sábado, 9 de novembro de 2024

Nódulo

 Sabe-se lá há quanto tempo não penso em poesia!

 Sinto conforto em estar assim, robótica, que daí não penso e a complexidade da vida se ameniza. Programei (ou fui programada?) para que esse sábado fosse tão cheio quanto todos os dias da semana. Porém, o inesperado: eis que todos os programas agendados foram desmarcados em cima da hora. A viagem, a sessão, a conversa, a saída, o restaurante. Tudo. 

Fui às compras porque não sabia o que fazer com o tempo livre. Não estava nos planos principais, mas estava ali como um plano B: Minha programação B é comprar para sorrir. Dessa vez, optei por apoiar o comércio local e também por gastar mais calorias de pé do que com cliques. Lá encontrei muita gente. Como otimização de bateria, deixei de registrar os rostos que encontrei e as suas vozes. Simplesmente não poderiam interromper minha programação, pois o que será que aconteceria? Não havia tempo para sentir tamanha... seja lá o que for o que minhas roldanas suprimiram. Sentir não estava nos planos A, B ou C. 

Ah... não sei ao certo o que respondi, mas estou firme que recitei aquela conversa pré-programada que se fala nas ocasiões sociais em que há muito barulho e muita gente e que não se há tempo para contemplar outra coisa senão um cinto de couro legítimo por R$ 39,00. Trinta e nove reais é um bom preço! Excelente! Era dia de promoção e uma mulher estava de olho no amontoado de roupas que eu cuidava, enquanto alguém me perguntava algo, talvez sobre como havia sido a semana. Eu não poderia dizer como foi, porque a) não tinha certeza se essa era a questão e b) eu também não saberia dizer como foi minha semana, precisava pegar a agenda. Joguei palavras ao vento, assim como as roupas na sacola e o número do cartão de crédito na maquininha. Não é hoje, pensei, que pensarei esses pensamentos.

Extrapolei mais uma vez o limite do cartão, sem pensar, com alívio. O peso das sacolas de plástico não justificava a notificação do banco neste celular que sequer terminei de pagar. Apaguei a notificação e fiquei só com o peso das sacolas. 

Vesti as roupas só em casa, porque o impulso da compra não me permitiu sequer prová-las na loja. De frente ao espelho: Um vestido novo, admirei a bolsa nova, a camisa nova. A cama cheia de etiquetas. Minha programação para não desestabilizar meu sistema com raciocínios, sentimentos, tensões, como havia sido a semana, o mês, o passado, foi provar as roupas que comprei sem direito à devolução. O cinto novo nem combinava com a blusa nova.

A blusa nova, muito pequena, fez-me sentir um nódulo no seio. Interrupção das sinapses e pane no meu sistema. Não tenho tempo para nódulos, hoje. Uma ligação telefônica surpresa, visitas inesperadas, a blusa nova, mais conversa, risadas, a blusa nova e o nódulo. O nódulo. Mas com que tempo iria eu a um hospital? Segunda, não tenho tempo, muitos prazos. Risadas e conversas. Terça e quarta, seria impossível. "Sim, está tudo certo aqui, sim". Quinta é inviável, tal qual sexta e também o sábado. "Sim, essa blusa é nova". O nódulo também?  Fui ao hospital.

 A médica me tranquilizou com seu tédio. Só apalpou meu nódulo porque lhe falei que a blusa nova deixava aquela pele à mostra. Passou o exame, perguntou do histórico de câncer. Consulta rápida, como gosto, mas esqueci de acrescentar um pigarro chato e uma tosse irritante - que está sendo tratada por mim e meus conhecimentos parcos de automedicação.

 Na saída do hospital, tranquilizei minha pane. Passei pelo corredor mastigando chicletes, pensando no café que eu deveria comprar e nos compromissos do dia e como resolver as desmarcações. Será que viajo sozinha hoje? Faço eu mesma a sessão? Marco outro compromisso? Visito a família que não vejo há anos? Faço o exame na terça? De repente, uma banda entra na sala de espera. Um a um. Os instrumentos refletiam à luz do sol. Flauta, saxofone, trompete, trombone, violino, partitura, ternos e gravatas, e por fim um maestro, que me desejou um bom final de semana.

 Agora, para ser exata, recapitulando meu dia após horas de tédio, escrevendo da sala porque o quarto está revirado com roupas e etiquetas, percebo que pensei muito no nódulo e pouco no porquê não dei meia volta para acompanhar a sinfonia.

domingo, 3 de novembro de 2024

Um café, por favor

Sou uma pessoa extrovertida, isso não é mistério para ninguém. Desde criança gosto de conversar com as pessoas e adoro quando elas me contam suas histórias e quando elas reagem ao que falo. Eu adoro quando alguém ri comigo, e quando choram comigo. Interagir com humanos me deixa feliz e enérgica. Porém, os anos foram se passando e fui ficando mais fechada. A interação tem o seu custo... se não se cuidar você se submete aos outros e não consegue ter um tempo de contemplação isolada e fica exausto. 

Houve uma época em que achei, genuinamente, que tinha ficado fadigada dos humanos: essa matéria orgânica em decomposição, estranha, revestida de um órgão pálido ou tingido, com bolotas esbranquiçadas e pontos pretos na parte alta, no que se chama de rosto, chamados olhos, que servem para ver o que existe a sua volta, com pontas espigadas chamadas de ouvidos, com orifícios estranhos, fios que saem do corpo. Suspiro. Reticências.

Num desses dias de ojeriza, 6h30min, numa segunda-feira, cansada, experimentei pela primeira vez uma pequena xícara de café com muito açúcar e pensei que o gosto amargo não era justificável. Dali trinta minutos senti como se minha alma estivesse reocupando meu corpo e tive aquela sensação de eureka!

De lá pra cá, deixei as xícaras de lado, e passei a consumir o café em canecas, o amargor virou amor, e não adoço a bebida nem mesmo com uma brisa doce. Quente e forte. É assim que tomo meus baldes de café.

Sempre após tomar meu delicioso café a minha extroversão é aumentada em 1000%. No início lembro das pessoas que eu conheço, meus amigos, e crio seus fantasmas e conversamos mentalmente sobre aquele meu relatório no meu escritório de advocacia. Rio com esses fantasmas pensando como alguém que chama Uialá teve coragem de processar o banco porque seu nome no cartão veio escrito como Óialá.

Outra caneca, por volta de 200ml, aquele líquido delicioso, o cheiro da manhã! Olho as pessoas pela janela da sala, pessoas que sequer conheço, e penso comigo sobre o extraordinário da vida, como elas são belas, inteligentes, como são criativas, simpáticas, únicas, vivas, poéticas, profundas, e que mesmo as cruéis são personagens essenciais deste mundo, e eu as amo todas.

Mais uma caneca, e passo a desejar a imortalidade. Sabe, eu queria ter tempo de conversar com cada uma dessas pessoas e conhecer toda a vida delas, inteira, e seus segredos todos para sempre. " É mesmo, senhor pedreiro? Você está com essa mochila rosa com glitter para trabalhar, não porque era de sua filha, mas porque você realmente é fã de O Clube das Winxs? Eu também sou fã, a minha favorita era a Bloom, e a sua deve ter sido a Flora, heim"... 

Poxa, é uma pena que morrerei sem ter interagido com esses 8 bilhões de humanos. Como é triste a mortalidade! Ela me tira a chance de poder conhecer quem nascerá... e como eu queria conversar realmente com aqueles que já se foram! Particularmente com o Montaigne, acho que seríamos melhores amigos, mesmo que ele não visse lá as mulheres como seres muito capazes de se darem bem com a razão. O ensaio dele sobre como a filosofia nos ensina a morrer é supimpa!

Mais uma caneca e já quero saber o processo criativo do Shakespeare e a quem ele direcionava aqueles belos e raros sonetos: para seu preceptor ou para alguma mulher a quem amava? Marco Aurélio roncava? A cor favorita da Cleópatra, qual seria? 

Última caneca, o coração já em chamas. Hoje em dia tento parar o consumo às 14h para não atrapalhar o bom sono. Às 14h15min entro em debate com algum conselho intergalático e penso como seria interessante um podcast com uma vida alienígena: afinal, como é respirar dióxido de carbono e liberar oxigênio ao invés de respirar oxigênio e expirar dióxido de carbono e como isso afeta a formação dos  narizes? Os terráqueos os tem no centro do rosto, os uluplazukuafhaus os possui dentro das orelhas.

Às 18h, olhos semicerrados, sequer miro o meu próprio reflexo no espelho, que eu mesma já sou gente demais para conversar.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Poetria XXXVI

Para a dor não há atalho de cimento.

Eis meu mais curto sofrimento:

Olho o abismo em que a vista alcança

Dói-me, corrói-me, e se cansa

Devoro cru, com sangue quente, sofro agora 

não no leito da morte, na dor da memória.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Tomar decisões com o dedo machucado

  A gente nasce e logo nos catalogam, encaixam-nos num lugar, dão-nos de comer e beber e engatinhamos. O início da vida é uma exploração guiada pelos adultos, uma aventura indicada para aquela faixa etária em que os erros não são tão fatais se não nos arrancam o topo do dedão do pé. 

  Alguns, ao perderem o topo do dedão do pé não querem que a dor se repita, temem a trágica visão de sangue, e na crença de evitarem a repetição da dor voltam os olhos para a experiência do outro.

  O "outro" é um sujeito meio indefinido que nunca teve o topo do dedão do pé arrancado numa partida de futebol de rua e ainda faz gol de bicicleta. O outro sabe da vida, e sabe tanto, que diz o que se deve saber. Os princípios do outro são mais elevados, o temperamento é mais calmo, a inteligência é mais aguçada... o outro é belíssimo! O outro não vai jogar futebol descalço. O outro não rala o joelho. O outro possui desses feitos que nos causa inspiração e uma certa inveja... Mas o outro é o outro, ele é o ideal, e tantas vezes nós o plagiamos para evitarmos os erros deste eu errático, ensanguentado, exausto e sem o tampão do dedo.

  O outro nunca perderia o tampão do dedo, se porventura o perdesse, não teria esgoelado e chorado tanto como este eu. Causa-nos medo sentir a dor, causa-nos medo esgoelar de novo, errar dói e isso é um primitivo-intuitivo pavor.

  O medo dos erros nos leva a fazer coisas esquisitas, como por exemplo, praticar erros mais elaborados. O medo de ser rejeitada já me levou a dizer sim para tudo. E apesar de ser uma pessoa que adora explorar as possibilidades da existência na terra, muitas delas eu explorei por puro medo de errar. Porque mesmo diante das possibilidades, escolhi me submeter a outro ideal. Dos tipos de erro que se comete na vida, no entanto, aceitar explorar as possibilidades não é tão ruim assim, há mais chance, estatisticamente falando, de se deparar consigo mesmo em alguma parte do caminho para tomar as decisões próprias da maturidade. Por outro lado, o erro de só se explorar uma única possibilidade de regras de vida me soa mais... fatal.

  Ao leitor (ninguém lê esse blog) nada tenho contra regras! Elas são praticamente inescapáveis. Quem vive uma vida regrada, quando cria as próprias regras, é mais feliz do que quem se submete as regras alheias. Compreendo muitíssimo que as regras alheias nos dão um lugar seguro, que são o abraço do útero, como se houvesse uma mãe nos alimentando pelo cordão umbilical. Mas um cordão umbilical nos alimenta de nutrientes, não de sabores. Só a vida nos dá sabores, esse pré-nascimento, proto-vida, não. 

  O erro de trilhar um caminho alheio é magistral, é aquele erro que faz o moribundo na cama de hospital se contorcer. No cansaço da morte nos lembramos da vida, mas se se viveu um protótipo de vida, nada ali há para se rever que seja pessoal, é um filme composto de colagens, um documentário de uma vida estranha. 

  O moribundo descobre só saber o próprio nome e talvez se apegue àquele dia quente de verão, jogando futebol descalço, e sorria com a bola na trave e a dor do tampão do dedo.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Times New Roman 12

  O intelectual é aquele ali: o otimista adulto demais para ser otimista, o que está encoberto de uma atmosfera lúgubre e vive em seu refúgio natural: o cérebro. O intelectual é distinto, sua intelectualidade não se confunde, é o sarcasmo, é não rir além dos dentes, é estar constantemente insatisfeito com o que é bom. Ele já nasce com a maldição de ver tudo o que não se conquistou, o que se deixou de fazer, os buracos da trama e o futuro brilhante apagado pelo imutável passado. 

 Trata-se de condição de sua espécie compreender que só se é verdadeiramente intelectual aquele que é triste. É assim que se reconhece como parte do grupo. Essa tristeza sem lágrimas é tida como a marca do verdadeiro amadurecimento. Observe que a infância é o deslumbre, a esperança e o sorriso de um córtex pré-frontal não completamente formado. Logo que há o reconhecimento das incoerências do mundo, nasce-lhe a raiva, por conclusão lógica. A melancolia é consequência direta do apaziguamento da revolta juvenil. É com a tristeza, talvez um par de óculos e uma pele pálida que se o reconhece.

  O intelectual, por rotina, se senta em sua mesa de estudos, injuria o mundo, maltrata a esperança e desumaniza a felicidade. Ele digita que tudo está fora de controle e que o azar é uma construção há tantos anos que se perdeu de seus rastros. Em sua conclusão: desista, e referencia a si mesmo. Ele sabe tudo que se há para saber, mas não é o que responde quando lhe perguntam.

 O cruel mundo gira, o sol que explodirá acorda pela manhã em contagem regressiva, o leite da geladeira coalhou, e lá vai o intelectual forçado ao mundo, buscar o café da manhã. No trajeto à padaria, vê quem sorri com ironia, pensa-se seguro, acima daquela ignorância toda. Caminha pomposo por entre as gentes, tem dó dos empobrecidos tristes - seu objeto de estudo para mais tarde. O intelectual não se sente muito a vontade em conversar com o objeto de estudo, no entanto, arranja o seu jeito: fala em tom de condescendência, e isto, sim, funciona muito bem. Retorna o intelectual com o leite e um olhar orgulhoso para seu refúgio.

 O refúgio do intelectual é bastante distinto, tido que lhe abriga com uma segurança mui peculiar: apaga-lhe o sorriso e a felicidade, sintomas da indesejável imaturidade. No refúgio, só os maduros! No refúgio ele percebe que não disse ao moribundo, olhando nos olhos, sobre seu destino fatal, sente-se covarde por um momento, mas como escreverá sobre, com nota de rodapé, sentiu-se bem logo em seguida. O intelectual é o herói que preserva a verdade das mentes pequenas e as expande em times new roman 12, em Qualis A1. O que importa não é o pouco, é o muito, é a larga escala, é o grande esquema das coisas. 

Eis o que é verdadeiramente grande: é a justiça, pensa ao encostar a cabeça no travesseiro, é importante apesar de não ter logrado a conceituar muito bem naquela introdução. Remói por hábito, mas agora lhe chama atenção a estranheza de sua guerra em prol da justiça num mundo tão condenado.

Não há nada o que se dizer de original, sonolência, as mãos atadas a referências, o leite coalha, Comic Sans... Dorme o intelectual.