se relacionar sexualmente com Annabel, esta é levada para longe dele pela família, sendo que, tempos depois, antes que ele a pudesse esquecer, soube que ela faleceu de febre tifóide. 

    A loucura que é o coração de Humpert e a obsessão que ele confunde, durante toda a história, com amor, aparecem já quando ele é adolescente. Annabel Leight foi sua primeira Lolita e ele busca em garotas entre 9 e 12 anos a alma de seu primeiro amor, é como se ele procurasse, incessantemente, reencontrar em outras crianças a sensação de amar e ser amado pela primeira vez.

    Há momentos, claros, em que Humpert se força a ver Dolores como Annabel Leigh, em que ele se opõe em conceber que ela está crescendo e deixando de se comportar como seu amor platônico anterior. Ele procura a inocência, a sensação de medo e aventura na infante.

    A inspiração de Nabokov para Annabel Leigh, bem como a história de seu primeiro amor, veio de um poema trágico do autor Edgar Allan Poe chamado "Annabel Lee". Gosto do poema e achei a conversão dele para uma história uma das coisas mais incríveis que já li. Quando me deparei com "Annabel Lee", me deparei, também, com o suprassumo das sensações tidas por Humpert com sua Leigh.

    Encontrei uma tradução para português de "Annabel Lee", feita por Fernando Pessoa, que é excelente, mas a alterei bastante para facilitar a leitura:

Há muito, muito um ano atrás, existia
Num reino ao pé do mar,
Uma donzela que eu sabia
Annabel Lee se chamar;
Donzela em que outro pensar não se via
Que amar e ser amada por mim.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas nós amamos com um amor que era mais
Que amor
Eu e minha Annabel Lee;
Um amor que os alados serafins
Lá no Céu ousaram invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
minha linda Annabel Lee;
E o seu parente fidalgo veio de longe,
Para de mim a afastar,
Para a fecharem num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar…
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que um vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando minha Annabel Lee.
Mas nosso amor era mais forte que o amor
Daqueles mais antigos
Daqueles mais sábios –
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda Annabel Lee.

Porque os luares nunca brilham, sem me trazerem sonhos
Da linda Annabel Lee;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda Annabel Lee;
E assim, noite adentro, deito-me ao lado
da minha querida, minha vida e minha noiva,
No sepulcro ao pé do mar,
em seu túmulo ao pé do borbulhante mar.




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