Eu me pergunto se eu morri naquela noite, naquele violento anoitecer de verão. Naquele banheiro que me viu crescer por 17 anos - ou eu o vi envelhecer, quem sabe?
Uma briga, mais uma, no meio de inúmeras e eu corri pro lugar em que eu me sujava e me lavava desde a infância. Eu estava com muita raiva, uma raiva que surgiu da melancolia, que surgiu da falta de sensações... Muitos anos sem sensações.
Antes eu era muito reprimida, sabe? Eu me sentia impotente desde que eu nasci, acho. Eu era mais uma no meio de inúmeras pessoas que não conseguia me defender do mundo, que não conseguia defender os outros do mundo e que não podia salvar nada e nem ninguém de Deus - aquele Ser pavoroso que me fez só pra me ver morrer (esse segredo eu não contava).
Então, naquele dia, eu liberei tudo, toda a raiva que eu segurava, toda aquela raiva Freudiana! Quebrei o porta-retratos com rostos familiares e gostei de o ver estilhaçado no chão. Nesse momento eu coletei um pedaço do estilhaço, cortei minha mão nele e gostei do sangue e da dor, pensei comigo mesma "Finalmente" e corri para a primeira porta que poderia ser trancada por dentro, mas não por fora.
Antes desse dia eu sentia muito ódio, sabe? Eu sentia ódio desde que eu nasci, acho. Eu era mais uma no meio de covardes que não conseguiam resolver seus problemas sem envolver a tudo e a todos, que faziam os mais frágeis suportarem suas imensas bagagens emocionais e sua ira infantil.
Então, naquele dia, coloquei o estilhaço no pescoço e, aos prantos, o cerrei e esperei o alívio da inconsciência e da raiva e do choro e dos escândalos e dessa vida que, até hoje, não me faz lá muito sentido.
Uma briga, mais uma, no meio de inúmeras e eu naquele banheiro, vendo o sangue escorrendo e a porta sendo arrombada. "Droga", pensei, "Acho que agora é a vez do meu pulso" e tentei riscá-lo diversas e diversas vezes. Enquanto isso, a fechadura não aguentou, um rosto familiar entrou, me esbofetou e eu percebi que eu não havia conseguido.
Eu me pergunto se eu morri naquele anoitecer infernalmente quente. Naquela casa cheia de lembranças traumáticas.