domingo, 12 de março de 2017

Não sei pra onde esse texto vai, ainda

[primeira parte]

*bip - bip - bip*

- O que foi, Alfie?
- Alô, Dolores? Aqui é o Vitor. Por onde esteve nessa semana?
- Vitor...?
- Amor, deixa de brincadeira, eu vou voltar logo mais, tem como me buscar no aeroporto? Estou com saudades!
- A que horas te busco?
- Agora, Dolores, eu te mandei mensagem de texto ontem a noite. Agora são quatro horas da tarde.
- Hãm, desculpa, eu trabalhei demais nesses últimos dias. Vou te buscar.
- Estou esperando.

Estou com a sensação de que sonhei com algo importante. Será que chamei o Vitor de Alfie? Por um momento me esqueci que estou com 32 anos, noiva, bem empregada e com as contas em dia. Por um momento eu achei que estava no meu quarto dormindo, enquanto Alfie tocava minha guitarra, sem que nada do que ocorreu nos últimos anos tivesse acontecido, ainda. Não parece real que o tempo tenha passado assim, tão depressa, Alfie.

Alfie tinha cabelos dourados e bochechas rosadas, sempre usava seu jeans rasgado, seu All Star azul e uma camisa vermelha de flanela. Desajeitado... eu gostava de você. Gostei de você no primeiro dia em que trombamos no colégio e reparei na sua camiseta, por baixo da típica camisa, com a estampa do David Bowie.

- Merda, meus livros.

Eu era tão diferente naquela época, tentando ser o que, até hoje, não consigo: a filha educada, bonita, meiga e focada do magnata Roger von Baden.

- "Merda", meus livros, você quer dizer, patricinha. Estão imundos!
- Sinto muito... Como é seu nome?
- Alison Fidel, majestade. Por qual razão a senhora é tão formal, Dolores? Estou impressionado com o fato de que a senhorita utilize palavras de baixo calão.
- Fidel?
- Sim. Não ria, madame. Você sujou meus livros, sabe quão caros eles são? Imagino que você não entenda de preços...
- Você supõe demais.
- Muito raramente estou incorreto nas minhas suposições.
- Foi um acidente, apenas. Não vou pedir desculpas pelos seus livros, assim como não vou exigir desculpas suas. E, por favor, arranje um apelido, seu nome é horrendo.
- Dolores von Baden não está muito melhor, a impressão que eu tenho é que você tricota aos finais de semana. Arranje você também um apelido.

Alfie tinha essa personalidade sarcástica, ríspida, mas verdadeira, enquanto eu sequer sabia algo sobre mim mesma.

- Sobre o que você está pensando, Dolores? Está quieta desde que entrei no carro...
- Sinto muito, querido, estive pensando em problemas do trabalho. Onde quer que eu te deixe?
- Na nossa casa...?
- Ah, certo!
- Não vai me perguntar sobre a minha viagem?
- Sim, sim. O que você fez por lá? Fechou acordos?
- Eu visitei a minha mãe, Dolores, não fechei acordos porque não estive em uma viagem de negócios.
- Sinto muito, Vitor. Como está sua mãe?
- Ela está muito bem e me perguntou sobre qual hotel reservamos para os convidados do nosso casamento.
- Eu vou perguntar pra Tônia se ela reservou o hotel que pedi.
- Tudo bem, amor. Você vai voltar pro escritório?
- Sim.
- Você parece cansada hoje.
- Estou bem. Obrigada.

Droga, droga, droga, droga.
*bip*

- Escritório Dolores von Baden, quem fala?
- Tônia, sou eu! Tem como você procurar um bom hotel para essa semana?
- Sim, você vai viajar? Seu casamente é no sábado.
- É justamente para os convidados do meu casamento que eu preciso do hotel.
- Meu deus, Dolores! Verei o que posso fazer. Você é muito irresponsável.
- Que bom que eu te tenho do meu lado, Tônia.
- Vou precisar de um aumento.
- O que você quiser...

[continua]

*Mudei o nome da Dolores

terça-feira, 7 de março de 2017

Não sei pra onde esse texto vai

Não sei pra onde esse texto vai... *I can't stand it* Dez anos se passaram e a luz escura desse escritório ainda não me desce *I know you planned it*. O dinheiro cai na conta todo mês, *I'm a' set straight* e todo mês metade desse valor é devorado pelo cartão de crédito *this watergate* , a cada sete dias o que sobrou é gasto em álcool, cujas embalagens custam mais que o próprio conteúdo  *can't stand rocking when*. Não sei por qual razão essa monotonia se fez incômoda, parece uma coceira dentro dos meus miolos que eu não consigo aliviar *I'm in here*. Hoje meu cérebro está indo e vindo do passado *Cause you crystal ball ain't so crystal clear* para me atazanar. *So while you sit back and wonder why*. Esse rádio idiota está tocando essa música *I got this fucking thorn in my side*, não duvido que ela volte a entrar na minha cabeça. *Oh my god, it's a mirage*

- Que merda de música alta, Alfie!

Alfie? *I'm tellin' y'all it's sabotage

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Tônia?

*Trim, trim, triiim* 

Droga de alarme, droga de mim! Não deveria ter bebido tanto ontem, não tenho mais idade ou fígado para afogar as minhas mágoas em álcool. 

- Onde está minha gravata, Tônia?
- Dolores, você dormiu aqui no escritório? 
- Porquê você está com um vestido tão vermelho? Essa cor está intensa demais, meus olhos doem.
- Dolores, vou chamar um táxi. Você precisa urgentemente de um psicólogo! Não é assim que...

A Tônia fala demais quando está preocupada, o tom de voz dela está tão agudo! Como consegui fingir ouvi-lá por 30 minutos inteiros? Ou melhor, como ela acreditou que eu a estivesse ouvindo? Que secretária estranha. Que sol quente.

- Vem, Dolores, o taxista chegou.
- Tônia, não precisa me carregar no seu ombro, eu consigo andar.
- Dolores, você quebrou o salto do seu sapato e... Aqui está o taxista.
- Ei, você esteve no escritório ontem a noite, certo? Como soube desse apelido?
- Por favor, não leve pessoas estranhas para o escritório, isso arruinará sua reputação um dia. E, respondendo sua pergunta, não, não estive lá. Tenho vida social.
- Moça, será que tem como a senhora ajeitar essa mulher aí para eu colocar o cinto de segurança?
- Sim, senhor.
- Devo ter me confundido com o tempo então, Tônia. Talvez isso tenha ocorrido hoje. De qualquer forma, como você sabe sobre esse apelido?
-Que apelido, Dolores?
- Alfie...
- Tipo o extra terrestre Alfie?
- Sim...
- Do que você está falando, mulher? Taxista, por favor, não preste atenção nas besteiras que a Dolores falar, certo? Adeus!
- Desmarque as reuniões de hoje, Tônia.

Então, se não foi a Tônia que esteve comigo ontem, quem era? Seria impossível ela saber qualquer coisa sobre o meu passado. Ela sequer era nascida quando "Alfie" passava na televisão... tão jovem... Sinto tanta falta da minha juventude. Sinto tanta falta de...
- Ei, Alfie!
- Desculpe-me, o que disse?
- Senhora? Está tudo bem?
- Você me conhece? Como sabe sobre Alfie? Não responda uma pergunta com outra pergunta!
- Eu não sei do que a senhora está falando, apenas avisei que chegamos. Por favor, saia do carro. Sua amiga já pagou a corrida.
- O senhor é um tanto desagradável, taxista.

Preciso da minha cama. Estou tendo alucinações por causa da noite de ontem (e hoje). Minha cama está tão macia... Por qual razão eu alucinaria sobre Alfie? Tantas lembranças mais interessantes e esse apelido idiota ainda permanecendo nas minhas memórias. Alfie... como ele deve estar hoje? Os cabelos dele já não devem ser mais tão dourados e a pele dele, tão rosada, já não deve ter a mesma cor.

[...]

*It's sabotage*

- Seu inglês é péssimo, Alfie. Me passa esse cigarro logo.
- Você sempre querendo arruinar seus pulmões...
- E você, querendo arruinar meus ouvidos!
- Não há o que eu possa fazer quanto a minha situação. Essa é, simplesmente, a melhor banda que já ouvi.
- Você só conhece essa música. Esse cigarro nunca vai me alcançar?
- Essa banda é responsável pela criação e interpretação de Sabotage, a melhor música do mundo. Quem cria algo assim só pode ser colocado na categoria "melhor do mundo".
- Você cria categorias demais, Alfie. 

As mãos dele tocaram os meus dedos por um segundo, o corpo dele está quente, ainda. A pele dos dedos dele é macia.

- Alfie, você tem que me passar mais vezes o cigarro.
- Mas já está me devolvendo, Lola? Você fuma com muita pressa, assim a erva não vai te dar onda.
- Você deveria aprender que a onda é minha e eu surfo nela da forma como eu quiser.
- Lola, suas piadas são sempre muito ruins.

O Alfie é um idiota.

- Me passa logo esse cigarro, Alfie.

[continua]